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Arrastão: Os suspeitos do costume.

O espírito que está ausente deste orçamento

João Rodrigues, 17.10.10


Quem não anda distraído já percebeu que, ao contrário do que afirma Teixeira dos Santos, as escolhas orçamentais assimétricas vão aumentar brutalmente a fractura social num dos países com as mais elevadas desigualdades económicas da Europa. Os problemas sociais só podem aumentar à medida que a economia se vai tornando cada vez menos civilizada. O bloco central está a reforçar, por via orçamental, o multiplicar da desigualdade. Lindo serviço.

A investigação em economia política tem indicado que os países onde o essencial das normas salariais e das condições de trabalho é definido fora da empresa, em negociações centralizadas entre patrões e sindicatos, registam níveis de desigualdade antes de impostos muito inferiores aos países de regime liberal. Paradoxalmente, ou talvez não, os primeiros também redistribuem muito mais através da fiscalidade e dos serviços públicos, ou seja, através das escolhas orçamentais. O chamado multiplicador da igualdade consiste nesta virtuosa conjugação antes e depois de impostos.

O Espírito da Igualdade - Por que razão sociedades igualitárias funcionam quase sempre melhor, de que já aqui várias vezes se falou, lançado originalmente em 2009, é um livro indispensável no actual contexto. No Le Monde diplomatique – edição portuguesa deste mês volto à carga a propósito da edição portuguesa de 2010. Aqui fica o essencial da recensão.



O subtítulo sintetiza o objectivo deste notável e muito bem traduzido livro: mostrar “por que razão as sociedades mais igualitárias funcionam quase sempre melhor”. Que igualdade? Esta pergunta, formulada há já alguns anos pelo economista Amartya Sen, tem sempre de ser colocada quando se tratam estes temas. Assim como a questão: igualdade para quê? Uma medida do sucesso deste livro está na sua capacidade de dar respostas cabais a estas duas perguntas. As respostas ancoram-se numa exigente investigação empírica e na melhor teoria realista, a que escrutina os processos, os mecanismos causais que estão por detrás das regularidades, dos padrões identificados. Só a partir daqui é possível oferecer soluções de política convincentes. Estas devem ser compatíveis com o que sabemos sobre o comportamento humano e a sua natureza; sobre a diversidade das relações sociais e os seus impactos naquilo que cada individuo pode ser e fazer com a sua vida. Este livro também é um modesto contributo para o processo, em curso, de unificação das ciências humanas, entendidas em sentido amplo.

Richard Wilkinson e Kate Pickett, dois especialistas internacionais na área dos determinantes sociais da saúde, demonstram convincentemente que as desigualdades materiais, medidas pela diferença de rendimentos entre os 20% do topo e os 20% da base da pirâmide social, são o factor mais poderoso na moldagem das relações sociais nos países ricos, afectando o bem-estar social como nenhum outro indicador. Fazem-no a partir de uma impressionante recolha da estudos científicos, uma parte dos quais foi resultado da sua aturada investigação. Tudo para concluírem, para o grupo de vinte e três países desenvolvidos analisados, que quanto mais igualitárias são as sociedades menos intensos são os problemas sociais e mais elevada é a qualidade de vida, concebida de forma ampla. O rendimento per capita revela-se irrelevante neste contexto. Os países mais desiguais têm, globalmente e para os vários escalões sociais, piores resultados na área da saúde pública e níveis muito superiores de sofrimento social evitável.

Como bons cientistas sociais, os autores não confundem correlação com causalidade. A sua análise estatística mostra um padrão claro e sistemático de associação entre cada um dos problemas abordados e as diferenças entre ricos e pobres, mostrando ao mesmo tempo que nenhuma outra variável exibe uma relação causal com a mesma expressão. Este é um ponto de partida para uma detalhada exploração dos mecanismos causais que permitem dizer que as desigualdades de rendimentos são a principal causa dos problemas escrutinados. De outra forma, como explicar que países tão diferentes como Portugal, os EUA ou o Reino Unido exibam uma performance tão medíocre em termos de indicadores sociais e que o Japão ou a Suécia, países infinitamente mais igualitários, sejam sociedades bem mais decentes? Os autores dão uma grande importância à forma como as desigualdades de rendimento criam um filtro, uma carapaça, que entorpece as relações sociais cooperativas entre os indivíduos, que aumenta a conflitualidade e o preconceito de classe, que sabota os sentimentos morais, que cria armadilhas sociais em que todos caímos: arrogância de um lado, humilhação e angústia do outro.

O poder da mensagem deste livro deveria contribuir para remeter para o caixote do lixo das ideias abjectas a célebre formulação de Peter Mandelson, um dos obreiros da defunta terceira via: “estou intensamente relaxado com o facto de as pessoas se tornarem obscenamente ricas”. Pouquíssimas pessoas, claro. Agora até o conservador David Cameron é obrigado a referir-se elogiosamente ao livro durante a campanha das últimas eleições legislativas britânicas. Os estudos de opinião dizem que o diagnóstico dos autores é largamente partilhado: a desigualdade económica é o problema. No entanto, no seguimento da publicação deste livro surgiu uma pequena indústria conservadora de “estudos” que tentaram demolir as suas conclusões, lançando também a dúvida sobre as intenções totalitárias destes perigosos igualitários, que defendem maior progressividade fiscal, menos desigualdades antes de impostos, conseguidas com maior poder dos sindicatos, um Estado social mais generoso, um maior controlo das grandes empresas.

A resposta dos autores a estas críticas, publicada no seu excelente sítio na internet (http://www.equalitytrust.org.uk), sublinha um ponto essencial: este livro sintetiza a evidência publicada em revistas científicas de referência escrutinadas pelos pares. Qualquer estudo científico é falível, claro. No entanto, a ciência só progride se lutarmos contra o esforço do dinheiro para distorcer o debate, através dos bem financiados “think-tanks”. Todas as respostas aos críticos serão submetidas a revistas da especialidade; estes que façam o mesmo, dizem-nos Wilkinson e Pickett. Que ganhe o melhor argumento; a evidência mais forte. A “vitória” no campo das politicas públicas depende da correlação de forças política, claro.  Mas se há coisa que a teoria crítica tem de reaprender nestes tempos negros é que há uma distinção crucial entre vitória política, questão de poder e de correlação de forças, e a vitória intelectual, questão de bons argumentos e da sua veracidade. A possibilidade destes também depende da existência de instituições que nutram as melhores práticas científicas.

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