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Arrastão: Os suspeitos do costume.

olha, um post sem desenho

Pedro Vieira, 21.01.14

durante estes anos, e de forma intermitente, tentei oferecer o retrato do país que às vezes dispensa palavras. agora que a corda do nosso relógio decrescente acabou, ainda por cima sem direito a canção dos ac/dc, agradeço aos meus camaradas de blogue e aos leitores. 

 

e a espaços estarei no irmão lúcia a rabiscar. até sempre.

Até já

Daniel Oliveira, 21.01.14

 

A morte do Arrastão não resulta, como é evidente para quem o vai lendo, de nenhuma doença grave. Morreu, ao fim de oito anos, de morte natural. Quando o criei, como blogue individual, a ideia era ter um espaço de opinião e de debate para lá dos meus textos mais institucionais, nas páginas do Expresso e na SIC. Quando convidei o Pedro Sales e o Pedro Vieira, a ideia era que isto animasse com dois amigos e excelentes bloggers e deixasse de ser o meu blogue. Foi o que aconteceu. Quando alargámos à Andreia Peniche, ao Bruno Sena Martins, ao Miguel Cardina, ao João Rodrigues, ao Sérgio Lavos e à Ana Mafalda Nunes queríamos que a diversidade de escritas e de interesses e alguma proximidade política transformassem o Arrastão num blogue colectivo mais completo. Pelo menos no início, foi o que sucedeu.

 

Quando passei a ter um espaço de opinião diária no Expresso Online, ficou claro para mim que seria impossível fazer mais do que republicar os meus textos aqui (escrever textos de opinião, com cabeça tronco e membros, todos os dias, dá muito trabalho). E esperar que os restantes fossem contribuindo para as despesas da casa. Com exceção do Sérgio, que o foi fazendo com galhardia e muito brilho, os restantes, por uma e outra razão, acabaram por deixar de ter uma participação muito regular. Quando também o Sérgio passou a ter menos disponibilidade o Arrastão transformou-se num espelho do que escrevo no Expresso todos os dias com algumas boas participações, mas esporádicas, de outros. E imagino que isso foi desmobilizando os restantes participantes.

 

Porque gostamos uns dos outros e porque o Arrastão, tendo oito anos e oito milhões de leitores acumulados, tornou-se quase numa instituição blogosférica, fomos adiando o fim inevitável. Mas a verdade é que o blogue foi-se degradando. O tempo de aprovação dos comentários era a demonstração mais calara disso mesmo. O crescimento de redes sociais como o Facebook e o Twitter, onde cada um de nós vai dando as suas bicadas, é capaz de ter ajudado mais um bocadinho.

 

A decisão de encerrar o Arrastão foi natural e não tem qualquer drama. Todos nós continuaremos a escrever por aí. É provável que nasçam novos projetos coletivos onde estaremos, que alguns venham a integrar blogues já existentes e que outros regressem aos seus projetos individuais. E todos usaremos rede que não existiam quando o Arrastão nasceu. Sim, quando o Arrastão nasceu o Twitter, que poucos conheciam, tinha acabado de ser criado, o Facebook ainda não permitia inscrição a toda a gente e até o YouTube tinha apenas um ano. Ou seja, os blogues eram um dos poucos espaços na Internet onde se podia debater política aos olhos de todos. Hoje há mais do que isso e qualquer projeto coletivo interessante tem de ter esta nova realidade em conta.

 

O meu espaço de opinião individual, esse, continua no mesmo lugar. Todos os dias continuarei a escrever no Expresso Online, na minha coluna Antes pelo Contrário (ainda hoje o fiz). E a mandar bocas e a partilhar os meus textos nas minhas contas de Facebook e Twitter. Quando a nós, bloggers do Arrastão, vamos fazer uma jantarada, pedir muitas facturas no fim para entrarmos no sorteio e, depois disso, tenho a certeza que nos encontraremos noutros lugares.

 

Um abraço e até já. 

Fim

Sérgio Lavos, 20.01.14

Poderia embarcar na melancolia de um projecto que chega ao fim, lamentar o que poderia ter sido feito para que continuasse ou recordar tudo o que de bom o Arrastão representou - primeiro como blogue a solo do Daniel (do qual eu já era leitor assíduo), depois como colectivo ao qual tive o orgulho de pertencer. Não vale a pena nenhuma das três opções. O Arrastão acaba porque teria de acabar, e será lamentado por quem mais merece de nós, enquanto autores: os seus leitores. O colectivo prolongava-se nas trocas de comentários das caixas dos posts, e isso sempre foi, para o bem e para o mal, o que nos distinguia de outros. Noutro sítio, aqui mesmo ao lado ou mais longe, continuarei a dar o meu mínimo contributo para combater o pensamento único e o predomínio da direita, e o dano irreversível que está a ser infligido ao país. Vemo-nos por aí. A História nunca tem um fim.

 

Adenda: relembro, a quem estiver interessado, que continuo pelo Twitter, no Facebook, e no meu blogue unipessoal, o Auto-retrato, de agora em diante mais dedicado à política.

O fim do Arrastão

Daniel Oliveira, 20.01.14

Na próxima quarta-feira, 22 de janeiro, quase oito anos depois de ter nascido e com 8,3 milhões de leitores acumulados, o Arrastão vai fechar as portas. Nasceu como blogue individual, depois foi casa de três, acabou cheio de amigos. Mas como todos os estabelecimentos, teve os seus tempos de glória e depois chegou o ocaso. E dá-se o caso de, no último ano, a produtividade desta empresa ter caído muito. Por isso, em RGA, o colectivo desta cooperativa decidiu que estava na hora de fechar as portas e de abandonar a nossa zona de conforto. Nos próximos três dias, quem se quiser despedir terá oportunidade de o fazer. Sendo certo que pelo menos alguns de nós andarão, como o outro, por aí.

 

A Comissão Liquidatária

Vamos brincar à política

Daniel Oliveira, 20.01.14

 

 

Deixo o tema da co-adopção e da adopção por parte de casais do mesmo sexo, assim como os limites do instituto do referendo, para outro texto. Não apenas para garantir alguma economia argumentativa, mas para não misturar uma conversa séria com a palhaçada a que assistimos na última sexta-feira. Hoje, trato do lixo.

 

Muito resumido: a maioria dos deputados, onde se incluíram 16 do PSD, aprovou a lei que permite a co-adopção de crianças por parte de casais do mesmo sexo. A mesma maioria chumbou a adopção. Foram estes deputados e não outros, foi nesta legislatura e não noutra, que tudo isto se passou. Durante meses, depois dessa aprovação que resultou da liberdade de voto que foi dada aos deputados do PSD, houve um longo debate na especialidade. Foi criado um grupo de trabalho - coisa que não é obrigatória - e ouvidas organizações e especialistas. Os deputados negociaram. Tudo certo, sem falhas e de forma invulgarmente exemplar, para que a versão final da lei já aprovada fosse feita com todos os dados fundamentais para uma decisão informada. Hugo Soares, líder da JSD, foi um dos deputados que fez parte desta comissão. Ali nunca exigiu qualquer referendo.

 

Já em cima da votação final, cinco meses depois da aprovação na generalidade e dos trabalho desta comissão, o deputado tirou da cartola, sem ninguém perceber porquê, o tal do referendo. Quando a ideia do referendo surge caída do céu aos trambolhões e em completo desrespeito pelo trabalho parlamentar até se propõe que seja em simultâneo com as eleições europeias, o que é legalmente impossível. Tal era a ponderação da coisa. São apresentadas na proposta de referendo duas perguntas: sobre a co-adopção e adopção. Uma sobre uma lei aprovada, outra sobre uma lei chumbada que ninguém voltou a propor. Ou seja, dois assuntos diferentes (coisa que a lei orgânica dos referendos não permite) misturados, sendo que a segunda pergunta é sobre uma proposta que ninguém está a fazer, o que torna o referendo um pouco bizarro.

 

Não uso, nunca usei, o argumento das prioridades. As sociedades conseguem ter vários debates em simultâneo e por estarmos em crise não estamos impedidos de pensar noutros assuntos e em discuti-los e sobre eles deliberar. Mas um referendo (como disse, a adequação deste tipo de consulta popular ao tema deixo para outro texto, talvez amanhã) exige uma mobilização geral para que o debate seja realmente nacional e a participação seja minimamente relevante. Parece-me impossível acreditar que, no meio duma crise económica destas dimensões e em vésperas de eleições europeias e das negociações para a nova fase da austeridade (seja resgate, programa cautelar ou outra coisa), mobilizar o país para um debate tão específico é uma impossibilidade prática. Caso este referendo avançasse, é provável que votasse apenas uma minúscula minoria de convencidos dum lado e do outro, não dando qualquer representatividade ao referendo. O único resultado seria desacreditar do instituto do referendo.

 

Claro que este referendo não vai acontecer. Se não for chumbado pelo Tribunal Constitucional, será vetado pelo Presidente da República. A criancice é de tal forma evidente e o consenso nacional contra este disparate é tal, que não tem como passar daqui. E estou convencido que foi mesmo apresentado de forma a que não passasse disto. O pior é que, no caminho, a maioria atirou mais uma acha para a fogueira onde arde a credibilidade do Parlamento. E desacreditou ainda mais a democracia. E, o que é mais extraordinário, tudo isto aconteceu contra a vontade da maioria dos deputados, que se limitaram a fazer este triste papel por pura obediência.

 

O que levou a maioria a levar isto até ao fim? Com um empenho nunca visto, tendo sido, pela primeira vez nestas matérias, imposta disciplina de voto aos deputados do PSD. Só pequenas guerras internas do PSD, desagradado com o resultado da liberdade voto dos deputados, o podem explicar. Só que escolheram o pior momento e o pior tema para tão reles jogo político. O tempo é de desconfiança generalizada nas instituições democráticas. O tema envolve pessoas concretas, famílias e crianças que existem. E que veem umas dezenas de irresponsáveis, acompanhados por gente incapaz de dar um murro na mesa perante tamanha idiotice, a brincarem com as suas vidas.

 

Na última sexta-feira assistimos ao que de pior existe na política: a leviandade dos que julgam que a política é apenas um exercício lúdico a usar a vida dos cidadãos para as suas mesquinhas demonstrações de poder. Quando o Presidente da República ou o Tribunal Constitucional puserem um ponto final a isto o assunto morrerá. Mas foi mais um prego no caixão do democracia representativa.

 

Publicado no Expresso Online

Cérebros em saldo

Daniel Oliveira, 17.01.14

 

GRÁFICO DO PÚBLICO

 

A prioridade de investimento na Investigação e Desenvolvimento (I&D) é um dos poucos consensos nacionais virtuosos das últimas décadas. Isso levou a uma autêntica revolução neste sector. Portugal, que em 1986 estava na cauda da cauda da CEE em número de investigadores (ou em atividade diretamente ligada à investigação), pode apresentar hoje números europeus bastante atrativos.

 

Uma das queixas, nesta matéria, é que, apesar deste salto, temos menos doutorados a trabalhar nas empresas do que a maioria dos nossos parceiros europeus. É verdade. E isso tem muito a ver com o atraso estrutural do nosso tecido produtivo, muito baseado em serviços localizados, protegidos e que acrescentam pouco valor ao que produzem, e do ainda reduzido investimento privado em I&D. A maioria das empresas tem demorado algum tempo a aproveitar a qualificação da nossa mão de obra. E não é só em relação aos nossos doutorados.

 

Ainda assim, os sectores que hoje se mostram mais competitivos (o calçado ou o vinho) e que têm conseguido contrariar o ambiente de crise são os que aproveitaram (e acompanharam) este enorme investimento em I&D. Portugal tem, apesar de todos os erros e do euro, que dificultou a vida à nossa economia, mais capacidades para ser competitivo hoje do que tinha há 20 anos. Porque é mais qualificado. Isso resulta dum trabalho de décadas. E não nos enganemos: como nunca poderemos competir com a mão de obra mais barata, apenas quem aproveite o trabalho qualificado e a inovação científica e tecnológica terá algum futuro no mercado aberto. (Apesar de aceitar esta abordagem, deixo para uma nota final o excesso de simplicidade desta visão*.)

 

As últimas duas décadas foram, nesta matéria, duas décadas ganhas. Não terá sido o único, mas Mariano Gago, como ministro da Ciência, é talvez o rosto mais evidente desse enorme salto científico e cultural. O que lhe tem merecido o respeito generalizado, à esquerda e à direita.

 

Na evolução da investigação científica as bolsas atribuídas pelo Estado têm um papel central. É assim em todo o lado e ainda mais em países com algum atraso económico, onde falta massa crítica às empresas. Sobretudo às mais pequenas, que representam uma grande parte da nossa economia. As bolsas de doutoramento e pós-doutoramento garantidas pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) chegaram, em 2007, a 2031 e a 914, respetivamente. Um número europeu e que resultou do trabalho de vários governos.

 

Para além das bolsas, houve um esforço para dotar os centros de investigação de pessoal e meios e preparar a urgente renovação dum sector. Para permitir que tal acontecesse, Mariano Gago criou vários tipos de contratos, para investigadores reforçarem os quadros dos centros de investigação, nomeadamente no âmbito dos Laboratórios Associados e do programa Ciência. Tratava-se duma situação de precariedade (na maior parte dos casos, os contratos eram de 5 a 10 anos), que ninguém deseja. Mas a comunidade científica vivia na convicção de que pelo menos os melhores seriam absorvidos pelo sistema quando a renovação de pessoal acontecesse.

 

Por fim, assistimos todos os anos nas últimas duas décadas a um aumento do investimento nacional (em percentagem do PIB) em I&D. Em 1995 o investimento público em I&D estava em 0,4% do PIB, em 2012 estava em 0,9%, apenas a uma décima do defendido como ideal pela União Europeia. Infelizmente, estamos muitíssimo longe dos recomendados 2% do PIB em investimento privado em I&D (é menos de metade). Ainda assim, também esse teve uma evolução paralela e semelhante ao que aconteceu no sector público.

 

Infelizmente, os últimos três anos romperam com o consenso político que vigorava até aqui. Aliás, um dos principais papéis de Nuno Crato tem sido romper com os melhores consensos que vigoram na sociedade portuguesa, alimentando-se, para o fazer, dos piores lugares comuns que nela medram com facilidade: a nossa escola é facilitista (afinal, segundo os relatórios do PISA, há 10 anos que melhoramos a preparação dos nossos estudantes), somos um país de doutores (apesar de termos duplicado o número de licenciados em dez anos, estamos em oitavo lugar a contar do fim na Europa dos 27) e apostamos só na áreas de letras, sem interesse económico (somos o país europeu onde mais aumentaram as licenciaturas em ciências).

 

Regressando à vaca fria. Desde 2010, o número de bolsas da FCT, sem as quais a investigação científica perderá muito mais do que o dinheiro que será poupado, começaram a cair. Mas nada que tenha paralelo com a queda a pique que aconteceu este ano. Foram divulgadas, na quarta-feira, as bolsas atribuídas. Trata-se duma hecatombe na investigação científica nacional. Dos 3416 candidatos para bolsas de doutoramento, só 298 as viram aprovadas. No caso dos pós-doutoramentos, os candidatos foram 2305 e só 233 a vão receber. Num e noutro caso, os números estão abaixo dos 10% de aprovação, coisa nunca vista (nas ciências sociais, dispensáveis para quem tem vistas curtas, estão abaixo dos 6,5%).

 

No caso dos pós-doutoramentos, houve uma diminuição de atribuição de bolsas de 65% em relação a 2012. Nos doutoramentos, a diminuição foi superior a 70%. É uma razia. Se acrescentarmos os novos "programas doutorais FCT" (muitíssimo mais limitados), geridos pelas universidades e centros de investigação, a redução continua a ser brutal: de 40%. O número de bolsas atribuídas atira Portugal para o ponto em que estava no início dos anos 90. São duas décadas de recuo.

 

Em relação a quem trabalha nos centros de investigação, as coisas estão a seguir o mesmo caminho. A nova geração de investigadores está a sair dos centros de investigação para o desemprego. Os que ficam, com "contratos de investigador FCT", que duram cinco anos e foram criados o ano passado, são muito poucos, até porque estes contratos também visam atrair investigadores estrangeiros. Na realidade, o trabalho regular da maioria dos centros de investigação está seriamente comprometido e Portugal prepara-se para um retrocesso sem precedentes nesta área.

 

A FCT, centro nevrálgico do sistema público de apoio à ciência, que por natureza depende da sua credibilidade, tem visto a sua imagem degradar-se permanentemente, com pequenos escândalos e situações de opacidade muito pouco recomendáveis, sobretudo no que envolveu a nomeação dos seus conselhos científicos. No caso do concurso Investigador FCT, um grupo de investigadores acusou abertamente a Fundação de falta de transparência, coisa nunca antes vista no universo dos investigadores, habitualmente comedidos. A exigência devia começar em casa. Mas, para Nuno Crato, tem sido apenas retórica.

 

Por fim, tivemos, em 2012, a primeira quebra de investimento público (em percentagem do PIB) em I&D dos últimos vinte anos. E não é preciso ser bruxo para perceber que essa queda passará a ser um trambolhão em 2013. Isto quando esse investimento começou a ser reduzir no privado, fruto da crise, logo em 2010.

 

Como disse no início deste texto, as consequências do enorme investimento em I&D, feito nas últimas décadas, só se começaram a sentir recentemente, em alguns sectores exportadores, na inovação tecnológica e com uma geração muitíssimo mais qualificada a entrar na vida ativa. Destruir isto será muito mais rápido. E traduz-se num desperdício de esforço e investimento que não tem perdão.

 

Temos falado muito da perda de pessoal qualificado. Estamos basicamente a falar de licenciados ou de jovens com formação técnica específica. Mas o que agora preparamos é a fuga dos mais qualificados entre os qualificados: doutorados, pós-doutorados e investigadores. Sem forma de sobreviver ou de progredir na carreira, irão fugir daqui. O dinheiro que gastámos, e que tanta falta nos fazia, será aproveitado por outros países, sem que isso tenha qualquer retorno. Andámos, no fundo, a formar pessoas para os outros. Os que não conseguirem, por compromissos familiares, pela idade ou por a sua área de formação apenas ter utilidade em Portugal, ou ficarão inativos ou ocuparão postos de trabalho para os quais estão sobrequalificados. Um país em dificuldades que dispensa a mais qualificada de todas as suas gerações é um país sem visão. Um país que dispensa os mais qualificados dessa geração é irresponsável.

 

Tenho ouvido, do governo, que não quer assentar a competitividade portuguesa em baixos salários. A realidade diz o oposto, mas seria inteligente que não quisesse. Haverá sempre países mais baratos e com mais mão de obra disponível. A alternativa a isso é acrescentar valor ao que se produz, ter um Estado servido por gente preparada, qualificar a mão de obra e apostar na investigação que levou, por exemplo, a Universidade de Aveiro a, em parceria com a PT, criar coisas tão globalizadas como o cartão pré-pagou ou a Via Verde. Nenhum país no planeta conseguiu promover tudo isto (qualidade, inovação e qualificação) reduzindo o investimento em Investigação e Desenvolvimento, reduzindo bolsas públicas e estrangulando a investigação científica. Ficamos por isso a perceber que não há qualquer rumo, qualquer estratégia, qualquer visão por parte deste governo.

 

*Tenho alguma dificuldade em comentar as declarações de Pires de Lima, que, para justificar este corte criminoso (sem o assumir), lamenta que uma parte da investigação financiada não chegue "à economia real" e não tenham "resultados concretos que beneficiem a sociedade". É de esperar que se tenha de explicar a alguém com poua informação que o processo de investigação científica é mais ou menos cumulativo e que há muitas descobertas aparentemente inúteis a montante de cada utilidade. Que os cientistas aprendem uns com os outros e não é fácil avaliar assim, de forma linear e clara, à partida, a imediata utilidade prática duma investigação. Que nenhum país que aposta na investigação consegue esse milagre que ele pretende: uma ciência pronta a ser consumida pela sociedade. Que a ciência não é um pronto-a-vestir e que não há um "simplex" que garanta o conhecimento na hora. Que muitas coisas que hoje multiplicam riqueza nasceram de descobertas que não procuravam o lucro e que até pareciam de pouca utilidade para a "vida real". Arrisco-me à suprema das heresias: que as empresas não são o único destinatário nem da investigação científica, nem da existência humana. Há a saúde, a educação, a cultura e a pura e simples procura do conhecimento, coisas de que os humanos, esses preguiçosos, dependem desde que existem para se considerarem como tal. Mesmo antes de haver empresas. Que há áreas científicas com muito pouco interesse para as empresas, como a História, por exemplo. Devemos acabar com elas? E que o tempo da ciência não é, porque não consegue ser, muitas vezes, o tempo do retorno imediato do investimento. E, no entanto, sem a investigação que não garante "resultados concretos" a curto-prazo quase tudo o que as empresas vendem dificilmente teria chegado a ser inventado. Explicar isto a um ministro que não me parecia ser ignorante é embaraçoso. Não para quem explica, mas para o ministro.

 

Publicado no Expresso Online

O Muro de Berlim dos socialistas

Daniel Oliveira, 16.01.14

A viragem "liberal" de Hollande, com a redução dos encargos das empresas com o trabalho (em troca duma promessa, sem qualquer conteúdo real, de criação de emprego), levou a que alguns observadores se referissem a ele como "François Blair" ou o "Schroeder francês", ligando o líder do PSF às duas figuras centrais do processo de neutralização ideológica do centro-esquerda europeu. Esta "viragem" é a consequência lógica da falta de rumo e de programa político dos socialistas europeus em geral e os franceses em particular. Na realidade, não há nada mais confrangedor do que ver o comportamento atarantado do centro-esquerda durante esta crise. Que, em toda a Europa, pode ser verificada pela aceitação generalizada do Tratado Orçamental (que inviabiliza qualquer política social ou expansionista em tempo de crise) ou pela escolha de Martin Schulz, apoiado por Angela Merkel e sem que alguma coisa de substancial a distinga da chanceler, para suceder a Durão Barroso.

 

Esta conversão final de Hollande resulta da ausência duma narrativa alternativa (socorro-me do contributo doutro socialista famoso) para explicar esta crise. Sem ela, estão condenados a chegar às mesmas conclusões que aqueles a que supostamente se opõem. Esses sim, têm uma narrativa: esta crise resulta dum Estado Social insustentável que levou a défices e dívidas públicas incontroláveis e dos custos excessivos da sua mão de obra que levaram à perda de competitividade da Europa. No meio, já ninguém se parece lembrar de como e onde nasceu realmente esta crise financeira e de que forma ela se alastrou pela Europa. Não seria necessário fazer grande esforço para encontrar uma "narrativa" alternativa. Bastaria consultar a cronologia dos acontecimentos.

 

A narrativa agora dominante é simples e leva a um programa claro: privatização ou redução das funções sociais do Estado, reduções fiscais para as empresas, redução de rendimentos do trabalho e perda de direitos sociais e laborais. Como os socialistas e social-democratas não têm, apesar de todas as evidências, outro diagnóstico para apresentar também não têm programa. São baratas tontas à procura do seu próprio lugar. É um equívoco pensar que o problema dos socialistas portugueses, franceses, espanhóis ou alemães são as suas lideranças sem carisma. Isso não é causa, é consequência. Seguro ou Hollande são os líderes certos para o atual discurso socialista: um redundante nada.

 

Só que em democracia é necessário haver alternativas. Para que os cidadãos não fiquem condenados a uma qualquer fatalidade e para que não sejam obrigados a procurar fora da democracia a solução para os seus problemas. Uma das razões porque me oponho a "governos de salvação nacional" é exatamente porque, se falham, deixam os cidadãos sem um "plano B" dentro do próprio sistema democrático. E é normal que essa alternativa seja garantida por forças que, pela sua implantação política e eleitoral, pelo seu conhecimento do aparelho de Estado e pela sua história, estejam em condições de liderar um governo. Mais: neste caso concreto, seria normal que fossem os socialistas e os social-democratas (não haja confusão com os "social-democratas" portugueses) a defenderem o Estado Social que é, em grande parte, criação sua. E a ter, já agora, uma visão alternativa sobre os caminhos do projeto europeu que ajudaram a construir.

 

A desistência dos socialista em apresentar alternativas obrigará, naturalmente, a uma alteração do quadro político na Europa. Ela já está, na realidade, a acontecer. Pode materializar-se no crescimento de forças à esquerda de socialistas e social-democratas. Por via da aliança entre estes e dissidentes socialistas, como aconteceu, muito timidamente, na Alemanha, com o Die Linke, ou por via do crescimento da esquerda radical, como sucedeu na Grécia, com o Siryza. Pode resultar no crescimento da extrema-direita, como está a acontecer em França, em que a Frente Nacional arrebanha o eleitorado socialista, baseando o seu discurso numa agenda social tradicionalmente de esquerda. Pode terminar no estilhaçar o sistema partidário à esquerda, com o crescimento de fenómenos inorgânicos, como em Itália, com o Movimento Cinco Estrelas. Ou pode acontecer que haja, dentro dos próprios partidos socialistas e social-democratas, uma revolta interna e que uma nova geração de políticos, que não está comprometida com os erros do passado, volte a dar aos socialistas um papel ideologicamente relevante (não é o mesmo que relevância eleitoral). Ainda não aconteceu em lado nenhum.

 

Uma coisa é certa: a política tem horror ao vazio. E é isso mesmo que a desistência socialista está a criar: um enorme e perigosíssimo buraco político, pronto a ser preenchido por o que há de melhor e, sobretudo, o que há de pior na Europa. Se não mudarem de rumo e insistirem em não ser mais do que uma versão mole dos que hoje dominam o pensamento político europeu, os socialistas estarão condenados a ser, como são os comunistas em quase todo o espaço europeu, uma relíquia do passado. Os opositores do modelo social europeu dirão que a única forma do centro-esquerda se modernizar é ficar igual a eles. É natural que seja esse o seu desejo. Mas é evidente que não lhe trará grande futuro. Se nada mudar, esta crise pode bem vir a ser o Muro de Berlim dos social-democratas.

 

Publicado no Expresso Online