Tentarei, na medida do possível, ir contando a minha viagem por terras iemenitas. Na capital Sanaa [ou Saná], onde estou, não é difícil. Depois, não prometo nada.
Às 6 da manhã, a cantilena da chamada para a oração entra pela minha janela. Muitas cantilenas em despique. Não há mais nenhum som na cidade. Só a chamada para a oração. Como a cidade fica cercada por montanhas altas, os
muezzin fazem se ouvir em eco. Parecem lobos a uivar. Ainda é de noite. Começou o dia em Sanaa.
Olho para a janela e vejo terraços desordenados e pequenos pátios internos, onde se come, se ouve música e se conversa. Como nas cidades do sul de Portugal. Como em qualquer cidade árabe. É o dia da unificação iemenita. Feriado nacional. Na rua, o barulho é permanente. As buzinas dos carros misturam-se com a música vinda de todo o lado. Na Estrada que circunda Sanaa Velha, que é um ribeiro em dias de chuva, até parece que souberam da vitória do Benfica, tal a festa de buzinas sem razão aparente. Em todo o lado se vende ou compra alguma coisa.
O primeiro
suq [ou
suco, como já se disse em português antigo e é de onde vem a palavra açougue] em que estive, em Sanaa Velha, é gigantesco. Os cheiros, os gritos, a música, tudo misturado. E gente. Imensa gente. Sai gente de todos os lados. E vultos negros, milhares de vultos negros. Nem uma mulher de cara destapada. A presença de um ocidental num pais com pouco turismo não provoca mais do que olhares curiosos, mas discretos. Os miúdos metem conversa. Tudo se tenta vender, mas não há muita gente a pedir dinheiro, num dos países mais pobres do Mundo.
Sanaa Velha é indescritível. É a medina mais bem preservada do Mundo. Fica-se sem fôlego. Parece que se fez uma viagem no tempo.
Os homens andam todos com os seus
jambia, uns pequenos “sabres” retorcidos. As mulheres são um pano negro com dois olhos. Mas o ambiente é descontraído e amistoso. Basta fazer uma pergunta e logo se junta gente para ajudar, para me levar de moto, para me indicar o caminho, para saber o meu nome, de onde venho...
A tarde, toda a gente anda com uma bola de "qat" na bochecha. O "qat" é o vicio nacional. Uma droga leve que todos os homens (e mulheres) consomem a partir das duas da tarde. O habito nacional transformou-se num problema nacional. Sempre foi. Mas hoje consome-se com menos moderação. Resultado: ninguém trabalha à tarde e as plantações de "qat" estão a consumir toda a água de um pais que já foi fértil.
As mulheres tapadas escondem uma outra existência. Basta olhar para as pequenas lojas de roupa feminina, no
suq, para descobri-la. Lingerie e roupa que, em Portugal, só se poderiam encontrar numa
sex shop. As pessoas com quem estou estiveram num casamento. Mulheres de um lado, homens do outro. Sendo mulheres, foi com as mulheres que ficaram. E as mesmas mulheres, que na rua só deixam ver os olhos (as que deixam) ostentam, longe dos homens, generosos decotes em justos vestidos cheios de cores berrantes e brilhos sortidos. É este o seu pecado, só permitido longe do olhar lascivo dos homens. Não julguem que por ali eram modernas. A noiva nem sequer conhecia o noivo.
O Iémen é dos países mais duros para as mulheres, em todo o Mundo. A quase totalidade das mulheres é analfabeta, as execuções por questões de honra, que na maioria dos países árabes são a excepção, são aqui corriqueiras. Neste momento, uma mulher de vinte e pouco anos esta à espera de um julgamento (graças a alguma pressão internacional o já realizado terá de se repetir), por supostamente ter assassinado o marido. Casou com o homem aos 11 anos, aos 13 já era mãe, aos 15 mãe duas vezes. Chama-se, como a [sua companheira de infortúnio] nigeriana , Amina. Toda a gente sabe que foi um outro homem, por uma disputa de terras, que matou o seu marido. Mas ficou mais fácil assim. Uma sessão de tortura na prisão chegou para resolver o problema do assassínio. É para isto que as mulheres servem. Aos 16 anos já esperava a morte. O processo prolongou-se porque as execuções de menores se tornaram num problema internacional para o Iémen. Agora, Amina tem mais de vinte. Se for condenada, terá morte certa. Se não for, na aldeia é a morte que também a espera. Uma ONG ofereceu-se para a tirar do pais.
Estamos, dizem os livros, numa “democracia”. O Parlamento é eleito e até tem uma ministra, a dos direitos humanos. Ou seja, por aqui, isto quer dizer relações públicas para estrangeiros. Não é democracia nenhuma e esta ministra é uma aberração na realidade política e cívica iemenita. O Presidente não passa de um ditador, como qualquer outro. Mas o Iémen é um importante aliado dos EUA. Há que manter as aparências.
Meio dia. Recomeça a chamada para a oração. Alguns homens dirigem-se à mesquita, de mão dada. Mas, em geral, a vida continua imperturbável, apenas cortada por aquele despique de vozes. A religião está em todo o lado mas a vida corre sem ela. Os iemenitas não são fanáticos religiosos. O pais é que é brutalmente atrasado, e a Sharia vale mais do que a Lei e do que o Corão.
Já estou em Sanaa, capital do Iémen, no extremo meridional da Península Arábica. Estou noutro tempo onde o ambiente de festa, a simpatia e a generosidade das pessoas se mistura com enorme atraso e pobreza. Tudo é lento, tudo é barulhento. Nunca me senti tão estrangeiro em toda a minha vida. E gosto.
Publicado originalmente no
Barnabé.