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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Mais quatro anos

Sérgio Lavos, 30.06.10


Lembrei-me desta música do Bob Dylan ontem à noite, quando pensava no que haveria de escrever sobre a derrota da selecção portuguesa, mas como não tinha qualquer obrigação, deixei para hoje, quando já deixou de ser assunto do dia. A música de Bob Dylan foi o hino informal da selecção de Scolari no Europeu de 2008 e aparecia num anúncio da Galp. Nunca cheguei a perceber por que razão Dylan acedeu a que a música fosse usada para tais fins, mas no fundo quem ficou a ganhar foi a equipa portuguesa - e acabaria por se ficar pelos quartos-de-final*, no fim de contas o nosso lugar natural.

Somos obrigados a ver as coisas de modo realista: uma selecção que joga contra a melhor equipa europeia com uma ala direita composta por Ricardo Costa e Simão está a brincar perigosamente com o destino, neste caso arriscando a eliminação na altura certa. Continuo a achar que tivemos três azares neste campeonato: a lesão de Bosingwa; a lesão de Nani; o carácter de Carlos Queiroz. Sinceramente, e arriscando uma espécie de futurologia retroactiva, não estou a ver Bosingwa a ser ultrapassado cerca de 150 vezes sem fazer uma falta que se visse, como ontem aconteceu com Costa. O rapaz não tem culpa, de resto, visto que nem Ronaldo nem Simão tiveram um treinador que os obrigasse a descer e a ajudar o defesa direito. Relembremos: Carlos Queiroz teve noventa minutos para fazer qualquer coisa em relação à permanente ameaça de um Villa encostado à esquerda. Duvido que tenha sequer percebido a natureza da ameaça. Um defesa apenas seria sempre insuficiente; um Ricardo Costa foi um convite à miséria. Não interessa que o árbitro fosse hispânico ou o ridículo que é comparar os dois pontas-de-lança que levámos (Hugo Almeida e Liedson) com os das outras equipas de topo (Villa, Torres, Higuain, Tevez, Milito, Aguero, Klose, Cacau, Luís Fabiano, Van Persie, Fórlan, Suarez), por muito que nos custe ver Almeida falhar um centro milimétrico de Meireles na primeira parte. As insuficiências individuais e o egoísmo desvairado de Ronaldo poderiam ter sido mitigados se Queiroz soubesse como aplicar de forma competente a lição de Mourinho perante o Barcelona. Já que jogámos à defesa, então era preciso ter sido levado a sério o empreendimento. Mourinho, quando hoje falou do empenhamento defensivo de Eto'o em comparação com o desacerto de Simão, disse tudo. Queiroz quis defender com jogadores que, ou não o sabem fazer, ou não estão para aí virados, até porque já se percebeu que não existe qualquer empatia entre o treinador e os homens que dirige. E, consequentemente, falhou. O que mais doeu foi ter falhado frente uma equipa que joga bem mas é entediadamente previsível, ainda mais do que o Barcelona. Podem ser campeões do mundo, há piores destinos, mas apenas se não apanharem a Alemanha pela frente. Não estou a ver o tiki-taka a não ser dominado pelo estilo atacante e imprevisível da Mannschaft.

Agora que chegámos ao campeonato a sério e os adeptos sazonais dos grandes campeonatos de selecções vão deixar de incomodar, desfrutemos do que resta como deveria sempre ser, sem qualquer tipo de ansiedade patriótica ou outra fraqueza do género; futebol sem espinhas.

*corrigido.

Bem me quer, mal me quer, muito, pouco ou nada?

Daniel Oliveira, 30.06.10
A maldita golden share, que era o pecado dos pecados, foi usada para impedir que a maior empresa portuguesa perdesse o seu principal activo. Ainda bem. Mas quero ouvir os liberais defender que o Estado devia ter ficado quieto. Ninguém quer o Estado. Até ao dia que precisa do Estado. Mas, sendo sincero, há também os coerentes: como bons dogmáticos, sonhando com a utopia neoliberal, defendem a terra queimada para a construção de um Novo Mundo.

Era só mais um bocadinho

Daniel Oliveira, 30.06.10

Há uma minoria que não gosta de futebol. Para essa minoria, mesmo que não o digam, a derrota de ontem foi uma boa notícia. Eu compreendo-os. Nada mais desesperante do que ver um país parado, excitado, obcecado, vidrado com uma coisa que não nos interessa. Liga-se a televisão e é Mundial. Muda-se de canal e é Mundial. Vai-se ao café e é do Mundial que se fala. Chega-se ao emprego e o Mundial é o tema de conversa.

Compreendo esta angústia do português solitário que não gosta de bola. O pior é quando se começa a racionalizar a coisa.

Racionalizar a nossa entrega à selecção e a nossa depressão com a sua eliminação é estúpido. Diz-se que as vitórias dão bom nome ao País. É verdade que não fez mal ao ego nacional ver os títulos dos jornais internacionais depois da goleada com a Coreia, em tudo diferentes das referências habituais dos jornais económicos a Portugal. Mas os bons resultados futebolísticos não têm qualquer efeito na imagem do País. Diz-se que mostram que somos capazes do melhor. Não mostram coisa nenhuma, porque uma selecção não é retrato de um País. Nem a França é a tragédia que foi a sua selecção, nem a Argentina tem o génio da sua equipa. Diz-se que ajuda a unir o País. É uma falsa unidade em torno de um objectivo demasiado simples para contar: ganhar um jogo, depois outro, depois outro.

Mas racionalizar o desprezo pelo futebol não é melhor. O mais comum é criticar a alienação a que o povo se entrega enquanto o País se desmorona. E é aí que eu perco a compostura. Esta ideia bem portuguesa de que quando tudo está mal nos devemos entregar à depressão colectiva é absurda. Como se ela resolvesse alguma coisa. Como se a alegria fosse um crime de lesa Pátria. Uma irresponsabilidade.

Desde que nasci que vivo em crise quase permanente. A palavra já quase se limita a traduzir a normalidade. E, no entanto, durante estas crises cíclicas fui-me divertindo. Num País onde grande parte dos portugueses vive mal, há alguns luxos que não se dispensam. As pequenas alegrias inconsequentes são um deles. Chamem-lhe alienação, se quiserem. Mas sabe bem. E para quem quase tudo é mau, umas coisas saberem bem de vez em quando não há de ser um crime. O intervalo da depressão nacional podia bem ter durado mais uma semana.

Publicado no Expresso Online

Não vivemos acima das nossas possibilidades

Daniel Oliveira, 29.06.10
Segundo um estudo realizado por sociólogos do ISCTE, vinte por cento dos portugueses estão abaixo do limiar de pobreza. Ou seja, não conseguem garantir o mínimo das necessidades familiares. Se não fossem as ajudas do Estado este número passaria para os 40%.

31% das famílias estão no escalão imediatamente acima do limiar de pobreza - ganham entre 379 e 799 euros. 21% não têm qualquer margem para qualquer despesa inesperada. 12% não conseguem comprar os medicamentos que precisam. Muitos deles, apesar de terem mais qualificações do que os seus pais, vivem pior do que eles. 35% vivem confrontadas com situações frequentes de escassez, o que inclui a impossibilidade de aquecer a casa ou de usufruir de baixas médicas para não perder rendimentos. 57% vivem com um orçamento familiar abaixo dos 900 euros.

Este povo pobre desconfia dos outros, desconfia do poder (70%), não está satisfeito com as suas condições de vida mas, extraordinariamente, considera-se feliz. Mais de um terço dos insatisfeitos diz que nada faz para mudar de emprego, 63% recusa a possibilidade de emigrar e apenas uma minoria diz que deseja voltar a estudar.

Este estudo diz-nos duas coisas.

A primeira é evidente para quem conheça o País: os portugueses não vivem acima das suas possibilidades. Vivem abaixo delas. Há uma minoria, isso sim, que garante para si a quase totalidade dos recursos públicos e privados. Somos, como se sabe, o País mais desigual da Europa. Temos dos gestores mais bem pagos e os trabalhadores que menos recebem. Somos desiguais na distribuição do salário, do conhecimento, da saúde, da justiça. E essa desigualdade é o nosso problema estrutural. É esse o nosso défice. Ele cria problemas económicos - deixando de fora do mercado interno uma imensa massa de pessoas -, orçamentais - deixando muitos excluídos dependentes do apoio do Estado -, sociais, culturais e políticos.

A segunda tem a ver com isto mesmo: a pobreza estrutural não leva à revolta. Dela não resulta exigência. Provoca desespero e resignação. Resignação com a sua própria vida, resignação com a desigualdade e resignação com a incompetência dos poderes públicos. A pobreza não apela ao risco. Não ajuda à acção. O atraso apenas promove o atraso.

Nos últimos 25 anos entraram em Portugal rios de fundos europeus. Aconteceu com eles o que aconteceu com todas as oportunidades que Portugal teve nos últimos séculos. Desde o ouro do Brasil, passando pelo condicionalismo industrial do Estado Novo e acabando nos fundos europeus, nos processos de privatização para amigos e no desperdício em obras públicas entregues a quem tem boas agendas de contactos, que temos uma elite económica que vive do dinheiro fácil, do orçamento público e da desigualdade na distribuição de recursos. Essa mesma que, em tempo de crise, o que pede éredução do salário e despedimento fácil.

Repito: os portugueses não vivem acima das suas possibilidades. Apenas vivem num País onde as possibilidades nunca lhes tocam à porta. O nosso problema é político. É o de uma economia parasitária de um Estado sequestrado por uma minoria que não inova, não produz e não distribui. De um Estado e de um tecido empresarial onde os actores se confundem. De um regime pouco democrático e nada igualitário. E de um povo que se habituou a viver assim. De tal forma resignado que aceita sem revolta que essa mesma elite lhe diga que ele, mesmo sendo pobre, tem mais do que devia.

Publicado no Expresso Online

Curso de formação: economia dos bens comuns

João Rodrigues, 28.06.10

O debate democrático e o envolvimento na tomada de decisão sobre o uso dos recursos ou a existência de níveis de desigualdade socioeconómica reduzidos são alguns dos ingredientes do compromisso duradouro entre indivíduos, da confiança, que permite conjugar a primeira pessoa do plural na economia. O curso de formação, que terá lugar em Lisboa no próximo Sábado, organizado pelo CES e pelo Le Monde diplomatique – edição portuguesa, é precisamente sobre a economia dos bens comuns: um mapa das discussões na economia comportamental, na ciência política ou nas políticas públicas. Um curso para contrariar o atrofiamento da imaginação institucional. Mais pormenores aqui.

Para lá das utopias constitucionais

João Rodrigues, 28.06.10
Nos intervalos do bloco central, o PSD tem andado numa azáfama constitucional. Trata-se, qual plano inclinado, de levar até às últimas consequências políticas, ou seja, até à Constituição, a lógica da erosão do Estado social e da fragilização das classes populares presente na perversa política de austeridade permanente com escala europeia. É isto que está por trás da ideia, que circula por aí, de dar dignidade constitucional a limites totalmente arbitrários, como os que proibiriam um défice orçamental superior a 3% do PIB ou uma dívida pública superior a 60%.

Limites que nenhum governo democrático em tempos de crise aguda do capitalismo maduro poderá cumprir sem gerar ainda mais desemprego e exclusão. Por muito que isto desgoste os moralistas das finanças públicas, os défices e a dívida são a consequência do andamento da economia. Por exemplo, a incensada e muito liberal Irlanda, que tinha uma dívida pública de 25% do PIB em 2007, ultrapassará os 77% em 2010. É o colapso da magia do mercado a gerar os défices que nenhuma Constituição trava.

Para não ficar atrás na utopia liberal, o jurista Diogo Leite Campos, eminente ideólogo da direcção de Passos Coelho, defendeu que a passagem de um Estado democrático para um Estado totalitário só poderia ser impedida com a fixação legal de um limite para a carga fiscal. Que tal 40% do PIB, já que estamos no domínio dos números mágicos? Leite Campos já tinha demonstrado o seu conhecimento profundo do país ao afirmar que auferir menos de 1000 euros por mês equivale a ser miserável. Agora demonstra desconhecer que os Estados democráticos mais avançados, com as economias mais competitivas e solidárias - da Dinamarca à Suécia, passando pela Finlândia -, têm em comum, entre outras coisas, uma carga fiscal superior a 40%. A carga fiscal "elevada", longe de ser uma ameaça à democracia e às liberdades amplamente partilhadas, ajuda a efectivá-las. Por muito que isso custe a quem cai no último escalão do IRS.

Este é, de resto, um padrão bem identificado: as democracias mais participadas, com movimentos sindicais fortes, com maior igualdade salarial antes de impostos e confiança mais elevada nas instituições, tendem a ter Estados sociais universais mais redistributivos e impostos mais elevados e progressivos. Escolhas políticas que espevitam a inovação económica e ajudam a competitividade das nações. É que os empresários não têm alternativa. Têm mesmo de ser bons.

O país pode escolher: em vez de constitucionalizar utopias liberais que acentuam a prepotência e a indolência empresariais, mais vale seguir os bons exemplos. Definitivamente, as obsessões constitucionais alemãs, que podem bem provocar uma crise europeia, não são a referência...

Crónica i

Onde estavam todos?

Daniel Oliveira, 28.06.10

É justo as SCUT serem pagas pelos seus utilizadores? No caso em que não haja nenhuma alternativa viável, não é justo. Porque estamos a punir quem vive nas regiões mais isoladas do País. Mas, para passageiros, essa alternativa não tem de ser exactamente igual. Nem sequer tem de ser rodoviária. Tem de garantir que o direito à mobilidade não pode estar em causa.

Em todos os restantes casos é injusto e irracional manter auto-estradas (ou vias que a ela se assemelham) gratuitas. Repare-se no absurdo: ninguém anda de borla em transportes colectivos. E não paga apenas o combustível e a viatura. Paga também as infra-estruturas. E todos sabemos que são as pessoas menos favorecidas que mais usam os transportes colectivos. É justo que elas contribuam através dos seus impostos para as deslocações dos que andam em transportes individuais? Claro que não.

Não é justo nem é racional. Para o País, quando comparado com o transporte individual, o transporte colectivo só tem benefícios: reduz a nossa dependência energética, é menos poluidor, cria menos problemas de tráfego, tem menos efeitos negativos no ordenamento do território, é melhor para a qualidade de vida nas cidades, é mais barato para o Estado... Ou seja, é absurdo que alguém pague para usar as linhas férreas e não pague para usar uma auto-estrada.

Mas aqui chegamos a outro ponto. Dirá o caro leitor, já irritado, que tudo isto é muito bonito, mas nos casos de que estamos a falar não há alternativas de transporte colectivo. E tem toda a razão. Só é pena que nós, enquanto comunidade, só agora pensemos nisso.

Na verdade, desde o governo de Cavaco Silva (continuando com António Guterres, Durão Barroso e José Sócrates) que não paramos de construir auto-estradas. Chegámos finalmente ao ponto em que temos, proporcionalmente à dimensão do território, a maior rede de auto-estradas da Europa. Nesse mesmo período foi desmantelada grande parte da rede ferroviária. Será, provavelmente, das mais pequenas da Europa. Em simultâneo, privatizou-se a Rodoviária Nacional sem qualquer contrapartida de serviço público. E deixou-se a rede rodoviária secundária ao abandono. Ou seja, não sobraram alternativas para podermos prescindir de muitas das auto-estradas e do uso permanente do transporte individual. A prometida privatização da CP apenas agravará este problema, deixando as zonas menos rendíveis ainda mais abandonadas e ainda mais dependentes dos carros.

Dirá o cidadão que tenho razão e que essa é a responsabilidade de quem agora quer cobrar o que prometeu vir a ser gratuito. Discordo. A responsabilidade também é nossa.

Onde estavam muitos dos cidadãos que agora se revoltam quando se acabou com o passe social único em Lisboa? Onde estavam quando se fecharam, uma a uma, estações de comboio e linhas ferroviárias no interior? Onde estavam quando se privatizou a Rodoviária Nacional?

Eu digo onde estava a maioria: fascinada com esse sinal exterior de abundância que era o carro para todos e para tudo. Fascinada e exigindo mais e mais auto-estradas, prescindido sem um "ai!" das linhas de comboio. Indiferente aos problemas de parte da população - os velhos, os pobres e as crianças dos pobres - que não tinha acesso a esse maravilhoso mundo novo e que via o seu direito à mobilidade reduzido ao mínimo ou a nada.

Onde estavam os autarcas do Interior, que agora se revoltam, quando tudo isto aconteceu? A vender às populações a ideia de que bastava uma tira de alcatrão para garantir o desenvolvimento local e que a linha de comboio que encerrava podia ir embora porque não era viável.

Onde estavam os eleitores quando a destruição do transporte colectivo e muito em especial da ferrovia aconteceu? Convencidos que os que levavam a cabo este crime lhes traziam o desenvolvimento. E a premiá-los por isso.

Não é só passado: onde está o grito de revolta contra o encerramento criminoso da linha do Tua e de tantas estações e apeadeiros por esse país fora? À espera que uma nova auto-estrada chegue com políticos satisfeitos e autarcas orgulhosos para a inaugurar.

Resumindo: a promoção do transporte individual e a destruição do transporte colectivo foi errada, irracional e prova-se agora que era economicamente insustentável. Mas não seria justo dizer que não foi uma opção com um largo apoio popular. Tudo o que se faça agora serve para remediar. Os que lutam contra as portagens nas SCUT terão a minha solidariedade. Mas, para serem coerentes, têm de exigir uma linha de comboio, um paragem de autocarro, uma carreira de um transporte rodoviário como alternativa. Até lá, o que pedem é a continuação de um erro.

Publicado no Expresso Online

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