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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Sintomas mórbidos

João Rodrigues, 30.08.10


"Enquanto a velha ordem morre e a nova não nasce, ainda surge uma grande variedade de sintomas mórbidos." Esta frase, da autoria do filósofo político Antonio Gramsci, descreve na perfeição a crise e a política com "p" pequeno do bloco central, aquela política que se dedica a tentar manter o velho, ou seja, as estruturas do nosso capitalismo medíocre, uma máquina de gerar pobreza e desemprego.

Uma política onde as convergências fundamentais entre Sócrates e Passos Coelho são mascaradas com debates acessórios e onde os temas fundamentais são embrulhados numa nebulosa de oportunismo e de desrespeito por todos os contratos. Os benefícios fiscais são um dos sintomas mórbidos.

A campanha eleitoral das últimas legislativas ficou marcada pelas acusações de Sócrates a Louçã: as propostas razoáveis deste para limitar ou acabar com os socialmente regressivos benefícios fiscais à especulação financeira ou à saída das classes privilegiadas da saúde e do ensino públicos, a melhor forma de os enfraquecer a prazo, foram classificadas por aquele como um dos maiores ataques às sempre pardas "classes médias".

Passaram uns meses e, já se sabe, para Sócrates o mundo mudou em quinze dias. Rasgue-se o programa eleitoral do PS e acorde-se com o PSD uma política de austeridade onde a fatia de leão do ajustamento cai sobre os trabalhadores assalariados mais pobres e sobre os desempregados; as limitações aos benefícios fiscais são um dos poucos vestígios de justiça social. De repente, os sociais-liberais do PS, como Correia de Campos, por exemplo, apontam, com todos os dados na mão, a flagrante injustiça, antes tolerada, dos benefícios fiscais à saúde. Morbidez.

Passos Coelho, por sua vez, assinou um acordo de austeridade com o PS, mas ameaça rasgá-lo, provavelmente sob pressão dos grupos económicos que agora o apoiam e que querem comer a fruta doce das rendas em áreas como a saúde, com muito financiamento público à mistura. Morbidez.

Entretanto, a morbidez intelectual acompanha a política. Num dos países mais desiguais da Europa, os economistas do velho reinam na televisão, porque se abandonou a ideia de que o debate deve ter contraditório. Defendem, por exemplo, que temos um "Estado social escandinavo". Um luxo. Só para terem uma ideia, o peso da pouco progressiva receita fiscal e contributiva era de 34,8% do PIB no nosso país, em 2009, e, em média, de 45,8% nos países escandinavos. Estes até tendem a ter uma taxa de emprego superior e regulação muito mais exigente, vejam lá. E, talvez, menos morbidez política, até porque a maior igualdade económica gera mais confiança social e mais participação política.

Em Portugal, o silêncio ou o apoio destes economistas quando se corta nas prestações que protegem, e pouco, os mais pobres contrasta com o chinfrim de cada vez que se corta levemente em alguns dos privilégios dos que, sei lá, não podem deixar de colocar os filhos nos colégios privados. Outro sintoma de morbidez. Quando é que o novo nasce?

Crónica i

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