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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Insultem-se com conteúdo

Daniel Oliveira, 29.04.11

Lello diz que Cavaco é foleiro. Nogueira Leite diz que Lello é um cibernabo. Lello diz que Nogueira Leite quer abifar uns tachos. Deve ser disto que falam quando falam de crispação. E esta crispação compreende-se. São os foguetes que animam uma festa morna. Enquanto a União Europeia e o FMI escrevem o verdadeiro programa eleitoral do PS e do PSD, aquele que ambos se preparam para aceitar sem um sinal de resistência, há que continuar a fingir que há um confronto político.

 

A ver se nos entendemos: dá imenso jeito, por exigir menos informação e menos reflexão, acreditar que a nossa situação se resume a uma questão de carácter dos intervenientes políticos. É confortável pensar que estamos como estamos porque o Presidente da República é "foleiro", o primeiro-ministro é "aldrabão", o líder do PSD é "um banana" e todos eles estão rodeados de gente que quer "abifar uns tachos". Esta narrativa permite não discutir política, não discutir economia, não discutir Europa. Permite que os atores políticos não apresentem alternativas entre si e que os cidadãos não se dêem ao trabalho de pensar nelas. Tudo se resume a qualidades pessoais.

 

Nada tenho contra a crispação política. Pelo contrário. Nos tempos que correm, com a injustiça evidente na distribuição de sacrifícios, com o egoísmo a corroer a Europa por dentro, com o assalto das instituições financeiras aos cofres públicos, com a suspensão de várias democracias europeias, fazia falta um sobressalto cívico. Mais crispação e menos anemia democrática. Mas a crispação que falta é política. Querem insultar-se? Insultem-se. Mas com conteúdo, se fazem favor.

 

Publicado no Expresso Online

Mau ilusionismo*

Miguel Cardina, 29.04.11

 

O programa do PS agora apresentado é um mau truque de ilusionismo. O editorial do Público de ontem chama-lhe «um programa igual a um carro usado» e nota como as medidas avulsas, genéricas e requentadas ali apresentadas são «um sintoma de esgotamento típico de um fim de ciclo». Parece-me uma caracterização acertada. Aspecto importante: desaparecem grande parte das medidas contidas no PEC IV, que Sócrates tão arrebatadoramente defendeu e cujo chumbo considerou uma manobra lesa-pátria das oposições unidas. Sobretudo medidas que o eleitorado tradicional de esquerda poderia ver com maus olhos, como o congelamento de salários na função pública, os cortes nas pensões e o aumento do IVA. Não é a primeira vez que em momentos eleitorais vemos o PS tentar passar a imagem de que é diferente do que tem sido no poder.

 

Mas desta vez a coisa corre o risco de parecer ainda mais anacrónica. É que um dos elementos mais curiosos do programa é a inexistência de referências ao FMI, que verdadeiramente irá fazer o programa do futuro governo. José Sócrates e Pedro Passos Coelho, com a bênção de Cavaco e da banca portuguesa, governarão com o programa de austeridade desenhado pela troika. E governarão muito provavelmente coligados, caso as sondagens estejam certas e a preferência do parceiro de aliança se mantenha inalterada. Estamos, pois, diante de uma jogada de ilusionismo de baixo calibre. Quando a 16 de Maio for apresentado o pacote FMI e os líderes do PS e PSD forem obrigados a entender-se com base nessa plataforma, a audiência terá diante dos olhos aquilo que já é evidente para todos: o truque desvendado. Sócrates de mão dada com Passos Coelho ao mesmo tempo que procura sacar com a outra mão a rosa escondida na manga do casaco. Convencerá alguém?

 

* Texto inicialmente publicado no Blogue de Esquerda, da revista Sábado, onde estarei nestes dias a participar na "Semana do Blogger Convidado". Deixo um agradecimento especial à Marta Rebelo pelo convite e uma sugestão para que passem por lá.

A crise e o dominó europeu

Daniel Oliveira, 28.04.11

 

 

Enquanto o debate político português continua centrado no seu próprio autismo - dedicado à autoflagelação e ignorando a crise europeia -, estão a acontecer coisas interessantes. Duas, por agora: a lenta agonia espanhola e a ameaça de reestruturação da dívida grega. Basta que a última aconteça para a queda de Espanha ser uma questão de dias. E depois dela, o contágio a Itália e à Bélgica.

 

Este efeito dominó acabará por criar uma situação financeira, mas também política, absolutamente nova. Com a queda de dois grandes a Europa será mesmo obrigada a reagir. O egoísmo alemão terá de fazer uma escolha: ou muda de rumo ou prepara a morte do euro e da União Europeia. E a segunda escolha terá um preço de tal forma arrasador para os alemães - sempre foram os que mais ganharam com a moeda única - que nem é sequer uma alternativa para quem não queira ficar na história como o chanceler que matou a economia alemã.

 

Se este cenário se confirmar - e cada vez mais sinais apontam para aí -, os seus efeitos dependerão da rapidez de uma reação europeia. Se for, como tem sido, a passo de caracol, estamos todos tramados. O barco vai ao fundo e ninguém se salva. Se for, por pressão dos gigantes em queda, rápida, talvez haja futuro para a Europa. E talvez haja futuro para Portugal.

 

Triste situação é esta, em que a nossa sobrevivência depende da desgraça alheia. Triste Europa é esta, que só acordará no dia do Apocalipse. Tristes líderes políticos são estes, tão dependentes dos poderes financeiros que só pensarão no futuro quando a tragédia lhes bater à porta.

 

Publicado no Expresso Online

O caro sai ainda mais caro

Daniel Oliveira, 27.04.11

 

Com a contenção cega (há outra, racional) da despesa pública, as empresas de transportes estão virtualmente falidas. Uma das medidas que pode vir aí é um acentuado aumento dos preços para os utentes.

 

Que fique claro que não acho que a gestão destas empresas esteja livre de críticas. Pelo contrário. A irracionalidade de muitos investimentos e a má gestão da coisa pública é evidente. Mas não valem comparações com o sector privado. Graças aos desastrosos contratos feitos a quando da privatização a retalho da Rodoviária Nacional e a absurdas concessões - em que o Estado garante que acaba sempre por ficar com prejuízo -, ele fica apenas com o filet mignon. Assim é fácil ter resultados. Ao Estado cabe mais do que isso, apesar de tantas vezes o ignorar. O problema não é o dinheiro que se gasta nas empresas públicas de transportes. Esse poderia ser traduzido em ganhos para a economia.  É pena esse dinheiro nem sempre ser gasto com eficácia.

 

O aumento dos preços dos transportes não é apenas socialmente insustentável. É economicamente irresponsável. Parece que vamos poupar, mas a decisão trará prejuízo. Cinco consequências óbvias:

 

1 - Desencoraja os cidadãos a usar os transportes públicos, daí resultando a continuação da utilização do transporte individual, que, para além de exigir a manutenção de infraestruturas mais caras, aumenta a nossa dependência energética. Consumir menos energia um imperativo económico (e ambiental). E transportes coletivos acessíveis são condição para esse objetivo nacional.

 

2 - Transportes coletivos mais caros aumentam os custos da distância, reduzem a competitividade de regiões mais isoladas, aumentam a pressão sobre os grandes centros urbanos e contribuem para o desordenamento do território. Os efeitos não se medem apenas em custos sociais - pobreza, segurança, saúde publica - que o Estado terá de pagar. Os efeitos económicos são profundos e duradouros.

 

3 - Mais carros nas ruas é mais engarrafamentos e mais tempo perdido. Mais tempo perdido tem efeitos na produtividade. Se o argumento da qualidade de vida dos cidadãos já não chega, que se tenha em conta este.

 

4 - Transportes mais caros aumentam os custos do trabalho. Ou ele se reflete nos salários - porque é mais caro ir trabalhar - ou, na ausência de poder negocial, esse custo é transferido para o trabalhador. Mas, seja quem for que pague, não deixa de ser um aumento do custo da mão de obra.

 

5 - Aumentando esta despesa - que para quem trabalha ou estuda não é dispensável -, reduz-se o dinheiro disponível para as famílias poderem poupar, agravando assim o nosso endividamento externo crónico.

 

Conclusão: o aumento dos preços dos transportes agrava todos os problemas que nos impediram de resistir a esta crise internacional. Tem efeitos negativos na competitividade, na produtividade, no crescimento e na poupança. Tem-se dito que temos governado sempre a pensar no curto-prazo e sem planear o futuro. Mas desse consenso nacional - talvez o único - não se tira nenhuma conclusão e repete-se o erro.

 

Diz-se muitas vezes que todos concordam no diagnóstico e que o problema são as soluções. Errado. O diagnóstico que tem sido feito é que Portugal tem um problema com as suas despesa e dívida públicas. E, dito isto, as medidas que se avançam destinam-se a resolver esse problema. Na realidade, como as contas públicas não vivem divorciadas da situação económica, que afeta as receitas, não o resolvem. Mas acontece que o principal problema do País não é de finanças publicas. A nossa dívida pública está, esteve quase sempre, na média europeia (ou abaixo dela). O nosso drama, aquilo em que nos distinguimos dos parceiros europeus, é a dívida externa, principalmente privada. Esse endividamento externo resulta de um modelo de desenvolvimento insustentável, de um crescimento anémico e de pouca poupança privada. E este é um bom exemplo de uma medida que agravará todos estes problemas estruturais.

 

O diagnóstico não está errado por ausência de conhecimento. Todos sabem dos números. É por teimosia ideológica de quem prefere ignorar a realidade e para alimentar um processo global de saque aos cofres públicos - os nossos sacrifícios ajudarão à recapitalização uma banca gerida com irresponsabilidade - que trabalhamos com base num diagnóstico enviesado do qual resultam medidas irracionais.

Não posso, por isso, deixar de sorrir quando se pede unidade nacional em torno dos sacrifícios que nos vão ser exigidos, quando desses sacrifícios não só não resultará a solução para os nossos problemas como, ao que tudo indica, eles se agravarão. Perante o precipício, pede-se unidade para dar um passo em frente.

 

O aumento do preço dos transportes é uma boa metáfora do suicídio a que nos vamos entregar. Daqui a vinte anos estaremos a lamentar a cegueira que agora nos guia. Como fazemos hoje em relação a muitas das decisões que tomámos há vinte anos. E então, como agora, muitos dirão que é tarde para chorar sobre o leite derramado. E então, como agora, iremos remendar os erros do passado. E assim continuaremos, de inevitabilidade em inevitabilidade, até à inevitabilidade final.

 

Publicado no Expresso Online

Os nossos liberais

Miguel Cardina, 26.04.11

José Manuel Fernandes leu no seu antigo jornal uma reportagem baseada na tese de doutoramento de Raquel Varela sobre a acção do PCP em 1974-75 e não apreciou o teor da peça.  O ex-director do Público lançou-se então numa tosca busca googliana e - vileza suprema! perversão imunda! - descobriu que a historiadora também tem currículo político. Esta estranha ideia de que historiadores não podem ter activismos sociais ou políticos já foi muito bem escalpelizada pelo Zé Neves. É de facto curioso perceber como os nossos autoproclamados liberais, no momento em que deveriam sê-lo - o que neste caso passaria por se sentar numa poltrona, com um copo de uisque ao lado e a gravata ligeiramente desapertada, a ler atenta e criticamente o livro da Raquel Varela - optam por anatemizar o outro à boa maneira estalinista. Onde antes estavam a classe social e os inimigos do povo, hoje está a militância (desde que seja à esquerda). Há coisas fantásticas, não há?

Claro que Diogo Leite Campos não é aldrabão

Daniel Oliveira, 26.04.11

 

 

O senhor Diogo Leite Campos quer acabar com os subsídios - subsídio de renda ou abono de família - sem saber onde realmente gastam os beneficiários o dinheiro. Não deixa de ser um raciocínio económico estranho, já que a despesa - os filhos ou a casa - estão lá. Para resolver o problema, quer fazer como se faz com os mendigos: dá-se-lhes uma sandes em vez do dinheiro. Através de um cartão de débito e recorrendo a instituições de caridade, como "albergues" ou a "sopa dos pobres". A leitura de Oliver Twist, de Charles Dickens, pode ajudar a perceber o modelo social de Leite Campo.

Num excelente almoço organizado pela Câmara do Comércio e Indústria Luso Francesa, onde perorou sobre a pobreza, Leite Campos explicou que "quem recebe os benefícios sociais são os mais espertos e os aldrabões e não quem mais precisa".

 

Seria impensável eu dizer que o senhor Leite Campos é um "aldrabão". Longe de mim pôr em causa a honorabilidade de tão distinta figura. Os insultos, já se sabe, são coisa que deixamos para os miseráveis. O direito ao bom nome vem com o cartão de crédito e quem não o traz na carteira só pode deixar de ser suspeito se lhe derem um cartão de débito. Os pobres são, até prova em contrário, mentirosos. Como não insulto o senhor, fica apenas este facto: estando ainda a trabalhar, já recebe uma reforma do Banco de Portugal. Quando se retirar da Universidade de Coimbra, juntará o que recebe já hoje ao que receberá dali. Acumulará duas reformas vindas do Estado.

 

Seria um argumento "ad hominem" atacar o professor Leite Campos, competente fiscalista, por causa das suas duas reformas. Dizer que ele é "esperto" e que gasta recursos do Estado que podiam ir "para quem mais precisa". Espertos são os pobres que ficam com os trocos. Quem consegue acumular reformas por pouco trabalho é inteligente. Os pobres enganam o Estado, os outros têm direitos. Os pobres roubam o contribuinte, os outros têm carreiras. Fico-me por isso pelos factos: a reforma que o senhor Leite Campos recebe do Banco de Portugal resulta de apenas seis anos de trabalho naquela instituição.

 

Cheira-me que se a generalidade dos portugueses recebesse reformas, estando ainda no ativo, por seis anos de trabalho e as pudesse acumular com outras dispensaria bem o abono de família e até o cartão de débito para ir à sopa dos pobres.

Aquilo que realmente está esgotar o crédito da minha paciência é ver tanto "esperto" que vive pendurado nas mordomias do Estado a dar lições de ética aos "aldrabões" que recebem subsidios miseráveis. É mais ou menos como dizia o outro. Já chega. Não gosto de tanto cinismo. É uma coisa que me chateia, pá.

 

Sobre os subsídios, Leite Campos disse: "O dinheiro não é do Estado, é nosso. Quem paga somos nós. Nós, contribuintes, temos direito a ter a certeza que o nosso dinheiro é bem entregue. Eu estou disposto a pagar 95 por cento do que ganho para subvencionar os outros, mas quero ter a certeza que é bem empregue, e que não vai parar ao bolso de aldrabões". Sobre as escandalosas reformas do Banco de Portugal, faço minhas as palavras do vice-presidente do PSD.

 

Publicado no Expresso Online

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