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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Os silêncios e as palavras de Cavaco

Daniel Oliveira, 31.12.10

Ainda o debate entre Cavaco Silva e Manuel Alegre. Um dos poucos momentos que deu que falar foram as críticas do Presidente à Caixa Geral de depósitos na gestão que está a fazer do BPN. A comparação que fez com a situação inglesa, quando se está, em Portugal, a falar de um caso de polícia, deixa claro para todos que o suposto rigor técnico de Cavaco não tem correspondência com a realidade. Já tinhamos observado isso mesmo quando, com o maior dos descaramentos, explicava, no tom professoral do costume, que o negócio da ponte Vasco da Gama não era uma Parceria Público-Privado.

 

Quando os seus amigos andavam a brincar com o fogo no BPN, Cavaco Silva ficou calado. Quando o caso rebentou, ficou em silêncio. Quando o seu ex-ministro Dias Loureiro mentiu ao Parlamento veio em sua defesa para o tentar segurar no Conselho de Estado. Quando o BPN foi nacionalizado, deixando de fora a SLN, concordou e calou-se.

 

Quando resolve falar Cavaco Silva? Agora. Para criticar quem afundou o BPN num buraco de pelo menos cinco milhões de euros? Não. Para assumir que Dias Loureiro e Oliveira e Costa tiveram um comportamento vergonhoso? Não. O Presidente abre a boca pela primeira vez sobre o caso BPN para atacar quem, mal ou bem, recebeu o presente envenenado.

 

Cavaco Silva não consegue disfarçar a sua dificuldade em falar sobre este caso de mãos livres. O descaramento desta acusação - que demonstra também a sua irresponsabilidade institucional - prova que não é, nesta matéria, um homem livre. Um dia saberemos porquê.

 

Publicado no Expresso Online

A esfinge de areia

Sérgio Lavos, 30.12.10

 

Cavaco Silva, o presidente que cedeu ao frete de ser candidato, perdeu claramente os quatro debates para as presidenciais. Se por acaso as televisões tivessem convidado José Manuel Coelho para a festa, também teria grandes probabilidades de perder. Alguém que não conhecesse o panorama nacional e o visse ontem frente a Manuel Alegre com o som do televisor em baixo poderia jurar estar perante um homem com um longo caminho a percorrer nas sondagens, alguém crispado, lutando furiosamente para se manter à tona de água no combate eleitoral. Alegre, em contraste, exibiu à vontade e uma calma surpreendente, soberana. Cavaco, o estadista lusitano, o homem da providência nacional, foi empurrando para o canto do ringue sucessivamente por Francisco Lopes, Fernando Nobre e, humilhação suprema, Defensor Moura. Manuel Alegre limitou-se a gerir os pontos fracos: os amigos no BPN e as acções que aqueles lhe venderam, o devaneio das escutas-fantasma, a tibieza perante chefes-de-estado de países com uma economia emergente. Alegre poderia, inclusive, ter ido muito mais longe: a insistência numa pose acima da sujeira da política é a principal característica de Cavaco, e é não por ter escolhido deliberadamente essa pose, mas por ser obrigado a isso, por não poder ser de outro modo. São evidentes as dificuldades na oratória, na exposição de ideias, na coerência do discurso. Poderíamos discutir a pertinência destas qualidades, se pensarmos no modelo do político moderno, brilhante na imagem e vazio nas ideias (Tony Blair será um dos melhores exemplos). O problema é que esta ausência de qualidades de tribuno nada esconde, nem o brilhantismo do técnico esforçado nem a competência do ordeiro burocrata; este brilhantismo é uma ilusão, uma crença infundada das almas torturadas dos seus apoiantes. O tempo que passou à frente do governo do país é a prova: um consulado de dez anos em que se limitou a aplicar o rio de fundos europeus em áreas de reduzida importância estratégica, a agravar o peso do Estado até se tornar incomportável para a dimensão do país, a lançar as raízes das dificuldades estruturais que temos sentido nos últimos anos. Cavaco Silva é o espelho da nossa alma: baço, aplicado mas sem rasgos, calando-se perante poderes mais fortes, um clone enfraquecido ou uma memória distante do português provinciano e poupadinho que tomou conta dos destinos do país durante quarenta anos, o Salazar do descontentamento da pátria e da alegria triste de muitos dos mais fervorosos adeptos desta pálida cópia. O silêncio de Cavaco, tantas vezes elogiado pelos seus apaniguados, não oculta uma qualquer sabedoria salvífica - nem os poderes do presidente lhe permitiriam isso, ao contrário do que ele nos quer fazer crer; o silêncio de Cavaco é uma máscara que cobre o vazio de ideias de quem nada tem de original para dizer. E basta um qualquer Defensor Moura (e escrevo isto com todo o respeito) para o expor. Mas sim, ele lidera as sondagens. E a única maneira de evitar uma maioria de direita, uma hidra bicéfala Passos Coelho/Cavaco, é não votar nele. Nós não o merecemos; muito mais, merecemos muito mais.

A aventura

Bruno Sena Martins, 30.12.10

L'Avventura, 1960

 

Cavaco Silva repetiu ontem no debate aquele que parece ser um dos motes decisivos da sua campanha "Este não é o momento para aventuras." Quererá dizer, imaginamos, que os portugueses deverão votar na sua continuidade como garante de estabilidade num momento de crise. O argumento parece eficaz se tivermos em conta o apego das gentes à menor das incertezas em tempo de desesperanças. No entanto, não resiste a uma simples revisitação da própria ideia de aventura, para falarmos, por exemplo, da aventura que aqui nos trouxe. Nela Cavaco Silva assume papel de protagonista enquanto o mais decisivo responsável da política económica no Portugal democrático. Não será tempo para aventuras, pois sim, mas não existe nenhuma razão para que a aventura institucionalizada do cavaquismo nos ocupe mais dias e nos roube mais esperanças.

A arrogância do político quando finge que não o é

Daniel Oliveira, 30.12.10

 

 

 

 

Cavaco Silva nunca põe o debate no campo da discordância política. Cada critica é um ataque que resulta de falta de caracter ou de ignorância. Todos, a não ser ele próprio, claro, padecem de um desconhecimento geral e absoluto da forma como "as coisas" funcionam. De como funciona a diplomacia, de como funcionam as instituições, de como funciona a economia, de como funcionam os mercados. Na realidade, as coisas são como são e Cavaco Silva limita-se a fazer uma leitura (sempre sem duvidas e sem enganos) de como as coisas são e a agir em conformidade.

 

Cavaco Silva sempre fez escolhas políticas. E sempre disfarçou essas escolhas com uma suposta neutralidade técnica. Tem sido esse o caminho da Cavaco desde o começo da sua longa carreira política: fingir que é um técnico nas opções políticas que vai fazendo.

 

Talvez um dos casos mais evidentes seja a sua reacção a qualquer crítica à desregulação dos mercados. Nessas críticas Cavaco vê insultos. E inventa uma fábula: transforma os mercados numa espécie de entidade dotada de personalidade própria e imagina que, a essas críticas, os mercados, ofendidos, reagirão com uma birra. Desta novidade na teoria económica resulta a interdição geral em ter posições políticas sobre a actual situação da Europa e da economia internacional. Restaria assim, ao Presidente, ficar calado. E agradecido a quem especula com a nossa dívida, claro.

 

Para além dos estilos diferentes, a grande diferença entre Manuel Alegre e Cavaco Silva, no debate de ontem, foi exactamente esta. Cavaco Silva nunca disse o que realmente pensa sobre coisa alguma. Resumiu tudo ao seu suposto superior conhecimento de tudo o que mexe. E perante o seu génio, nada merece realmente ser discutido. Manuel Alegre fez o que se espera de um candidato em campanha: deixar claras as suas posições políticas, sem pedir cheques em branco a ninguém.

 

Cavaco quer passar a ideia de que um cargo exclusivamente político é, na realidade, um cargo técnico. Como não tem os instrumentos constitucionais para aplicar nenhum dos seus supostos - mas raramente confirmados - méritos técnicos e não diz o que pensa politicamente sobre quase nada esvazia, aos olhos dos portugueses, o cargo do Presidente. Bom para transformar o dia 23 de Janeiro num plebiscito.

 

Na realidade, trata-se de um falso esvaziamento. Como se tem visto nas posições que tem tomado - sem no entanto usar os instrumentos que a Constituição lhe oferece -, quando discorda de uma lei, faz-lhe críticas públicas, fragilizando-a. E aí, toma uma posição política. É legítimo. O que é ilegítima é a ideia que tenta passar de que é politicamente neutro. Não é.

 

O mesmo tipo de dissimulação foi feita por Cavaco Silva, no debate de ontem, em relação a todos os reparos ao seu mandato. Sobre o humilhante caso dos insultos do presidente da República Checa a Portugal e sobre a rocambolesca novela das falsas escutas a Belém não esclareceu coisa nenhuma. Fez o que tem feito sempre: mandou ler o site da Presidência da República onde nada é na realidade esclarecido. Sobre o caso BPN conseguiu a proeza de criticar a actual administração do BPN depois de ter passado meses a defender o seu amigo Dias Loureiro, um dos principais responsáveis por o que aconteceu à SLN. Digamos que quem andou a defender o responsável pela doença tem pouca legitimidade para criticar o médico.

 

Acabados os debates, há pelo menos um ponto em que Cavaco Silva leva o troféu: um dos políticos mais arrogantes que a nossa democracia conheceu. Nesta matéria, talvez só seja mesmo acompanhado por José Sócrates. O que não deixa de ser interessante: com duas pessoas tão iluminadas e autosuficientes à frente dos destinos deste país, porque estamos como estamos?

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