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Arrastão: Os suspeitos do costume.

A esposa submissa

Daniel Oliveira, 25.03.05
PRIMEIRO foi a nomeação de John Bolton como embaixador dos Estados Unidos na ONU. «Se o edifício do secretariado da ONU perdesse dez andares não faria diferença nenhuma», ironizou. «Qualquer reforma deveria ser no sentido de considerar apenas um membro permanente: os EUA», defendeu. Ou seja, o homem certo no lugar certo.

Depois, foi Paul Wolfowitz para a Presidência do Banco Mundial. De forma pragmática, terá de trabalhar com governos de todo o mundo e de toda a espécie. Estão a imaginar melhor para o lugar do que um dos principais arquitectos da aventura iraquiana? A política de exportação dos «valores americanos» terá mais um valioso instrumento.

Era uma tradição: a Europa ficava com o FMI e os Estados Unidos com o Banco Mundial. Mas a tradição já não é o que era. Os EUA vetaram, em 2000, o nome europeu para a presidência do Fundo Monetário. Pode a Europa fazer o mesmo com Wolfowitz? Claro que não. No casamento transatlântico, já se sabe, estamos destinados a fazer o papel da esposa submissa.

Para nos salvar, uma nova teoria está em voga: tudo é o contrário do que parece. Reagan parecia burro e era brilhante. Roosevelt parecia ignorante e era intuitivo. Bush, que parece as duas coisas, só pode ser um génio. A mesma teoria se aplica a Wolfowitz: a escolha é boa porque ele é péssimo para o lugar. É o que se escreve em muita imprensa internacional. No Banco Mundial, um representante dos «neocons» será uma raposa num galinheiro. Excelente. Será ele a interceder pelas galinhas junto da alcateia. E, quem sabe, até pode vir a transformar-se no mais dócil dos galináceos.

E estas são as escolhas de George Bush para a Primavera/Verão de 2005. Era agora que ele ia converter-se ao multilateralismo e aproximar-se da Europa, não era? Os sinais não podiam ser mais animadores.

As damas de Havana

Daniel Oliveira, 25.03.05
TRINTA mulheres desfilaram, esta semana, pelas ruas de Havana. Como as mães da Praça de Maio, na Argentina, arriscam tudo pelos seus filhos e pelos seus maridos. Em Cuba, são conhecidas como as «damas de branco».

Há dois anos, o regime castrista, em apenas três dias, prendeu 75 opositores. Um mês depois estavam todos julgados. No total, 1475 anos de prisão. Não havia dúvidas: tratava-se de perigosos «mercenários ao serviço dos Estados Unidos». As suas profissões são as mesmas de muitos presos políticos em todo o mundo: jornalistas, escritores e intelectuais.

Em todo o mundo, uma parte significativa da esquerda apoia Fidel Castro. E muitos intelectuais, como García Márquez ou Luís Sepúlveda, entregam-se ao apoio a esta ditadura com um especial empenho. A razão, além de uma certa nostalgia pela estética revolucionária, é pragmática: que haja alguém que faça frente à omnipotência do vizinho americano. Há lições que, definitivamente, levam tempo a aprender: os inimigos dos nossos inimigos não são, necessariamente, os mais recomendáveis dos amigos.

É verdade que, com o bloqueio, os Estados Unidos dão a Fidel Castro o adversário externo de que ele precisa. E dão aos cubanos, quando olham para a alternativa que lhes é apresentada em Miami, a confirmação de uma evidência: o problema do poderoso vizinho não é haver uma ditadura em Cuba. Nessa matéria, têm um longo currículo de conivências no continente. O incómodo é bem mais prosaico: aquela ditadura não é a sua ditadura.

Acredito que muitos dos opositores que, em Cuba, se batem contra Fidel Castro serão gente de direita. É normal. O que conhecem da esquerda não é lá muito animador. Mas são quem, no seu país, corre todos os riscos pela decência e pela liberdade. Para mim, chega e sobra. São a minha gente. Eles e as suas damas.

«The Corporation»

Daniel Oliveira, 19.03.05
PSICOPATAS. É assim que o documentário canadiano, que este fim-de-semana estreia em Lisboa, define as grandes empresas internacionais. Sintomas: incapacidade de se reger por uma ética pública, de manifestar preocupação pelo bem comum e de reconhecer a culpa. Dirigidas por funcionários, detidas por uma massa informe de accionistas, a moral é-lhes completamente estranha. O lucro é a medida de todas as suas medidas.

The Corporation conta-nos algumas histórias. De como a Fox News despediu dois jornalistas por eles se recusarem a mentir numa questão de saúde pública que envolvia outra grande empresa, a Monsanto. «Gastámos três mil milhões de dólares com estes canais. Nós é que dizemos o que são as notícias». De como, na terceira maior cidade da Bolívia, uma empresa proibiu a população mais pobre de recolher a água da chuva, porque lhe pertencia. De como uma empresa de vestuário explora o trabalho infantil em países do Terceiro Mundo e gaba-se de ajudar instituições de apoio à infância.

Os seus administradores até podem ser movido pelos melhores sentimentos. Mas a empresa não lhes pertence e não lhes são permitidas extravagâncias éticas. É uma pena, mas o mundo não é perfeito.

Estas empresas dominam hoje grande parte das decisões que se tomam neste Planeta. A Monsanto tenta impedir agricultores indianos de produzirem as suas sementes. A Carlyle compra presidentes. A Halliburton vende guerras. Centenas de empresas patenteiam códigos genéticos, fazendo da nossa identidade o maior negócio do futuro. Estes monstros económicos são um perigo para as nossas democracias, para a nossa liberdade e para a nossa saúde. São estas obras de Frankenstein que aqueles que se dizem liberais vêem como modelo para as nossas vidas. Psicopatas.

O inútil

Daniel Oliveira, 19.03.05
PEDRO Santana Lopes abandonou a Câmara Municipal de Lisboa porque lhe acenaram com o lugar de primeiro-ministro. A curta temporada circense em São Bento chegou para que averbasse o segundo pior resultado da história do PSD. Depois de tamanha humilhação, seria normal que abandonasse, pelo menos por uns tempos, a vida política.

Mas, tratando os lisboetas como idiotas, a vida de autarca como um hóbi, a política como uma brincadeira e Carmona Rodrigues como seu criado, Santana Lopes regressou à Câmara. Lisboa é agora um depósito para quem perde eleições.

Santana não sabe o que fazer da sua vida. Porque não sabe fazer nada na vida. Nem mesmo política, diga-se em abono da verdade. Sabe concorrer a eleições e a congressos. Mas não tem uma ideia com princípio, meio e fim. É incapaz de escolher equipas. Não tem qualquer noção de responsabilidade e bom-senso. Não lê nada, nunca trabalhou realmente em nada e, como qualquer criança, enfada-se de tudo o que exija mais do que cinco minutos de atenção. A obra de Santana Lopes é Santana Lopes. Não tem, nunca terá, outra.

Dirão: mas ele foi eleito para a Câmara de Lisboa. Foi. Mas nem isso lhe dá o direito de regressar. Os cargos para que cada um é eleito são para ser tratados com algum respeito. O voto que se recebe também. Foi isso que lhe foi dito a 20 de Fevereiro e que, aparentemente, ele não entendeu.

Quando Marques Mendes chegar à liderança do PSD, tem duas hipóteses: ou recandidata Santana à Câmara da capital, para o enterrar definitivamente na sua própria derrota, ou o envia para uma saudável e instrutiva travessia do deserto. É o primeiro teste à sua liderança política.

Na fotografia

Daniel Oliveira, 12.03.05
É MAIS uma das suas birras. O CDS enviou o retrato de Freitas do Amaral para o Largo do Rato. Acho inaceitável que o PSD não exija a foto de Lucas Pires e o PND a de Manuel Monteiro. Por mim, a julgar pela sua última entrevista, quero a de Adriano Moreira.

Mas esta é apenas a parte anedótica das reacções à escolha de Freitas do Amaral para ministro dos Negócios Estrangeiros. Se olharmos para a opinião pública portuguesa, veremos que, ao contrário do que se tem dito, Freitas do Amaral está longe de ser um radical. Foi contra a guerra no Iraque. Desconfia desta Administração americana. Opõe-se a soluções unilaterais na resolução de conflitos. Em qualquer dos casos, está em sintonia com a esmagadora maioria dos portugueses. E, já agora, não anda longe das posições da maioria dos governos europeus.

O que se tem dito em alguma imprensa internacional e repetido em Portugal, com a histeria provinciana do costume, revela um muito particular entendimento da democracia. Se bem me lembro, houve eleições há duas semanas. Estranho seria que o novo MNE não reflectisse a opinião maioritária do país. Mas há quem ache que os assuntos internacionais são demasiado importantes para serem deixados à escolha democrática.

Freitas do Amaral merecerá ser atacado se, como já fez algumas vezes na sua vida, apagar o seu passado e desdisser tudo o que disse. Ficará com a sua fotografia no MNE, é certo. Mas entre ele e Jaime Gama ninguém dará pela diferença. Seria pouco, para quem já voou tão alto.

A brincar com o dominó

Daniel Oliveira, 12.03.05
SE UMA couve nasce no deserto, já se sabe, é o efeito-dominó provocado pela intervenção no Iraque. Sem armas de destruição maciça, sem apoio popular à invasão, com uma curta mas já gloriosa história de torturas, há quem viva para encontrar uma razão, delirante que seja, para o desastre que foi esta guerra.

O «Economist» deu o mote e os adidos aqui na província seguiram a linha. Se uma mulher pediu um divórcio no Irão, é o dominó. Se no Líbano o povo pede a retirada da Síria, é o dominó. Se a Palestina elegeu Mahmoud Abbas, é o dominó. No Iraque, já ninguém sabe quem há-de matar ou libertar, mas o que os salva é o dominó.

Só que a intervenção no Iraque não ajudou em nada a laicização de um Estado, que sendo sanguinário, era laico. Pelo contrário, deu, ali e em toda a vizinhança, força às forças mais conservadoras do Islão. Só que, no Líbano, os confrontos entre etnias são história antiga e bastou ver as manifestações xiitas pró-sírias para perceber que o súbito interesse americano na matéria pode bem ter acordado o espectro da guerra civil. Só que, na Palestina, o Parlamento já fora eleito. O que não impediu que muitos se recusassem a reconhecer, então, a legitimidade da liderança de Arafat.

Que o mundo árabe tenha sido sempre assunto pouco interessante para quem acredita que não há civilização onde não se consegue comprar a «Spectator», é coisa que não espanta. Mas por aquelas paragens a história não começou, subitamente, há dois anos, quando guerreiros de sofá deixaram cair uma lágrima furtiva ao ver um 25 de Abril nas ruas desertas de Bagdade.

Escala em Beirute

Daniel Oliveira, 05.03.05
TODOS contra todos, com proveito, como sempre, para alguns. É esta a história do Líbano, marcada, nos últimos 30 anos, pela guerra civil, as ocupações militares estrangeiras e a proximidade explosiva de Israel.

Os sunitas, muçulmanos, foram sempre preteridos pelos colonos franceses em benefício dos maronitas, cristãos. Até aos acordos de Taif, em 1990, onde se fez a mais estúpida divisão de poderes por etnias que alguém alguma vez imaginou. A partir daí, os maronitas perderam influência. A pequena minoria drusa, defensora de um Estado laico, foi sempre relegada para um papel secundário. Os xiitas, que hoje devem ser uma maioria, continuam a ser tratados como minoria.

Franceses, americanos, israelitas e sírios foram apoiando uns e outros, dividindo para reinar. Ao apoio do Presidente sírio Al-Assad à primeira Guerra do Golfo, os «aliados» ocidentais responderam com uma conveniente benevolência perante a progressiva ocupação do Líbano. Uma mão lava a outra, é esta a história do Médio-Oriente.

O assassínio do ex-primeiro-ministro Rafiq Hariri, homem em nada diferente dos restantes líderes árabes, levantou uma justa onda de indignação nacional. A contestação à Síria que daí nasceu transformou-se num salutar movimento pela independência libanesa. Mas, mais uma vez, o Ocidente aproveita o momento. O Líbano, esquecido até há pouco, passou a comover consciências. Exactamente desde o dia em que George Bush escolheu a Síria como inimiga do Mundo Livre. Há muito que o terreno estava a ser preparado nos corredores de Washington. E quando Hariri é morto ninguém espera por certezas para apontar o dedo a Damasco.

A retirada das tropas sírias é um imperativo democrático. Mas atirar gasolina para a fogueira, acordando o fantasma da guerra civil, pode transformar um movimento democrático num simples instrumento de interesses que, mais uma vez, nada têm a ver com o Líbano. Como sempre, Beirute é apenas uma escala para viagens bem mais importantes. Destino: Damasco.

Deixa-me partir

Daniel Oliveira, 05.03.05
A PROTEGIDA de Frankie, Maggie Fitzgerald, que vive em agonia numa cama de hospital, quer que ele ponha fim àquilo. Quer morrer como viveu: sem depender de ninguém. Quer ficar com o melhor das suas memórias. Frankie pergunta a um padre o que fazer e recebe a mesma resposta resignada de sempre: que deixe nas mãos de Deus. Frankie responde: «Não foi a Deus que ela pediu a ajuda. Foi a mim».

Ramón Sampedro, tal como Maggie, é tetraplégico. Viveu 28 anos deitado numa cama. As memórias de uma vida foram-se perdendo e, de repente, para ver mar era preciso fechar os olhos. Como ela, quer ser ele a decidir a vida que não quer ter. Ramón pede ajuda ao Estado que lhe dá a mesma resposta burocrática de sempre: quem o ajudar será um criminoso.

Não se trata de saber se um tetraplégico pode ou não ser feliz. Não sou tetraplégico e sei muito pouco sobre a felicidade dos outros. Sei apenas que a nossa vida não é propriedade colectiva. Que só há liberdade quando somos, o mais que pudermos, donos do nosso destino. E, acima de todas as liberdades na vida, a mais pessoal e indiscutível é a de decidir não viver. Quando a propriedade privada se transformou num valor tão sagrado que em nome dela todas as misérias são hoje toleráveis, a única propriedade que realmente conta, a da nossa vida, parece continuar a ser um bem colectivo.

Million Dollar Baby e Mar Adentro dizem-nos o mesmo: o mais incondicional dos amores é o que deixa o outro partir. E enquanto a Igreja e o Estado quiserem regular o amor só podemos esperar o pior. É como diz a cunhada de Ramón, em resposta a um padre virtuoso: «Não sei se a vida é nossa ou de Deus, só sei que você tem uma boca muito grande».