“Portugal chega a ser monstruoso pelo excesso de Estado Social”. Se fosse um dos inúmeros economistas do medo, que prosperam apenas porque praticamente não existe debate, eu não ligaria muito, mas foi a economista Helena Garrido que escreveu
isto. É uma das jornalistas que admiro, devido ao seu respeito habitual pelos factos e à sua capacidade para ser social-liberal sem cair na vulgata liberal e assim enriquecer o debate. Como é que se pode olhar para os dados, mesmo muito agregados, e dizer que temos um Estado social excessivo? Percentagem das prestações sociais, categoria demasiado heterogénea é certo, no PIB? Abaixo da média da zona euro (17,2% contra 17,7%, em 2009). O quê, então? Peso dos impostos no PIB e sua progressividade? Também não: o peso da receita fiscal no PIB é de 34,8% (na zona euro é de 38,6%) e o peso dos regressivos impostos indirectos, como o IVA, na estrutura dos impostos é dos mais elevados. Aumento das despesas sociais? Bom, esse foi, felizmente, inevitável no actual contexto e mesmo assim foi insuficiente. Isto para não falar do idealismo que Helena Garrido revela quando fala numa suposta rede social que o Estado social teria destruído. Eu bem sei que os hegemónicos economistas do medo interpretam o aumento das despesas com o RSI ou com o subsídio de desemprego nos últimos dois anos como se de um súbito vírus da lassidão, que só afecta os mais pobres e vulneráveis, se tratasse. Entretanto, as sempre patrióticas e empreendedoras “classes médias”
transferiram 1,2 mil milhões de euros para offshores no primeiro semestre. Como nunca conseguiram
entender a crise e o aumento do desemprego gerado, resultado das desigualdades, da desregulamentação e da crença no fundamentalismo de mercado que sempre apoiaram, caem num moralismo que só revela a sua situação social confortável. Como nunca conseguiram entender a natureza disfuncional da zona euro, que sempre saudaram, esquecem que estamos trancados num conjunto de políticas de austeridade que produzem um resultado perverso: o esforço para cortar na despesa produz as condições económicas conjunturais que podem aumentar a despesa mais tarde. Sem demagogia, é preciso dizer que o estado das finanças públicas quase só depende do andamento da economia. Diz que a retoma está em risco.
Pudera. O bloco central apostou num irracional e desumano corte das despesas sociais para os mais pobres, para fazer com que as transacções desesperadas se multipliquem e os salários eventualmente baixem: a crise de distribuição, a crise de procura, intensifica-se dentro de momentos e o desemprego também. A pobreza vai aumentar e assim a ideia de que estamos todos no mesmo barco torna-se um pouco mais fraudulenta. Enfim, não se toma em consideração a abordagem dos
balanços financeiros sectoriais: a soma dos saldos dos sectores externo, público e privado, tem de ser igual a zero. Num contexto de crise, com o saldo do sector externo mais ou menos constante, é evidente que o esforço dos privados para reequilibrar os seus balanços, com cortes no consumo e no investimento, tem de gerar inevitavelmente um aumento do défice público. Sabendo que o cenário macroeconómico aponta para uma redução necessariamente ligeira do défice externo, então o contraproducente esforço para reduzir o défice público tem como contrapartida um aumento do endividamento do sector privado. E este dificilmente ocorrerá. Por algum lado a corda vai ter de partir e está a partir, claro. Remato brevemente com duas questões mais estruturais. Em primeiro lugar, a bota do Estado social que não bate com a perdigota da economia que temos. O Estado social construiu-se tendo como pano de fundo um processo de liberalização e de privatização, Isto gerou grupos económicos cuja hostilidade à provisão pública, que é onde está a fruta doce dos lucros garantidos, é proporcional ao seu desespero e às exigências dos accionistas. Gerou também níveis de ineficiência, de rentismo e de desigualdade que hoje podem corroer os fundamentos do Estado social. Em segundo lugar, e de forma talvez contraditória com o primeiro ponto, as tendências fortes do desenvolvimento – do envelhecimento ao aumento da importância dos serviços sociais de proximidade, da saúde e da educação, onde a superioridade da provisão socializada é evidente, passando pelas alterações climáticas, pelas insustentáveis desigualdades económicas ou pela constatação de que a finança de mercado é uma máquina de destruir capital – trabalham, no quadro das democracias, para manter e até aumentar a prazo a importância do sector público na criação de riqueza em sentido amplo e na extensão e aprofundamento da regulação. As sociedades que prosperarão são as que sabem viver pacificamente com o que a vida mostra com mais clareza em situações de risco: o peso do Estado não vai, não pode, diminuir. A questão nem sequer é essa, mas sim que ideias e que interesses controlam os recursos públicos e definem as regras do jogo.