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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Psicopatologia da vida política portuguesa

Sérgio Lavos, 29.02.12

 

   

             A mentira compulsiva.                                  A neurose delirante.   

 

  

              A alucinação psicótica.                                   A esquizofrenia.

 

                    

                                O transtorno de múltipla personalidade. 

 

Não temais: o pior ainda está para vir.

A encruzilhada síria

Daniel Oliveira, 29.02.12

 

 

Estive na Síria. Foi, aliás, dos vários países árabes que conheço, aquele onde mais gostei de estar. Por causa do incrível património histórico. Pelo mosaico cultural e religioso que ali se mantém. A laicidade do Estado sente-se. Sente-se na tolerância religiosa, cada vez mais rara nos países muçulmanos. Trata-se de uma ditadura laica que, da mesma forma que prende e mata os opositores políticos, mantém controlados os movimentos de qualquer tipo de fundamentalismo religioso que nunca quereriam nada com a dinastia Assad. A ligação ao Irão é táctica. A ligação religiosa faz-se pela minoria alauíta (10%), que se considera xiita e que domina o poder político. Ainda assim, a maioria é sunita e o Estado é laico. Uma realidade bem distante da iraniana.

 

Na segunda cidade síria, Alepo, que se diz o mais antigo local habitado do Mundo, assisti a uma missa dos maronitas e os símbolos cristãos eram tão visíveis como os islâmicos. Nos anos sessenta houve tensões com os cristãos (arménios, ortodoxos gregos, maronitas e católicos latinos - cerca de 10% dos sírios) mas os problemas não são visíveis para um visitante. Há ainda drusos, xiitas e alauítas, para além da maioria sunita. A diversidade é apenas manchada pelos bairros judeus sem judeus. A outrora numerosa comunidade judaica (eram 30 mil, quase todos a viver em Damasco e Alepo) há muito abandonou o país. Ou seja, um governo islamista neste país seria uma tragédia sem nome.

 

O cosmopolitismo sente-se também por via dos refugiados. Cerca de um milhão de iraquianos, meio milhão de palestinianos, duzentos mil libaneses. Isto em 2006, quando lá estive, durante o ataque israelita ao Líbano. Não digo que os refugiados sejam exemplarmente recebidos. Mas, comparando com o que vi no Egito, na Jordânia ou no Líbano, é, de longe, o Estado árabe que melhor recebe os palestinianos. Ou seja: o mais coerente entre o que diz e o que faz. O pan-arabismo é aqui um pouco (só mesmo um pouquinho) mais do que retórica. E a resistência a Israel também. E é também isso, muito mais do que a repressão, que explica os sentimentos do Ocidente em relação à dinastia Assad.

 

Estive na Síria. Foi, aliás, dos países árabes que conheço, aquele onde menos gostei de estar. Por causa da ditadura. Ela sente-se em cada esquina. A Síria é, como a Coreia do Norte, uma república monárquica. Ao pai Hafez al-Assadsucedeu o filho, Bashar al-Assad. Os dois têm o carisma de uma anémona. Mas, mesmo assim, não hesitam em levar o culto da personalidade até ao enjoo. As fotografias de pai e filho são omnipresentes. Todos os cafés, lojas, restaurantes e bares, queiram ou não queiram, são obrigados a ostentar as carinhas dos dois senhores. Nas fotos de propaganda do regime ao pai e ao filho junta-se o Espírito Santo. O filho predileto de Hafez, Basil al-Assad, era o candidato ao trono, mas morreu prematuramente num acidente de viação. Ficou o filho Bashar, o mais ocidentalizado, que chegou a dar sinais de abertura nunca concretizados. Por todo o lado se veem imagens de Basil, retratado como herói nacional, montado em cavalos. Ao que parece praticava hipismo e conseguiu um segundo prémio para a Síria. Sendo da dinastia Assad, isso chega para ser um novo Saladino.

 

A Síria é, como praticamente todos os regimes árabes, uma ditadura repressiva. Esta calhou ter estado do lado de lá do Muro - ou seja, do lado dos derrotados. Mas falar de socialismo aqui seria no mínimo exagerado. O país é pobre e o governo, para além de repressivo, é visivelmente incompetente. A intervenção do Estado na economia não muito é maior do que nos países vizinhos. A repressão política sim. Não me espantei, por isso, com o comportamento criminoso deste governo, perante a contestação política.

 

Este é o retrato da Síria que conheci. Muito antes da Primavera Árabe. Num momento em que o País olhava para fora e se unia por causa disso. Acontecia a guerra do Líbano e as bandeiras do Hezbollah surgiam, até com algum desconforto inicial do regime, por todo o lado. Apesar da ditadura, apesar da repressão, estava longe de imaginar uma contestação à dinastia Assad seria tão acirrada. Mas se a tivesse imaginado teria pressentido esta mortandade.

 

Perante o que vi, divide-se a minha consciência. Os milhares de mortos e o ignóbil aparelho repressivo do regime não dão espaço a qualquer tipo de cinismo. Bashar al-Assad tem de cair e não vejo como pode este regime dirigir qualquer tipo de transição pacífica para a democracia. A longa história de crimes não permite qualquer tipo de benefício da dúvida.

 

Mas a rara diversidade e tolerância religiosa que ali se vive faz-me temer por um futuro em que os islamistas tenham mais poder. Com um pormaior: a oposição na Síria é bem menos estruturada e sólida do que no Egito e facilmente manipulável por todos os interesses, incluindo os mais sinistros. E terá, até por não ser vista como alternativa, muito menos apoio popular.

 

Não ignoro também os interesses muito pouco altruístas do ocidente. Controlar a Síria é controlar o conflito israelo-palestiniano, a política interna do Líbano, parte do conflito curdo com a Turquia e ter uma porta aberta para o Irão. Não me parece que os EUA e a Europa, com a sua longa história de cumplicidade com as ditaduras árabes, estejam muito preocupados com os direitos humanos. A companhia, entre os "amigos" de uma Síria democrática e livre, daArábia Saudita, do Bahrein (que lidaram com mão de ferro com a sua "Primavera Árabe) e da Turquia (que tem interesses naquela fronteira por causa dos independentistas curdos), diz tudo dos interesses que ali se movem. Que não são nem melhores nem piores do que o oportunismo chinês e russo.

 

Neste caso, não tenho uma posição fechada. Desejo, claro que desejo, o fim da ditadura síria. O seu derrube é uma peça fundamental para a democratização do mundo árabe. Travar a loucura assassina do regime sírio é um imperativo ético. Mas nem o dia seguinte, nas atuais circunstâncias, me parece nada animador, nem as motivações externas me parecem merecedoras de qualquer respeito. Pode a Síria conquistar a sua liberdade sem se entregar a uma ainda mais sangrenta guerra civil, onde os interesses dos vizinhos árabes, de Israel, da Turquia e dos EUA sejam o que realmente vai determinar o seu futuro? Não sei. Sei que a mortandade e a repressão têm de acabar. Sei que falta aos intervenientes externos, entre eles várias ditaduras árabes, autoridade para ali meterem a pata.

 

Publicado no Expresso Online

 

Fotografias (minhas): souq de Alepo, imagem de Basil al-Assad numa loja de lingerie e imagens do Presidente Bashar al-Assad e Hassan Nasrallah no souq de Damasco.

Olhó piegas

Sérgio Lavos, 29.02.12

Longe de mim ser um defensor do legado de Sócrates, mas o discurso ensaiado pelo actual executivo culpando o anterior pela política ultraliberal que está a dar cabo do país já enjoa. Nunca chegou a ser explicado o "desvio colossal" que foi falado em Junho e estas alusões ao país ter sido "entregue" pior do que o actual Governo esperava não convencem ninguém e são, falando claro, cretinas. Se foi assim, que mostrem onde estava o "desvio colossal", que digam o que estava errado nas contas. Assumam-se. Só dá vontade de dizer: sr. Coelho, o sr. é um piegas!

O mistério dos salários encolhidos

Sérgio Lavos, 29.02.12

 

Os augúrios começaram a soar com bastante antecedência. Paul Krugman passou por cá ontem para receber o doutoramento honoris causa, e os ventos de desgraça sopraram mais fortes. As posições de Krugman em relação à crise da dívida soberana são relativamente conhecidas num certo meio, mas o povo que sabe do mundo pelos telejornais não sabia o que este Prémio Nobel da Economia achava do que se passa em Portugal. Para mais, por ter passado por cá no período pós-evolucionário, teria mais autoridade para opinar sobre a crise que atravessamos. Não será necessário repisar as suas teorias - quem quiser que passe pelos Ladrões de Bicicletas e pesquise por Krugman. O que me interessa é o tratamento mediático que a visita dele teve. De tanta coisa que disse, entre a conferência que deu em Lisboa e a entrevista que deu ao Jornal de Negócios (e que passou na RTP Informação), o que acabaria por ser mais destacado seria a afirmação de que os salários dos portugueses teriam de ser desvalorizados entre 20 a 30%. Já não é a primeira vez que esta informação corre pelos jornais. Mas será verdade? No blogue Jugular, houve uma primeira versão desmontada. A tradução que o Jornal de Negócios publicou de uma entrevista dada pelo economista ao Le Monde estava errada. Krugman não tinha recomendado um corte de 20% nos salários portugueses. Tinha apenas sugerido um ajustamento salarial de Portugal em relação à Alemanha, fosse através da subida generalizada da taxa de inflação ou através de um aumento dos salários alemães muito acima de um aumento em Portugal. Trocado por números, como esclareceu na entrevista dada ontem, o ideal seria que, por exemplo, a Alemanha subisse os salários 5 ou 6% e Portugal apenas 1 ou 2%. Esta medida seria suficiente para esse ajustamento de 20% das tabelas salariais entre Portugal e a Alemanha, o que provavelmente tornaria o nosso país mais competitivo sem que fosse preciso cair na espiral recessiva para onde os países periféricos da UE estão a deslizar. É de resto esta a luta de Krugman, no seu blogue do New York Times e nas outras intervenções públicas que tem feito a propósito da crise do Euro: denunciar as políticas de austeridade impostas pelo directório germano-francês, as que estão a levar os países periféricos à bancarrota e ao fim da moeda única. 

 

No entanto, o que se foi ouvindo ao longo destes dias, a parangona mais repetida, é o tal suposto corte nos salários. Eu poderia achar que este é mais um caso de sensacionalismo, que aos jornalistas interessa mais o sangue e a desgraça do que a verdade bem explicada a quem pouco percebe de economia. Mas desconfio que as razões serão outras, bem mais graves. É que na Grécia acabou de ser aprovado o enésimo pacote de austeridade, e desta vez eles vão ser forçados a cortar o salário mínimo em 200 euros. O que se passa, sem rodeios, é muito simples: é preciso mentalizar os portugueses para o que aí vem - não esqueçamos que a Grécia é o futuro de Portugal, daqui a um ano - e o Governo, através do ministro da propaganda Relvas e dos seus assessores pagos a peso de ouro com o dinheiro dos nossos impostos, já meteu mãos à obra. Spinning e mau jornalismo, em todo o seu esplendor; e isto é apenas um exemplo do que vemos e lemos diariamente, o discurso único a que estamos submetidos desde que começaram a notar-se os primeiros sinais da crise. Habituem-se! 

Publicar, publicar, publicar

Miguel Cardina, 28.02.12

 

Quem trabalha em ambiente académico conhece bem a pressão do “publish or perish”. Pressão mais forte em universidades ou centros mais marcados pela ideia de “competição” e sedentos em divulgar uma imagem de “inovação” e “internacionalização”; pressão menos forte em locais onde se entende a investigação como parte de um processo socialmente enquadrado e cujo impacto – académico mas também social – não se resume à quantidade de publicações. Pressão, é preciso dizê-lo, que tem um importante aspecto positivo: ela pode funcionar como um estímulo para quebras inércias e dinamizar plataformas colaborativas entre pessoas e/ou centros que trabalham numa mesma área - ainda que possa igualmente contribuir para alimentar manchas cinzentas em torno de autorias, nomeadamente em casos onde exista relação hierárquica.

 

Pouco questionada neste mundo onde nos pedem constantemente resultados, a pressão do publish também tem desvantagens que nem sempre são tidas em conta. Desde logo, o afã publicacionista tende a fazer com que se investigue quase sempre em torno dos mesmos temas e se desvalorizem novos objectos (que naturalmente exigem "perder" mais tempo até se alcançarem resultados). Por outro lado, a pressão de publicar acentua a desconsideração do ensino e da sua relação com a investigação (nos casos pessoais, cada vez mais raros, onde é possível existir essa importante convivência), uma vez que é sobretudo na investigação que se afirma o prestígio académico e se constrói um currículo capaz de pesar nas candidaturas a projectos. Deste modo, a formação universitária fica cada vez mais destinada a professores com vínculo que batalham contra o tempo e as forças ou a jovens doutorandos ou pós-doutorandos que vão “fazendo currículo” em condições económicas que em alguns casos será eufemístico definir como “precárias”.

 

Teríamos muito a ganhar se começássemos a pensar mais estas coisas da investigação em termos daquilo que ela efectivamente é – trabalho – e a desenhar dinâmicas profissionais e reivindicativas que ponham lado a lado aqueles que estão a perder direitos e aqueles que não têm direitos nenhuns. Mas regresso à história do publicar porque hoje recebi um e-mail que me alertou para um outro limite da produtivite académica.

 

Ainda a adopção por casais do mesmo sexo

Miguel Cardina, 28.02.12

Em Janeiro de 2010, quando o Parlamento aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, introduziu-se uma cláusula discriminatória na lei: os homossexuais podem casar mas não podem adoptar. Ou melhor, casando deixam de poder adoptar, uma vez que no longo processo que culmina na adopção de crianças institucionalizadas não consta que haja um teste à justeza heterossexual. Esta situação, além de anacrónica, mais não faz do que reforçar estereótipos fortemente homofóbicos, como o que associa a homossexualidade à pedofilia. E, exactamente ao contrário do que se diz, não está centrada no interesse da criança, que é em primeiro lugar o de receber amor, educação e acolhimento da parte de quem está comprometido a fazê-lo. Ou, em alguns casos, de ver reconhecida por inteiro a família que já é a sua. Foi para resolver esta situção que na semana passada se apresentaram as iniciativas legislativas do Bloco de Esquerda e de Os Verdes. Sem sucesso, como sabemos. A direita votou contra (com algumas excepções) e o PS dividiu-se entre os votos a favor (a maioria), as abstenções e os votos contra. O PCP votou contra, alegando que a sociedade não estava ainda preparada para essa aprovação. A este respeito, espero sinceramente que o PCP não abandone a política em detrimento da metereologia, sob pena da esquerda minguar ainda mais em alguns domínios. Entretanto, e para reflexão, aqui fica uma breve e clarificadora entrevista à psicóloga Conceição Nogueira para nos lembrarmos de como abdicámos na semana passada de ser uma sociedade um bocadinho mais decente.

 

 

PS - O Paulo Jorge Vieira remete muito oportunamente para um estudo de Conceição Nogueira sobre o tema.

A cultura do pântano

Daniel Oliveira, 28.02.12

 

Na mesma entrevista em que defende que "Portugal tem de ser mais alemão que os alemães" Diogo Feio, eurodeputado do CDS, deixa a claro aquilo que espera de Portugal na crise europeia: "Portugal tem de ter austeridade neste preciso momento para reforçar a credibilidade e o rigor." É a tese do bom aluno de um mau professor: não interessa se o que estamos a fazer está certo, interessa ser obediente e esperar que os outros percebam que a receita que nos estão a prescrever está errada. Já escrevi sobre isto ontem.

 

Mas Diogo Feio vai mais longe e a lógica que aplica ao Estado português quer ver repetida nos comportamentos de cada cidadão: "Nós somos observados ao mais pequeno pormenor e cada greve que é feita mancha a imagem de Portugal." O jornal "Público" pergunta: "Como é que se pedem cada vez mais sacrifícios e se pede ao mesmo tempo que os sindicatos e a oposição não façam barulho?" E o dirigente do CDS responde: "Eu não acho que o património da responsabilidade seja apenas do governo e não tenha de ser também dos sindicatos e da oposição". As jornalistas voltam à carga: "Mas essa é uma responsabilidade em sentido único..." Resposta: "É uma responsabilidade mobilizadora, ou seja, para vencer o enormíssimo desafio que tem pela frente." Explica melhor: "Portugal é bem visto por ter uma maioria de governo sólida, porque tem uma situação social pacificada."

 

O que este apoiante do governo propõe é isto: o governo aceita a austeridade para agradar a quem tem o poder na Europa, os cidadãos aceitam a austeridade, mesmo que discordem dela, para ajudar o governo. Os sindicatos devem saber que prejudicam o País se cumprirem a sua obrigação: a de defenderem os direitos dos trabalhadores. A oposição deve saber que prejudica o País se cumprir a sua obrigação: opor-se a soluções em que não acredita. Diogo Feio não quer apenas que o Estado português se faça de morto. Quer a sociedade portuguesa anestesiada e em silêncio.

 

Qualquer dirigente político tem obrigação de saber que as sociedades são dinâmicas e contraditórias. Que a qualquer ação corresponde uma reação. Da mesma forma que os banqueiros pressionam o governo, com os instrumentos que têm, para defenderem os seus interesses, assim o devem fazer os trabalhadores. Da mesma forma que Diogo Feio não critica os empresários por tomarem as decisões que lhes parecem melhores para cumprir o seu principal objetivo (o seu lucro), não faz sentido criticar os trabalhadores por fazerem exatamente o mesmo: defenderem os seus salários e o seu emprego. Pode achar que não o estão a fazer e explicar porquê. Não lhes pode é pedir que fiquem quietos por uma questão de "imagem". Um governo pode alimentar uma farsa por algum tempo. Mas nenhuma sociedade é composta por atores que o sigam acriticamente numa mentira. Quando um governo toma decisões, os cidadãos que se sentem prejudicados por elas reagem e dessa reação nasce o conflito. É bom sinal que assim seja. Quem, em Portugal ou no estrangeiro, veja isto como sinal de "laxismo" (expressão de Diogo Feio) não acredita na democracia.

 

Diogo Feio gostaria que a sociedade portuguesa ficasse suspensa, apoiando acriticamente as decisões do governo, ou pelo menos abstendo-se de as criticar ativamente. É o sonho de qualquer governante pouco exigente: governar sem oposição. É sintomático do deprimente torpor deste governo que a verbalização deste desconforto com o pluralismo político e social venha do mais respeitável (na minha humilde opinião) dirigente do CDS. A tese da suspensão democrática, que tantas criticas mereceu a Manuela Ferreira Leite, institui-se como discurso oficial da maioria. Claro que Diogo Feio explica que não quer suspender os direitos constitucionais. Apenas pede que os portugueses não façam uso deles. Porque a nossa credibilidade depende da nossa anemia democrática.

 

O contraditório, o conflito e o pluralismo não são apenas bons indicadores do vigor democrático de uma sociedade. São indicadores da capacidade de intervenção, autonomia e crítica dos cidadãos. E isso diz muito da sua capacidade de lidar com as crises e de sair delas. Uma sociedade acrítica, apática e assustada não tem futuro enquanto comunidade. Nem futuro político, nem futuro económico. A cultura da obediência é a cultura do imobilismo. É a marca de um País em decadência. E essa decadência sentir-se-á em todos os domínios. Não se pode pedir a um país que seja medroso na política e temerário nos negócios, acrítico na cidadania e exigente no trabalho. O conformismo, quando se instala, espalha-se, como uma doença, por todo o corpo de uma sociedade.

 

A economia não é um mundo à parte. A vitalidade económica de um país está ligada à sua vitalidade social, cultural e política. E o principal problema deste governo é o de querer impor a todos os portugueses a sua cultura de desistência.Um governo apático perante a crise europeia quer uma sociedade apática perante medidas que considere injustas ou erradas. O resultado seria trágico: cidadãos apáticos, trabalhadores apáticos, estudantes apáticos, intelectuais apáticos, cientistas apáticos, empresários apáticos. O mesmo pântano de mediocridade que nos atrasou durante décadas.

 

Publicado no Expresso Online

Cobardia como modo de vida

Daniel Oliveira, 27.02.12

 

Há sempre, em todos os regimes, cidadãos que se adaptam ao poder vigente, aceitando as regras, por mais injustas que sejam. De cabeça baixa e tentando não dar nas vistas, apenas se rebelam quando todos já o fizeram. Há sempre, em todas as escolas, um aluno pouco talentoso que se esfalfa para agradar ao professor, por mais medíocre que ele seja. O "graxista", assim é chamado pelos colegas, espera as migalhas que a vaidade alheia lhe resolva oferecer. Há, em todas as empresas, quem lamba as botas ao patrão, na esperança de conquistar pela subserviência o que com a competência nunca conseguiria. E há Estados iguais a esta gente sem espinha. Que procuram viver na sombra dos poderosos. Neutrais quando de qualquer refrega ainda não se saiba o resultado, insensíveis a qualquer sentido de justiça, sem orgulho, sem qualquer desígnio e capazes de suportar, em silêncio, todas as humilhações.

 

Se olharmos para o Estado português, nos últimos anos, o que vemos é uma Nação oportunista. No Mundo, apoiou, em troca de negócios, a ditadura líbia até ao último segundo. Abandonou Kadhafi na 25ª hora, descobrindo nesse momento a importância da liberdade, da democracia e dos direitos humanos. Apoia, em troca de tostões, a ditadura angolana. Apoiou a injustificável guerra do Iraque, servindo de mordomo na cimeira da vergonha. Apoiou, aliás, todas as guerras, sempre do lado do mais forte. Na Europa, esteve sempre ao lado de quem manda, incluindo em decisões que prejudicavam os países periféricos. E agora, para não variar, é ao lado do poder do momento que quer estar, não hesitando defender o oposto aos seus legítimos interesses. Sejam Estados ou pessoas, os cobardes conseguem, muitas vezes, sair-se bem na vida (Portugal nem por isso). Mas não merecem o respeito de ninguém. Nem daqueles a quem servem de espinha curvada.

 

A semana passada, um grupo de líderes europeus, incluindo vários de pequenos países periféricos, assinou um documento sobre políticas de crescimento para a Europa. Nele, nada se lê que mereça grande entusiasmo. Até se aponta para o caminho da mesma desregulação económica que levou a Europa a este beco sem saída. Vale, no entanto, pelo gesto simbólico. Surge como um embrião de uma oposição à estratégia imperial de Angela Merkel. Nunca um governo que eu pudesse apoiar assinaria aquilo. Mas um governo de direita que não estivesse entretido a servir de capacho da Alemanha quereria estar naquele grupo "rebelde".

 

Segundo fontes próximas do governo conservador inglês, Passos Coelho não terá sido contactado por "falta de sintonia" com as reservas à estratégia austeritária alemã (versão depois diplomaticamente desmentida - parece que não encontraram o número de telefone do nosso primeiro-ministro).

 

Na realidade, o chefe do governo português poderia assinar aquele documento. A sintonia ideológica com grande parte das propostas existe. A razão pela qual não foi contactado é outra: ninguém fala com o mordomo quando quer discutir com o patrão. E é assim que Passos Coelho é visto: um homem sem opinião própria, pronto a aplaudir tudo o que o poder do momento disser. Ou, na melhor das hipóteses, o cobarde que se faz de morto à espera que a confusão passe. E é esta postura que, no País, tem merecido mais elogios: fazer o que nos mandam, esperar que o vento mude e tentar não dar nas vistas.

 

Quando a correlação de forças mudar na Europa - e inevitavelmente acabará por mudar -, estou seguro que faremos o que temos feito sempre: estaremos, à última da hora e com a mesma ausência de sentido crítico de sempre, no novo comboio. Esperando que todos se esqueçam do triste papel que tivemos numa crise que nos dizia respeito. Pode ser que resulte. Pode ser que não. Mas a marca do que somos, como Nação, fica para sempre. Se os outros não se lembrarem, lembrar-nos-emos nós. Não é por acaso que somos um povo com tão baixa autoestima. Há tanto tempo que, como País, não fazemos nada de que nos possamos orgulhar. É que para contar têm de se correr riscos. E o medo tem sido a base de quase todos os consensos nacionais.

 

Publicado no Expresso Online

O mundo é uma tela de cinema

Sérgio Lavos, 26.02.12

 

 

Mais uma noite dos Oscares, a terceira com nove nomeados para melhor filme. Para quem gosta de cinema, o acontecimento acaba por ser uma baliza, o ponto final de um ano a ver filmes. Os milhares - ou milhões - de textos escritos sobre a cerimónia podem dividir-se em dois tipos: os cínicos, que ao mesmo tempo que dizem que os Oscares não têm nada a ver com cinema lá vão apostando nos (poucos) filmes que viram; e os outros. Os que se entusiasmam, e acham sempre que naqueles dez está necessariamente o melhor filme do ano que passou. Se olharmos para trás e tivermos visto suficientes filmes ao longo da vida, percebemos que raramente está. Não vale a pena enumerar os grandes filmes que não receberam o prémio e as mediocridades que o receberam. O cinismo pretensioso era uma fatiota que gostava de usar antes; agora menos.

 

Falemos então de Oscares. Dos nove nomeados, vi quatro, provavelmente a mais alta percentagem em muitos anos. Dos que não foram vistos, alguns de certeza que não irei ver, outros quem sabe. Não, não passei os olhos pel'O Artista. Poderei ver, mas algo me diz que aprenderei mais com dez minutos de qualquer um dos filmes de Chaplin ou de Buster Keaton do que com a hora e meia de pantomima a preto e branco numa era de CGI, 3D e câmaras digitais. Mas enfim, quem nunca viu um Stroheim na vida (Luís Miguel Oliveira dixit) que atire a primeira pedra. Pelas mesmas razões não terei gostado também de Meia-noite em Paris. Sim, Woddy Allen é um génio, descansem. Mas o postal turístico carregado de clichés - sobre Paris, sobre os anos 20, sobre os artistas, etc., etc. - torna o resultado final numa desilusão. Há muitos filmes de Woody onde aparece a personagem estereotipada do intelectual deslumbrado pela cultura europeia. A diferença é que neste filme ele torna essa personagem o tema, e sem o mínimo de distanciamento irónico - como acontece em Vicky Cristina Barcelona, por exemplo. E assim agrada-se a um público mais vasto - "Meia-noite" terá sido o filme mais visto do realizador nova-iorquino, desagradando-se os fãs habituais. Escolhas.

 

Moneyball é um daqueles filmes de que eu gosto: um biopic sobre um falhado ajudado por um nerd a ultrapassar-se até ficar maior do que a vida, ao ponto de haver alguém que se interesse pela história e faça dela um filme. Brad Pitt confirma que é um actor melhor do que o esperado, e que não é necessário representar um deficiente para uma cara bonita ser nomeada para um Oscar - e já são várias nomeações; para quando o prémio?

 

Restam os dois preferidos.

 

Há varias razões para gostar d'Os Descendentes: Alexander Payne, autor do genial Sideways, do excelente As Confissões de Schmidt, do brilhante Election e de uma curta-metragem, 14e arrondissement, incluída na obra colectiva Paris Je t'aime, que é uma pequena maravilha (para usar o lugar-comum). E Os Descendantes, será tão bom como estes predecessores? Aproxima-se de Sideways e fica muito perto da obra-prima em forma de curta, e isso é mais do que suficiente para ser melhor do que qualquer um dos outros nomeados. Menos um, de que falarei a seguir, não sem referir George Clooney. Grande papel, sem sair da sua pele. Clooney não é um actor de composição. Não desaparece nas roupas e maquilhagem como Meryl Streep - OK, dêem-lhe lá o centésimo quadragésimo quinto prémio, ou coisa que o valha, quero lá saber -, não é um actor do método, como Robert de Niro ou Al Pacino; não é um actor que se faça ao Oscar em papéis à medida, como Tom Cruise ou o mencionado Brad Pitt; mas é excelente no seu modo cool, versátil - faz comédia e drama em registos não tão próximos que se possa dizer que é um inexpressivo Keanu Reeves nem tão distantes que se possa comparar ao rei do histrionismo Jim Carrey -, e ganhou com o tempo uma espessura dramática que não lhe adivinhávamos por altura do Serviço de Urgência ou de um dos seus primeiros filmes, uma coisa sobre surf tão má que nem vale a pena ir ao IMDB ver qual o nome. Mas não vai ganhar hoje, o francês mudo levará a palma. 

 

Mas acontece que este ano está nomeada uma daquelas obras que irão ser ainda vistas e admiradas daqui a cinquenta anos. Acontece que Terrence Malick é o autor da obra-prima. Acontece que a probabilidade de A Árvore da Vida ganhar é quase a mesma da receita de austeridade imposta pela Troika resultar em Portugal. Acontece que será uma injustiça, e que uma vez mais se provará que os Oscares têm tanto a ver com cinema como a venda de aguarelas na feira da ladra tem a ver com arte. Ou não, terá tudo a ver com a Sétima Arte: o glamour, os vestidos, a passadeira vermelha, Billy Cristal, os discursos, a magia. Estamos a falar e a escrever e a pensar sobre a coisa. Isso sigifica que deve ser o acontecimento mais importante do mundo do cinema. Mas não interessa: o cinema resiste ao hype muito bem. E continuará a ser feito, exista ou não Hollywood e a passadeira vermelha e os prémios e as desilusões e os cínicos e os discursos dedicados aos índios. Se tudo correr bem, e os Maias e o Medina Carreira não tiverem razão, para o ano cá estaremos.

 

(Publicado também no Auto-retrato.)

A terra a quem a trabalha

Sérgio Lavos, 26.02.12

 

Uma apoiante da "arbitrária e ilegal" Reforma Agrária surge, movida pelo soundbyte e aproveitando a entrevista concedida para limpar a imagem construída ao longo de uma semana de oração em favor da chuva. Parabéns ao assessor que se lembrou de semelhante ideia; durante alguns dias não se irá falar de outra coisa, mas como o plano é para demorar 4 ou 5 anos a concretizar, nunca irá ser feita a prometida entrega das terras "sem dono" a quem a quer trabalhar*. 

 

*Não vou especular sobre quem serão, para a ministra Cristas e para um Governo ultraliberal, as pessoas que irão cultivar as terras "sem dono". Mas algo me diz que ela não está a pensar em cooperativas, trabalhadores desempregados ou pobres. Há tanto latifundiário com casa em Lisboa e no Porto e fazenda no interior que precisa do apoio do Governo que dificilmente será quem precisa a usufruir de tal (hipotética) oportunidade... 

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