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Arrastão: Os suspeitos do costume.

A subversão do sistema

Sérgio Lavos, 30.04.12

 

Duas pessoas decidem juntar-se à porta de um lugar público frequentado a distribuir folhetos. As pessoas passam, umas aceitam, outras recusam, algumas não chegam a parar. Se os folhetos forem de publicidade a uma cadeia de supermercados ou a uma loja de uma marca de luxo, essas duas pessoas poderão distribuir até ao fim a sua publicidade. O mesmo acontecerá com os distribuidores de jornais gratuitos, no meio do trânsito ou na rua. Se essas duas pessoas forem distribuir esses folhetos publicitários em frente a um Centro de Emprego, poderão fazê-lo à vontade, ninguém as incomodará. Mas se essas duas pessoas estiverem a distribuir folhetos com informação ao desempregados que entram e saem do Centro, informação sobre os seus direitos, sobre a melhor forma de se organizarem, então correrão o risco de serem identificadas pela polícia (que todos nós pagamos) e serem levadas a tribunal pelo crime de "manifestação sem a devida autorização". Isto aconteceu em Portugal, no dia 26 de Abril de 2012. A comissária Carla Duarte, porta-voz da PSP, veio dizer que um ajuntamento de duas ou mais pessoas já pode ser considerado uma manifestação. Trinta e oito anos depois de uma ditadura que proibia "ajuntamentos" por serem subversivos. Bem sabemos que à polícia muitas vezes falta bom-senso e, sobretudo, conhecimento da Constituição que é suposto defender. Mas este caso, que se soma a tantos outros acontecidos nos últimos meses, é mais um sinal de que alguma coisa insidiosamente preocupante começa a emergir neste país em plena suspensão da democracia. Porque o vulgar polícia de rua não aje desta maneira se não tiver as chefias do seu lado. E no topo da hierarquia está, uma vez mais, o ministério da Administração Interna, o único cujo orçamento foi reforçado para este ano. Miguel Macedo e o Governo PSD/CDS a que pertence sabem muito bem o que estão a fazer. Se isto não é gravíssimo e inadmissível, então começo seriamente a pensar que o limiar da decência há muito foi ultrapassado.

Miguel

Daniel Oliveira, 27.04.12

Fica aqui o texto que publiquei, hoje, no "Expresso", sobre o Miguel. Pela intensa amizade e cumplicidade pessoal, política e profissional que com ele mantive, nos últimos 22 anos, falta-me o distanciamento que consegui ler noutros, em textos muito mais claros e relevantes sobre o que foi a vida e o percurso do Miguel. Tentei, mas não consegui. Uma espécie de anestesia não me deixa. Mas era obrigatório passar para o papel (era no papel que o Miguel se entendia) o imenso carinho que tinha, que tenho, que sempre hei de ter por este ruivo que mudou, em muitas coisas, talvez em muitas mais do que ele julgava, a minha vida. Sinto falta dele, e isso impede-me de escrever com clareza. Ficam as minhas desculpas por isso. Mas, mesmo assim, tenho de deixar escrito.

 

 

 

Nada tenho a escrever sobre política. O Miguel não me perdoaria isto. Deixar passar uma semana sem me entregar ao que sei fazer. As duas coisas a que me dediquei na vida – a política e o jornalismo – fiz ao lado dele, com ele. E para ele, por pior que tudo corresse, a escrita e a política não esperavam pelos nossos estados de alma. Nessa matéria, era implacável. Mas tinha, apesar disso, uma fome de vida como nunca vi em ninguém. E desconfiava de quem só vivia para grandes causas. Como podemos nós compreender o que devemos fazer pelos outros se nada sabemos deles? Como podemos nós lutar pelo outro se ele não for mais do que uma abstração? O Miguel gostava de pessoas antes de gostar de uma ideia.

 

Não, não me preparo para um panegírico. Panegíricos fazem-se a heróis. E o Miguel não era um herói. Não era uma estátua. Sim, foi detido com 15 anos pela PIDE. Sim, foi militante comunista quando era difícil. Sim, viveu sempre dividido entre a lealdade à sua “tribo” e o imperativo de não defender aquilo em que não podia acreditar. Mas, da sua coragem, o que mais importava era o desplante. Ter organizado os primeiros concertos em Lisboa quando isto era um deserto. Ter lançado um jornal e uma revista de esquerda quando isso era impensável. Ter-se mudado para o Alentejo e para a serra algarvia para trabalhar em desenvolvimento local quando o seu “estatuto” não o obrigaria. Ter voltado ao jornalismo, várias vezes, para nos oferecer maravilhosos documentários e livros. Ser, e isso era uma das nossas muitas cumplicidades, um incurável viajante. Os seus olhos terem continuado, até ao último dia, a brilhar com cada coisa nova que descobria, com cada coisa velha que defendia. Dos seus míticos ataques de fúria passarem com a mesma inesperada rapidez com que chegavam. Com as mulheres, com os lugares, com a política, com o trabalho, com tudo, o Miguel era intenso.

 

O Miguel era irremediavelmente humano em todos os seus defeitos e qualidade. Não faço um panegírico porque o Miguel não era apenas meu camarada. Não era sobretudo meu camarada. Era meu amigo. Com fraquezas, erros, injustiças. Como com todos os amigos, que não o são apenas por hábito, claro que me zanguei tantas vezes com o Miguel como ele se terá zangado comigo. Fizemos sempre as pazes sem uma palavra, apenas voltando porque tem de ser. O tempo permite que a amizade viva com o que não precisa de ser dito. E ao fim de 22 anos de um imenso carinho, mais de metade da minha vida, onde em cada momento me aparece o seu rosto, a sua voz, o seu riso estranho e o seu desvairado otimismo, os seus defeitos passaram a ser tão indispensáveis como as suas qualidades. Parte de mim.

 

O Miguel morreu (custa escrever) indecentemente cedo. Cedo demais para toda a energia que tinha e que, até ao último minuto, nunca o abandonou. Cedo demais para todos, e éramos muitos, que dele dependiam, como se depende de uma casa que, mesmo com infiltrações, sempre foi a nossa. Mas uma coisa é certa: o Miguel teve uma vida cheia. E encheu as dos outros. E como ele não me perdoaria que não falasse de política, deixou a nossa muitíssimo mais pobre. Há pouca gente com a sua ousadia. Na política, mundo repleto de bonecos insufláveis, não há quase ninguém. Sim, talvez o País aguente todas as perdas. Talvez a esquerda supere esta. Para mim, para todos os seus amigos, é que é mais difícil tapar este buraco.

 

Publicado na eição de hoje do "Expresso"

Vencer a dividocracia

Daniel Oliveira, 27.04.12

 

 

Estive na Islândia a preparar uma reportagem para o "Expresso", que será publicada brevemente na revista. Se olharmos para os números, a Islândia nem está mal. Antes de mais, foi um exemplo de coragem. Através de dois referendos, recusou-se a pagar, com o dinheiro dos contribuintes, os desvarios dos seus bancos. Prometeram-lhes o dilúvio e o dilúvio não aconteceu. Julgou-se um ex-primeiro-ministro, que ouviu, esta semana, o verdito: inocente em três das quatro acusações. Na verdade, os próprios islandeses viam este julgamento como um processo político inconsequente. Mas prepara-se outro, inatacável e credível, para vários responsáveis por instituições financeiras.

 

A Islândia é hoje um exemplo de recuperação económica. Tem um desemprego de 7%, muito superior ao que está habituada, mas muito abaixo dos países em crise. Teve, o ano passado, um crescimento de 3%. Acima da maioria dos países europeus. Vários sectores da economia estão a saber aproveitar a queda da coroa. Tudo isto, três anos depois de ter vivido o 11º maior colapso financeiro da história mundial. Se olharmos para dimensão do País, a maior de sempre no Mundo Ocidental. Basta pensar nisto: os três bancos falidos correspondiam a oito vezes o PIB da Islândia.

 

E, no entanto, os islandeses estão furibundos. Com os banqueiros, claro. Com o anterior governo, evidente. Mas também com o atual. Com tudo o que cheire a política. Estão, pode dizer-se, depois de toda a esperança, perdidos. A principal razão é esta: as suas dívidas aos bancos. Não me alongo mais, porque as razões profundas, as contradições, a justiça e a injustiça desta revolta, poderão ler na reportagem, contadas pelos próprios. Apesar de terem visto, graças a decisões do governo e da justiça, impensáveis noutro país, as suas dívidas por empréstimo para a compra de casa reduzidas - depois do colapso tinham aumentado entre 40% e o triplo - continua a ser incomportável pagá-las. E é a dívida, e não a crise económica - que ali se sente muitíssimo menos do que aqui - que está a corroer a confiança dos islandeses nas suas instituições democráticas. Mesmo para os que, e são muitos, não as pagam há dois anos.

 

Só senti vontade de vos contar um pouco - muito pouco - da complexa situação islandesa - quase incompreensível para nós - quando li este título: "Deco recebe 15 pedidos de famílias aflitas com dívidas". O exemplo extremo da Islândia, onde as coisas atingiram, graças à deriva ultraliberal do anterior governo, proporções dantescas, e as feridas profundas que isso deixou na pacata sociedade islandesa, são uma excelente lição. A dívida tem uma natureza absolutamente diferente de todos os problemas sociais. Até em países que há muito não conhecem a pobreza e que, sejamos francos, continuam a nem a cheirar. Ela cria um ambiente de ansiedade insuportável. Mesmo quando não está a ser paga. E, mais importante do ponto de vista da saúde democrática, criam uma asfixiante sensação - a maioria das vezes é mais do que uma sensação - de perda de liberdade. É como viver com um cutelo sobre o pescoço. E ninguém é autónomo nas suas escolhas se passar uma vida à beira da morte.

 

A dívida e o desemprego são as duas mais eficazes armas sociais de destruição de uma democracia. Provocam, como a violência arbitrária e incontrolável, uma constante sensação de insegurança. Por uma questão de auto-preservação, têm de ser as duas principais prioridades de uma democracia.

O endividamento das famílias, das empresas e dos Estados tem servido para discursos simplistas, que ignoram a mutação que se operou no capitalismo desde os anos 80. Hoje, toda a economia e toda a sociedade vive para financiar a banca e os mercados financeiros em vez de acontecer o oposto. O que tem de acontecer para voltar a pôr as instituições financeiras no lugar que lhes tem de caber é global e exige uma extraordinária coragem política - aquela que nem aos islandeses está a chegar.

 

A dividocracia - socorro-me do título de um documentário sobre a Grécia - é, depois das ideologias totalitárias dos anos 30, o mais poderoso instrumento de subjugação dos cidadãos e dos Estados a poderes não eleitos. Vencer a chantagem do poder financeiro - que alimenta a dívida e se alimenta da dívida - é, neste momento, a primeira de todas as batalhas de quem se considere democrata. É aqui que se fará a trincheira de todos os combates políticos deste início de século.

 

Publicado no Expresso Online

 

Imagem minha de Reiquiavique

Quase

Bruno Sena Martins, 26.04.12
7 anos depois, o 'quase' de Sá Pinto numa meia-final é mais grato para os sportinguistas do que o 'quase' de 'José Peseiro' numa final. No totalitarismo da sua medida, é o regime de expectativas que define as alturas do vivido.

Ausências que falam

Daniel Oliveira, 26.04.12

 

Desculpem se ainda não vos falo do Miguel. Há coisas que, para ficarem escritas e publicadas, precisam de tempo. Quando se trata de um amigo assim, tão importante para mim, pôr sentimentos preto no branco precisa de algum tempo. Será, talvez, na edição do Expresso. Tenho o texto aqui, já escrito, a ganhar coragem.

 

Acomodo-me então ao comentário da atualidade. E quero defender um homem que nunca foi da minha cor política. Em quem nunca votei e que a única vez que apoiei, era felizmente demasiado novo para me custar o que, na altura, sei que me custaria. Com Manuel Alegre e dezenas militares de Abril, Mário Soares não foi às comemorações oficiais do 25 de Abril.

 

Lá esteve Passos Coelho. Que usou, com todo o direito, porque o cravo não tem dono, uma flor ao peito. Digo uma flor, porque, na lapela do exterminador do Estado Social e da nossa soberania democrática, não pode ser mais do que isso. Como a bandeirinha que os ministros usam sempre que se vergam perante a senhora Merkel ou pedem aos jovens para emigrar. Sabemos que há símbolos que são tão mais necessários para quem os usa quanto menos sentido fazem. Lá esteve Cavaco Silva, a falar da imagem do País no exterior, como quem faz o papel de relações públicas de uma marca ou de uma banda pop. A falta de memória política e a profunda ignorância histórica do Presidente, que o torna incapaz de perceber o significado de cada data, seja ela o 25 de Abril ou, como um dia lhe chamou, o "dia da raça", já perderam a capacidade de me incomodar.

 

Mário Soares, com outros, não esteve lá. Logo surgiram algumas almas incomodadas pela falta de sentido de Estado do antigo Presidente da República. Por não respeitar as instituições e a data. É o contrário. Soares não é deputado. Como os militares de Abril, não ia falar naquela cerimónia. Como eles, a sua presença ou a sua ausência eram a única forma de expressarem revolta por o que a maioria eleita está a fazer a este País. Com este gesto, não põe em causa a democracia. O Parlamento lá está, com toda a legitimidade. Não precisa da sua bênção. Mas o 25 de Abril não é uma data sem conteúdo político. Exatamente: não é o 10 de Junho. Tem um significado. Sobretudo para aqueles que, como Soares, Alegre, os militares de Abril e tantos outros, nele tiveram um papel ativo. E há momentos em que escolhemos com quem os celebramos. E em que celebrá-los com quem tem pelos valores do 25 de Abril um evidente desprezo pode ser insuportável.

 

Mário Soares e Manuel Alegre fizeram o que lhes competia: em nome próprio, disseram o que tinham a dizer sobre a destruição deste país. Sem terem de abrir a boca. Os militares de Abril fizeram o que lhes competia: sem usarem o seu estatuto de militares, respeitando, como respeitaram desde que voltaram, por vontade própria, para os quartéis, deixaram claro que não se sentiam bem na companhia deste governo. E explicaram porquê.

Bem sei que há muita gente que gostaria de ver o 25 de Abril transformado numa data vazia. Ainda não é. Ainda muitos se lembram ou, não se lembrando, lhe dão um sentido mais profundo do que o golpe de Estado que fez cair a ditadura. Terão de esperar mais um pouco para que seja indiferente como e com quem se celebra este momento.

 

Publicado no Expresso Online

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