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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Só nos saem duques

João Rodrigues, 17.09.10


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O Público fazia ontem
capa com as habilidades manhosas de um João Duque, cujas propostas para reforçar o chamado capitalismo de desastre já critiquei. Hoje, o Público só pediu opinião a economistas neoliberais da área do PSD e do CDS, muitos com pesadas responsabilidades no desastre económico do país – das privatizações à politica do escudo forte. Políticas que favoreceram a lumpemburguesia e a inserção dependente do país. Os moralistas das finanças públicas estão mal equipados para compreender os nossos problemas e para propor soluções e limitam-se a lançar números para o ar, como o dos 2,5 milhões de euros de dívida pública por hora, para assustar e nunca para esclarecer.

Na realidade, a abordagem moralista é hipócrita, estreita e equivocada. É hipócrita porque os economistas que defendem reduções das despesas sociais, reduções dos direitos laborais e correspondentes cortes salariais tendem a acumular pensões e outras sinecuras públicas ou privadas. É estreita porque estes economistas falam como se os nossos problemas pudessem ser compreendidos fora dos problemas de uma zona euro totalmente disfuncional; falam como se a politica monetária pudesse ser separada da politica orçamental, como se a moeda caísse do céu aos trambolhões e como se não fosse uma criação política do soberano. A abordagem moralista é, finalmente, equivocada: o Estado não se pode comportar como uma família, sob pena da economia colapsar. Vamos lá tentar desmontar a fraude económica, aquela que acha, por exemplo, que os nossos problemas radicam num suposto regabofe salarial generalizado. Esta é fácil e já aqui a desmontei com a ajuda de outros economistas, infelizmente pouco ouvidos. Não me repito. Vamos então às finanças públicas, à catástrofe eminente e aos meios para a evitar.



Primeiro alguns dados: a dívida pública portuguesa representará, em 2010, cerca de 85% do PIB, em linha com a média da zona euro (84,5%). Em 2007 era de  63,6% (66% na UE). Em Espanha será, em 2010, de 66% (36% em 2007) e na Irlanda de 77% (25% em 2007) e na Grécia de 125% (95% em 2007). As diferenças iniciais prendem-se com o dinamismo das economias espanholas e irandesa à boleia de uma bolha imobiliária, que entretanto rebentou no contexto da crise mundial. As dinâmicas de diminuição ou aumento da dívida pública quase só dependem do andamento da economia e da posição orçamental correspondente. Senão vejamos o que aconteceu na zona euro: 0,6% de défice em média no ano de 2007; 6,3% do PIB em 2009. Entretanto, houve uma coisa chamada crise económica do neoliberalismo que fez com que as receitas públicas diminuíssem fortemente e as despesas públicas aumentassem, embora menos do que deviam. Foi isto que, ao injectar dinheiro na economia, evitou o colapso generalizado, independentemente da critica que possamos fazer às opções tomadas e à ausência total de reformas estruturais pós-liberais.

A situação das finanças públicas revelou as falhas da zona euro, que estamos fartos de assinalar – de um BCE que só muito relutantemente se comporta como um banco central à falta de um orçamento comunitário com peso –, mas revelou sobretudo os problemas de endividamento externo das periferias, a contrapartida necessária da posição perversa da maior economia da zona euro, a Alemanha. Aqui o problema é sobretudo das empresas, das famílias e das instituições financeiras: com a excepção da Grécia, a fatia de leão do endividamento externo é privado. Em Portugal, por exemplo, o endividamento público representa cerca de 16% do endividamento total e 26% do endividamento externo.

O endividamento privado reflecte, em parte, os problemas de falta de competitividade da economia portuguesa, que não estão relacionados com os custos salariais, mas com problemas estruturais da nossa economia, fruto de políticas enviesadas para a captura de sectores rentistas em detrimento de uma politica industrial transformadora. E agora? A abordagem dos balanços financeiros sectoriais ajuda a perspectivar a coisa, a partir de uma igualdade contabilística irrefutável, mas a que os moralistas não prestam atenção: a soma dos saldos dos sectores externo, público e privado, tem de ser igual a zero. Portugal teve um défice externo de 10% do PIB e prevê-se que desça para 8% em 2012. O governo quer descer o défice público de 8% para 3% do PIB em 2012. Isto tem como contrapartida necessária um aumento do endividamento privado, que teria assim de passar de 2% para 5% do PIB. Este último dificilmente acontecerá, o que significa que ou o défice externo diminui, o que é muito difícil neste contexto porque não temos a arma da desvalorização cambial e está tudo apostado nesta estratégia, ou a economia irá contrair, num processo deflacionário, tornando os esforços de cortes no défice público inglórios em termos relativos. Tentar cortar o défice público neste contexto só eliminará, aliás, uma das poucas fontes de crescimento. Acentuar-se-á o desemprego, a quebra de rendimentos e a deflação que faz aumentar os problemas de quem está endividado e no fim, perversamente, não se resolvem os problemas das contas públicas: o esforço dos privados para reequilibrar os seus balanços, com cortes no consumo e no investimento, gera, neste contexto, inevitavelmente um aumento do défice público. Isto é ainda pior quando estas políticas se generalizam à escala do continente e para lá dele.

Que fazer? De acordo com os estudos empíricos disponíveis, a altura para colocar as contas públicas na boa trajectória é quando a economia está a crescer. Até lá, a União deve pôr o BCE a fazer o que os bancos centrais dos países verdadeiramente soberanos fazem e que já descrevi na última crónica do i. Isso e aumentar as transferências dos países com excedentes para os países com défices. A Alemanha, aliás, está a matar parte dos seus mercados. Também não é de descartar uma renegociação da dívida, o que implicaria uma aliança diplomática dos países da periferia para enfrentar os credores colectivamente, diminuindo os juros onerosos e aumentando prazos de pagamento, como se propõe detalhadamente aqui. A instituição de mecanismos de protecção selectiva, que permitam uma política industrial digna desse nome, como já aqui defendi, ajudaria muito. Se a Alemanha começasse a redinamizar o seu atrofiado mercado interno, terminando com uma politica perversa de contracção salarial, seria ainda melhor. A alternativa é o fim do euro ou a perda definitiva de toda a soberania, com o país a ser desmembrado de acordo com o interesse dos credores e com a economia a ser destruída a um ritmo mais acentuado. Esta é a “solução” dos duques que nos saíram na rifa.

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