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Arrastão: Os suspeitos do costume.

O momento Monty Python da semana

Sérgio Lavos, 31.01.11

O futuro prémio Nobel da literatura disserta sobre as origens da psicopatologia humana e a outras disfunções do foro criminal:

 

O serviço militar obrigatório acabou sem qualquer debate público, como se fosse uma coisa sem importância nenhuma. Ora, para muita gente, era uma directriz. Havia jovens vindos da província que tomavam na tropa o primeiro banho! E às vezes aprendiam ofícios - como cozinhar ou conduzir - que lhes davam uma ferramenta para a vida, além de regras de disciplina que ficavam pelo tempo fora. Este jovem que estava em Nova Iorque com Carlos Castro - que terrível coincidência a proximidade entre as palavras Castro e castrado - noutra época estaria a cumprir o serviço militar e não teria dado cabo da vida.'

 

Só este maravilhoso parágrafo (citado no Jugular) daria pano para mangas, mas lendo o artigo todo ainda se encontram mais pérolas de um calibre tão afinado como este. E fica aqui o apelo: por favor, não deixe de escrever, sr. arquitecto. Sem si (e sem João César das Neves, João Carlos Espada e aquela Bibá que de vez em quando escreve sobre a VIDA no Público) tudo isto teria muito menos piada. Impagável.

Chega a ser comovente

Sérgio Lavos, 31.01.11

A cruzada pelos subsídios do Estado à iniciativa privada encetada pelos - em todas as outras áreas da economia que não a educação - liberais blasfemos. Seria comovente, seria, se não fosse patética e movida pelos interesses do costume - a Igreja Católica e os intocáveis lucros dos donos das escolas que beneficiam dos contratos de associação. Mas pronto, a direita liberal também tem direito aos seus sovietes. Quem não os conheça que os compre.

Balanço de 2010 - Acontecimento Internacional: Wikileaks

Bruno Sena Martins, 31.01.11

 

Com a libertação do vídeo “Collateral Murder” já tinha ficado patente o poder do modus operandi da Wikileaks para quebrar a inimputabilidade dos governos que, peritos em manigâncias de toda a ordem, sistematicamente recorrem ao secretismo como abrigo do escrutínio democrático. O vídeo em causa, bem vistas as coisas, não acrescentava muito ao que julgaríamos saber sobre uma guerra, que os civis são alvos fáceis, que é tremendo o arbítrio dos militares sobre a vida dos outros, que a crueldade no campo de batalha é frequentemente resignificada como estratégia pragmática. No entanto, o visionamento do vídeo é outra coisa, ao vermos a leviandade com que os tripulantes do Apache atiram sobre um civil que, a caminho da escola para onde transportava crianças, pára para socorrer um homem ferido, somos confrontados como uma prova que traz novas ordens de indignação, dá pasto à insurgência de uma incomodidade.

 

Em 28 de Novembro de 2010, a wikileaks, juntamente com 5 publicações tradicionais (El País, Le Monde, Der Spiegel, The Guardian e o The New York Times), iniciou a publicação de telegramas diplomáticos confidenciais enviados por 247 embaixadas americanas. O impacto foi tremendo, porque vieram a público informações que eram desconhecidas, e porque assistimos à expressão material dos expedientes e ilegalidades pelos quais os poderes procedem. Por polémicos que sejam, a Wikileaks e os seus métodos cumprem um papel crucial como agentes da transparência democrática, tornando os cidadãos mais informados e mais preparados para exercerem uma “hermenêutica da suspeita” sobre as afirmações morais tão frequentes no discurso político, e sobre as omissões e mentiras que servem de justificação aos processos de tomada decisão. Numa época em que o jornalismo de investigação parece manietado pelo desinvestimento e pelos interesses dos grupos económicos que tutelam os media tradicionais, a Wikileaks emerge como a grande acontecimento internacional do ano de 2010. É muito provável que o seu impacto perdure com a publicação de mais documentos, mas também com o efeito de dissuasão que possa vir a ter nos inimputáveis do costume.

 

"Escolhido pelos autores do Arrastão"

Retratos árabes

Daniel Oliveira, 31.01.11

 

Quando se anda pelas ruas do Cairo, de Damasco, de Amã ou de Sanaa não se sente logo a repressão. As pessoas correm na rua como em qualquer cidade árabe: barulhentas e num frenesim de séculos. Os suqes transbordam, o trânsito é caótico, os muezzins chamam para a oração. Em Damasco há adolescentes de calças justas e tops que exibem o que qualquer jovem ocidental deixaria ver, em Sanaa as mulheres são apenas vultos negros sem rosto.

 

O regime sírio socorre-se da retórica socialista, o iemenita do das democracias ocidentais. Sanaa é miserável e parou no tempo, para deleite dos nossos olhos, que se prendem nos edifícios de vários andares feitos de adobe há dois mil anos. O Cairo explode de energia, de juventude, de multinacionais e da miséria das grandes cidades.

 

No Cairo, a fotografia de Mubarak olha-nos em cada canto, sendo certo que, se nada acontecesse, no lugar dela seria posta a do seu filho Gamal. Em Amã, é a fotografia do rei Abdullah que ocupa o espaço público. Já substituiu a do seu pai. Abdullah militar, Abdullah filantropo, Abdullah atleta, Abdullah pai de família, Abdullah estadista. Em Sanaa, em Mukalla ou em Aden o bigode de Saleh foi transformado em símbolo nacional. Em Damasco ou em Alepo, Bashar al-Assad, o presidente, divide a iconografia da ditadura com o pai que governava antes dele e o irmão falecido num acidente de viação e que, por ter ganho um segundo lugar num concurso de hipismo, foi transformado num novo Saladino.

 

Estes são os retratos das patéticas ditaduras árabes. Ninguém, nas ruas destas cidades, lhes dá qualquer valor. Nas ruas os símbolos são outros: no Iémen, quando lá estive, em 2005, eram as caras de Yassin, líder religioso do Hamas abatido pelos israelitas, e de Bin Laden, cuja família partiu dali para fazer fortuna na Arábia Saudita. Na Síria eram, em 2006, quando lá estive, durante os bombardeamentos israelitas ao Líbano, as bandeiras amarelas do Hezbollah que faziam furor. No Egito é a Irmandade Muçulmana e são as organizações religiosas que garantem algum apoio social que conquistam cada vez mais simpatia popular.

 

Não é difícil de perceber. Não se trata de fanatismo religioso. Para além da língua e do Islão, a única coisa que une estes países são as suas ditaduras. Uma anti-americana, mas com simpatia dos franceses, as outras sustentadas pela Casa Branca e pelas chancelarias europeias. Repressivas, todas elas. Incompetentes, cleptómanas e incapazes de dar qualquer dignidade aos seus Estados e aos seus povos. Espantados que os islamistas sejam vistos por muitos como libertadores? A mim espanta-me que ainda não seja a maioria. Eles são, aos olhos de tantos, os que não se venderam. E que se preocupam com o povo. O suficiente para lhe dar pão e conforto espiritual. Desprezados nos bairros finos, respeitados nos bairros pobres. Eles são o que de mais parecido existe com um Estado Social.

 

Salva-nos o facto de, apesar de tudo, os movimentos laicos que tomaram o poder durante as independências terem apostado num sistema educativo público e terem feito nascer um simulacro de classe média. E das redes sociais, que servem para arregimentar militantes para os grupos islamistas, também servirem para conectar os jovens árabes com o resto do Mundo.

 

Não é assim no Iémen, onde a miséria ainda vive noutro século, mas é-o na Síria, na Jordânia, em Marrocos e no Egito - e também na Tunísia, que não conheço. Podemos ter esperança: há uma oposição democrática que acredita numa terceira via - nem as ditaduras laicas suportadas pelo Ocidente e pelos seus negócios, nem o islamismo tresloucado.

 

Uma coisa é certa: a suposta superioridade moral da Europa e dos EUA não vale um pevide por aquelas paragens. Nós sempre fomos os amigos dos seus ditadores. Julgávamos que assim os protegíamos do perigo islamista, quando, na realidade, lhe dávamos força moral e política. Agora não contamos nada. Resta-nos a vergonha da cumplicidade. E resta-nos fazer figas. Para que não sejam os fanáticos a tomar o lugar dos ladrões. Para que não haja um banho de sangue no Egito. Para que os tunisinos consigam encontrar um sucessor para o ditador que tinha assento na Internacional Socialista. Para que os islamistas, a mais organizada das oposições, não cheguem ao poder no Iémen. Para que uma revolta na Síria não tenha efeitos no Líbano e, a partir daí, em todo o Médio Oriente. Para que os confrontos entre jordanos e refugiados palestinianos não tome o lugar dos protestos.

 

Talvez tudo isto ainda esteja a acontecer a tempo. O fundamentalismo religioso como poder de Estado só é um perigo real em Iémen. E aí, se chegassem ao poder, seria mau para os EUA, que ali têm um ditador de confiança, mas a sociedade iemenita, ultraconservadora, dificilmente notaria a diferença. No Egito, um novo governo só assusta realmente Israel, que contou sempre com a cúmplicidade de Mubarak no cerco a Gaza. Não é a Irmandade que dirige os tumultos de jovens desempregados e até apela a um governo de transição pacífico. Na realidade, ela pode vir a ser integrada num processo democrático. O que ali acontecerá depende sobretudo de Baradei, para quem os EUA já parecem olhar como o aliado possível.

 

Com a crise económica internacional e o aumento do desemprego em países sem almofadas sociais, o dominó começou finalmente a cair. Pode ser excelente. Pode ser uma tragédia. Seja como for, a realpolitik das nossas alianças sem princípios, que nos leva sempre para becos sem saída, já não se livra da sua culpa.

 

Publicado no Expresso Online

 

Fotografias tiradas por mim, em Damasco, 2006. Na primeira, retrato de Hafez al-Assad, ex-presidente a quem sucedeu o seu filho Bashar. Na segunda, populares com uma bandeira do Hezbollah, enquanto o Líbano era bombardeado por Israel.

Para quem nunca percebeu que a Al-Jazeera é o maior símbolo de liberdade de imprensa no mundo árabe

Daniel Oliveira, 30.01.11

O ministro cessante da Informação Anas el-Fekki ordenou a interdição do canal satélite Al-Jazeera , que largamente cobriu as manifestações anti-governamentais, anunciou a agência oficial Mena. O ministro "decidiu que o serviço de informação do Estado devia encerrar e anular as actividades do canal Al-Jazeera na República árabe do Egito, anular todas as autorizações e retirar todas as carteiras profissionais dos jornalistas a partir de hoje", afirma o despacho da Mena. O canal, por seu turno, noticiou a AFP, afirmou que esta decisão visa "fazer calar o povo egípcio". Segundo a AFP, alguns minutos depois de emitida a notícia, a televisão por satélite dava conta da decisão egípcia, e continuava a transmitir. Entretanto, o satélite egípcio Nilesat, controlado pelo Governo, deixou de transmitir o sinal da cadeia de televisão Al-Jazeera, disse hoje fonte do canal sedeado no Qatar. "A transmissão via satélite foi interrompida em Nilesat", disse um responsável técnico na cadeia à agência France Presse. Porém, a Al-Jazeera também transmite em outros satélites Arabsat, tendo já anunciado uma nova frequência para que os telespectadores consigam ver a emissão.

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Tempos interessantes

Bruno Sena Martins, 29.01.11

Tunísia, Egipto, Jordânia, Argélia, Iémene. O Médio-Oriente vai encontrando o seu caminho para a democracia apesar de Bush e do voluntarismo bélico do Ocidente fundamentalista.  Bush queria fazer do Iraque um exemplo, e conseguiu: o exemplo de como não se faz. Nestes tempos interessantes, ganham especial pertinência as palavras de David Cooper*: “ninguém pode libertar outrem, porque a liberdade é o acto de a tomar.”

 

 

*Cooper, David (1978), A Linguagem da Loucura. Lisboa: Editorial Presença.

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