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Arrastão: Os suspeitos do costume.

A má educação

Miguel Cardina, 30.11.12

A entrevista dada por Pedro Passos Coelho à TVI esta quarta-feira teve algumas novidades. Talvez a mais significativa tenha sido a declaração de que o corte de 4 mil milhões a anunciar em Fevereiro será quase exclusivamente dirigido às “prestações sociais”; e que a Educação será um dos seus alvos preferenciais desta "redução da despesa". Para quem tinha dúvidas, começou a levantar-se o pano sobre o que quererá dizer na prática a “refundação do Estado social”.Para os adeptos caseiros da "doutrina do choque", está na hora de “aproveitar a crise”: foi esta reveladora expressão que o primeiro-ministro deixou escapar nos momentos finais da conversa.

 

As palavras de Passos Coelho foram claras quanto à vontade de perverter o carácter público da educação. Evocando a Constituição, referiu a diferença entre a saúde e a educação e notou que nesta última existe “margem de liberdade” para introduzir um sistema de financiamento “mais repartido” entre os cidadãos e o Estado. Abre-se assim a porta ao pagamento de propinas no ensino público secundário. Constitucionalistas da área do PSD, como Costa Andrade e Pedro Bacelar Gouveia, já vieram observar que a obrigatoriedade da frequência do secundário não lhes parece ferida com este ataque à gratuitidade. Jorge Miranda discorda e diz que uma e outra estão necessariamente relacionadas. Estão abertas as hostilidades.

 

Convém introduzir aqui com um parêntesis para dizer duas coisas óbvias. A primeira: atualmente, em Portugal, a educação até ao 12.º ano já não é gratuita. Basta perguntar às famílias quanto gastam em transportes, manuais escolares e outros materiais indispensáveis ao longo do ano. Ou ouvirmos as notícias sobre crianças que frequentam a escola com fome e que aí não usufruem de uma refeição gratuita, como num país decente aconteceria. A segunda:o argumento que estaríamos a cortar na despesa/Estado social ao invés de estarmos a aumentar a receita/impostos não colhe neste caso. A introdução de uma propina seria na verdade a introdução de um novo imposto, neste caso com efeitos muito negativos na qualidade do ensino e na coesão social. Dito isto, avancemos.

 

No concreto, ainda não ficámos a conhecer quais serão os planos do governo. Mas sabemos que, caso a intenção genérica avance, ela significará um ataque sem precedentes à Escola pública, gratuita e de qualidade. Em primeiro lugar, a introdução de propinas desincentivará a frequência do ensino secundário, num país que tem ainda elevados índices de abandono escolar. Segundo o último relatório da OCDE, apenas 52% dos jovens portugueses com idades compreendidas entre os 25 e os 34 anos terminou o ensino secundário. Se a isto juntarmos o aumento da pobreza e da percepção que a escola não dá um futuro, temos um quadro muito pouco auspicioso.

 

Em segundo lugar, um sistema de co-pagamentos – porventura mesclado com algumas bolsas ou isenções - reforçará as escolas privadas. Rasurada a gratuitidade, o campo de negócio das escolas privadas – grande parte delas vivendo hoje à conta de “contratos de associação” ilegítimos – expande-se fortemente e parecerá plausível a algumas fatias sociais o discurso sobre a “liberdade de escolha”. Se pagamos nesta escola pública, porque não ir para aquela escola privada? Retirando do ensino público famílias com maior capital económico e simbólico, abrandará fortemente um dos factores de pressão para que este se mantenha de qualidade. O resultado será uma sociedade menos escolarizada, mais estratificada e com mais desigualdades de raiz.

 

Se as palavras de Passos Coelho foram claras, elas parecem ter já causado incómodo. Nuno Crato afirmou ontem que o carácter gratuito do ensino obrigatório não estará em causa; o secretário de Estado João Casanova de Almeida disse algo diferente: que “ainda é cedo para discutir a matéria”. O Diário de Notícias fala hoje de outros cenários que poderão estar em cima da mesa: reforço dos contratos de associação, cheques-ensino, concessão de escolas públicas a privados. Qualquer uma destas soluções mostra bem que o plano do governo passa por estender os espaços de negócio no ensino e atacar a sua universalidade. Como Nuno Serra bem identificou há uns tempos atrás, encolher, degradar e dualizar são os desígnios do governo para a área. Foi agora dado um passo em frente. Saibamos responder à altura.

 

Publicado no esquerda.net

A infinita generosidade do governo

Daniel Oliveira, 30.11.12

 

O sempre contra o despesismo do Estado Paulo Portas fez, em 2003, um investimento que o País não podia dispensar: mandou comprar dois submarinos. Que custaram a módica quantia de 1.070 milhões de euros. Estarão pagos em 2026. A vendedora foi a empresa alemã Man Ferrostaal. Desse negócio já muito se falou. Na Alemanha já foram condenadas pessoas por corrupção. Em Portugal, o julgamento por burla qualificada e falsificação de documentos continua.

 

A aquisição dos submarinos corresponderia a contrapartidas de investimento na indústria exportadora, criando capacidades na indústria de defesa. Segundo o contrato assinado entre o Estado português e a German Submarine Consortium, essas contrapartidas seriam garantidas até 2012 e geridas pela FerrostaalAscenderiam a 1.210 milhões de euros. Até 2010, 19 dos 39 projetos previstos estavam em águas de bacalhau. Em 2012, 721 milhões de ainda estão por resolver. Muitas possibilidades foram postas. Mas, esta semana, a imprensa deu a conhecer a solução para o imbróglio: o ministro da Economia acordou com o Fundo de Investimento alemão MPC (que agora detém a Ferrostaal) a recuperação do hotel de luxo Alfamar, em Albufeira. E assim, com um investimento de 150 milhões de euros, fica o contencioso das contrapartidas encerrado.

 

O deputado António Filipe, do PCP, levou o assunto ao Parlamento. Esclareceu-me, e eu desconhecia, que tal investimento já há muito estava previsto e até foi classificado como Projeto de Interesse Nacional pelo governo anterior. A ser feito por esse mesmo fundo de investimento alemão. Por decisão própria, a MPC decidiu adiar a coisa. Agora, que esse fundo passou a controlar a Ferrostaal, encontrou-se a solução: o investimento que iam fazer, sem qualquer relação com a compra dos submarinos, passa a contar como contrapartida. E conta como 600 milhões de euros. 150 milhões como investimento, 450 milhões de negócios gerados por um projeto que trará lucro para... a MPC. Ou seja, o responsável por garantir a contrapartida é o beneficiário do seu próprio investimento. Resultado: a defesa dos arguidos no processo em tribunal já veio dizer que, se o Estado Português se dá por satisfeito com esta contrapartida, não há qualquer razão para que se mantenha a acusação. O processo deve ser arquivado.

 

O deputado António Filipe resumiu bem esta história: "O Estado Português foi lesado em 721 milhões de euros pela Ferrostaal, num processo com implicações criminais. As contrapartidas a prestar deveriam, nos termos da lei, beneficiar a capacidade da indústria portuguesa e permitir aumentar a sua competitividade nos mercados internacionais. Entretanto, o Fundo de Investimento alemão que controla a Ferrostaal pegou num projeto de tinha em Portugal desde há vários anos, e que não avançou entretanto por razões que lhe são imputáveis, e contou com a cumplicidade do Governo de Portugal para que esse seu projeto de 150 milhões de euros seja contabilizado pelo valor de 600 milhões. E quando às contrapartidas, não se fala mais nisso."

 

Esta edificante história é uma excelente ilustração de como quem enche a boca com o despesismo do Estado gere os dinheiros públicos e trata dos interesses do País. Começa com a compra de submarinos que não precisávamos. Continua com ilegalidades que provavelmente nunca veremos esclarecidas. E acaba com quem não cumpriu os termos do contrato a lucrar com o seu incumprimento, lesando o País, por vontade de quem o deveria defender, em centenas de milhões de euros. Só nos falta saber uma coisa: o desfalque ao País foi combinado durante a visita a Portugal da chanceler alemã, amante das contas certas (as dos outros, claro), ou veio da cabeça do senhor ministro da Economia?

 

Publicado no Expresso Online

Propinas

Bruno Sena Martins, 29.11.12
Tentar renegociar a dívida? Disparate. Propinas no secundário? Excelente ideia.

O sistema de valores por que se pauta Passos Coelho é da ordem da excentricidade revolucionária, um sistema ora legitimado pelo necessário conformismo à 'lei dos tempos', ora institucionalizado pela democracia portuguesa. Que ninguém duvide, vivemos em tempos revolucionários; desgraçadamente nestes tempos as revoluções são menos veleidades utópicas do que distopias reinantes.

Carta aberta

Daniel Oliveira, 29.11.12

Não tenho qualquer esperança que este governo mude de rumo. Por isso quero a sua demissão imediata. E dela só podem nascer eleições. Ainda assim, juntei-me a estas vozes para exigir uma mudança de rumo ou a demissão do governo. Porque todos somos poucos para salvar o País desta gente.

 

"Exmo. Senhor Primeiro-Ministro,

 

Os signatários estão muito preocupados com as consequências da política seguida pelo Governo.

 

À data das últimas eleições legislativas já estava em vigor o Memorando de Entendimento com a Troika, de que foram também outorgantes os líderes dos dois Partidos que hoje fazem parte da Coligação governamental.

 

O País foi então inventariado à exaustão. Nenhum candidato à liderança do Governo podia invocar desconhecimento sobre a situação existente. O Programa eleitoral sufragado pelos Portugueses e o Programa de Governo aprovado na Assembleia da República, foram em muito excedidos com a política que se passou a aplicar. As consequências das medidas não anunciadas têm um impacto gravíssimo sobre os Portugueses e há uma contradição, nunca antes vista, entre o que foi prometido e o que está a ser levado à prática.

 

Os eleitores foram intencionalmente defraudados. Nenhuma circunstância conjuntural pode justificar o embuste.

 

Daí também a rejeição que de norte a sul do País existe contra o Governo. O caso não é para menos. Este clamor é fundamentado no interesse nacional e na necessidade imperiosa de se recriar a esperança no futuro. O Governo não hesita porém em afirmar, contra ventos e marés, que prosseguirá esta política - custe o que custar - e até recusa qualquer ideia da renegociação do Memorando.

 

Ao embuste, sustentado no cumprimento cego da austeridade que empobrece o País e é levado a efeito a qualquer preço, soma-se o desmantelamento de funções essenciais do Estado e a alienação imponderada de empresas estratégicas, os cortes impiedosos nas pensões e nas reformas dos que descontaram para a Segurança Social uma vida inteira, confiando no Estado, as reduções dos salários que não poupam sequer os mais baixos, o incentivo à emigração, o crescimento do desemprego com níveis incomportáveis e a postura de seguidismo e capitulação à lógica neoliberal dos mercados.

 

Perdeu-se toda e qualquer esperança.

 

No meio deste vendaval, as previsões que o Governo tem apresentado quanto ao PIB, ao emprego, ao consumo, ao investimento, ao défice, à dívida pública e ao mais que se sabe, têm sido, porque erróneas, reiteradamente revistas em baixa.

 

O Governo, num fanatismo cego que recusa a evidência, está a fazer caminhar o País para o abismo.

 

A recente aprovação de um Orçamento de Estado iníquo, injusto, socialmente condenável, que não será cumprido e que aprofundará em 2013 a recessão, é de uma enorme gravidade, para além de conter disposições de duvidosa constitucionalidade. O agravamento incomportável da situação social, económica, financeira e política, será uma realidade se não se puser termo à política seguida.

 

Perante estes factos, os signatários interpretam – e justamente – o crescente clamor que contra o Governo se ergue, como uma exigência, para que o Senhor Primeiro-Ministro altere, urgentemente, as opções políticas que vem seguindo, sob pena de, pelo interesse nacional, ser seu dever retirar as consequências políticas que se impõem, apresentando a demissão ao Senhor Presidente da República, poupando assim o País e os Portugueses ainda a mais graves e imprevisíveis consequências.

 

É indispensável mudar de política para que os Portugueses retomem confiança e esperança no futuro.

 

PS: da presente os signatários darão conhecimento ao Senhor Presidente da República.

 

Lisboa, 29 de Novembro de 2012"

 

MÁRIO SOARES

ADELINO MALTEZ  (Professor Universitário-Lisboa)

ALFREDO BRUTO DA COSTA (Sociólogo)

ALICE VIEIRA (Escritora)

ÁLVARO SIZA VIEIRA (Arquiteto)

AMÉRICO FIGUEIREDO (Médico)

ANA PAULA ARNAUT (Professora Universitária-Coimbra)

ANA SOUSA DIAS (Jornalista)

ANDRÉ LETRIA(Ilustrador)

ANTERO RIBEIRO DA SILVA (Militar Reformado)

ANTÓNIO ARNAUT (Advogado)

ANTÓNIO BAPTISTA BASTOS (Jornalista e Escritor)

ANTÓNIO DIAS DA CUNHA (Empresário)

ANTÓNIO PIRES VELOSO (Militar Reformado)

ANTÓNIO REIS (Professor Universitário-Lisboa)

ARTUR PITA ALVES (Militar reformado)

BOAVENTURA SOUSA SANTOS (Professor Universitário-Coimbra)

CARLOS ANDRÉ (Professor Universitário-Coimbra)

CARLOS SÁ FURTADO (Professor Universitário-Coimbra)

CARLOS TRINDADE (Sindicalista)

CESÁRIO BORGA (Jornalista)

CIPRIANO JUSTO (Médico)

CLARA FERREIRA ALVES (Jornalista e Escritora)

CONSTANTINO ALVES (Sacerdote)

CORÁLIA VICENTE (Professora Universitária-Porto)

DANIEL OLIVEIRA (Jornalista)

DUARTE CORDEIRO (Deputado)

EDUARDO FERRO RODRIGUES (Deputado)

EDUARDO LOURENÇO (Professor Universitário)

EUGÉNIO FERREIRA ALVES (Jornalista)

FERNANDO GOMES (Sindicalista)

FERNANDO ROSAS (Professor Universitário-Lisboa)

FERNANDO TORDO (Músico)

FRANCISCO SIMÕES (Escultor)

FREI BENTO DOMINGUES (Teólogo)

HELENA PINTO (Deputada)

HENRIQUE BOTELHO (Médico)

INES DE MEDEIROS (Deputada)

INÊS PEDROSA (Escritora)

JAIME RAMOS (Médico)

JOANA AMARAL DIAS (Professora Universitária-Lisboa)

JOÃO CUTILEIRO (Escultor)

JOÃO FERREIRA DO AMARAL (Professor Universitário-Lisboa)

JOÃO GALAMBA (Deputado)

JOÃO TORRES (Secretário-Geral da Juventude Socialista)

JOSÉ BARATA-MOURA (Professor Universitário-Lisboa)

JOSÉ DE FARIA COSTA (Professor Universitário-Coimbra)

JOSÉ JORGE LETRIA (Escritor)

JOSÉ LEMOS FERREIRA (Militar Reformado)

JOSÉ MEDEIROS FERREIRA (Professor Universitário-Lisboa)

JÚLIO POMAR (Pintor)

LÍDIA JORGE (Escritora)

LUÍS REIS TORGAL (Professor Universitário-Coimbra)

MANUEL CARVALHO DA SILVA (Professor Universitário-Lisboa)

MANUEL DA SILVA (Sindicalista)

MANUEL MARIA CARRILHO (Professor Universitário)

MANUEL MONGE (Militar Reformado)

MANUELA MORGADO (Economista)

MARGARIDA LAGARTO (Pintora)

MARIA BELO (Psicanalista)

MARIA DE MEDEIROS (Realizadora de Cinema e Atriz)

MARIA TERESA HORTA (Escritora)

MÁRIO JORGE NEVES (Médico)

MIGUEL OLIVEIRA DA SILVA (Professor Universitário-Lisboa)

NUNO ARTUR SILVA (Autor e Produtor)

ÓSCAR ANTUNES (Sindicalista)

PAULO MORAIS (Professor Universitário-Porto)

PEDRO ABRUNHOSA (Músico)

PEDRO BACELAR VASCONCELOS (Professor Universitário-Braga)

PEDRO DELGADO ALVES (Deputado)

PEDRO NUNO SANTOS (Deputado)

PILAR DEL RIO SARAMAGO(Jornalista)

SÉRGIO MONTE (Sindicalista)

TERESA PIZARRO BELEZA (Professora Universitária-Lisboa)

TERESA VILLAVERDE (Realizadora de Cinema)

VALTER HUGO MÃE (Escritor)

VITOR HUGO SEQUEIRA (Sindicalista)

VITOR RAMALHO (Jurista)

A melhor geração está de partida

Daniel Oliveira, 29.11.12

Olhamos à nossa volta e vemos, todos os meses, milhares de jovens emigrar. Ouvimos amigos e filhos de amigos falar dos seus planos para partir. Não com a satisfação de quem procura novas experiências, mas com a frustração de quem sente que o País onde nasceu não lhe dá nem lhe dará no futuro qualquer oportunidade.

 

Comparamos muitas vezes esta emigração com a do passado. É incomparável. O que estamos a perder agora são as primeiras gerações de gente qualificada. Qualificada graças a um investimento que, no discurso dominante, é tida como um luxo incomportável.

 

O emigrante dos anos 60 vinha de meios rurais e era, em muitos casos, ou analfabeto ou próximo disso. O emigrante atual é jovem, qualificado e procura carreira, e não apenas dinheiro para sobreviver no estrangeiro e depois regressar. Segundo uma investigação da TL network e do Instituto de Ciências Sociais os emigrantes saem de Portugal cada vez mais jovens. Por isso, com cada vez menores laços emocionais com o País.

Esta vaga de emigração não terá apenas um efeito catastrófico no já desastroso equilíbrio demográfico do País. Terá efeitos profundos na sustentabilidade da segurança social, na competitividade da nossa economia, na capacidade de inovação e em todos os domínios do futuro de Portugal. Envelhece, desqualifica e atrasa o País.

 

Paulo Azevedo, presidente executivo na Sonae, disse este mês que a maioria dos que emigram regressarão. A afirmação vale o que vale. É uma fezada. Regressarão se isto melhorar. Regressarão se o que encontrarem lá fora não for muito melhor. E quando estamos a falar de pessoas qualificadas, dificilmente, com o que está a ser feito a este País, terão razões para regressar nas próximas décadas.

 

A razão porque Paulo Azevedo diz isto está numa outra declaração sua: "é melhor trabalharem no estrangeiro do que estarem desempregados". É verdade. Acontece que alguns dos que emigram não tinham apenas o desemprego como destino em Portugal. Tinham um trabalho mal pago e sem qualquer segurança ou perspetiva de futuro. Eramsobrequalificados para o tecido empresarial português, que, por culpa própria e do Estado, não acompanhou o investimento público na qualificação do trabalho. O modelo de desenvolvimento que este governo defende, com umaaposta na competitividade pela redução dos custos de produção, não dá aos jovens emigrantes qualquer esperança de regresso. Portugal acentua todas as razões que os levam a partir.

 

Pode até acontecer que esta seja a última vaga de emigrantes qualificados. Por uma simples razão: se o nosso modelo económico despreza a qualificação, deixaremos, com o tempo, de qualificar os nossos jovens. E ficaremos muito próximos dos países subdesenvolvidos, que formam os seus quadros no estrangeiro e dependem do estrangeiro para tudo o que exija alguma especialização. Seremos o que já fomos: um fornecedor de mão de obra desqualificada e de talentos por formar.

 

Se a taxa de emigração jovem continuar a subir - como o FMI recentemente confessou ser, com a aplicação da austeridade, inevitável -, Portugal estará condenado por décadas. Teremos de começar tudo do princípio. O investimento que fizemos, e que permitiu inverter em tempo record os nossos indicadores sociais, escolares e de saúde, teve resultados lentos. Mas para destruir esses resultados e atirar para o lixo todo o dinheiro que usámos não é preciso muito tempo. Bastam dez anos.

 

Há uma parte de tudo isto em que temos, como comunidade, fortíssimas responsabilidades. Desprezamos, enquanto povo, quase todas as conquistas dos últimos quarenta anos. Apesar de temos um dos melhores serviços nacionais de saúde do Mundo, quando não tínhamos nada antes, poucas vezes guardámos uma palavra positiva para ele. Apesar de termos democratizado e generalizado o ensino em pouquíssimo tempo, guardámos os elogios para a escola do passado, que ensinava, e ensinava mal, uma pequena minoria. Desprezámos as impressionantes evoluções em saneamento básico, infraestruturas e condições de vida dos portugueses. Com imensos erros, conseguimos coisas extraordinárias e raramente, no nosso discurso quotidiano, lhe demos qualquer valor.

 

Num artigo do jornal "Público", ainda antes das últimas eleições, Pedro Passos Coelho recordava que, de 1973 a 1999, as despesas sociais passaram de 8,7 por cento para 26,1 por cento. Acontece que antes do 25 de Abril cinco milhões de portugueses não tinham cobertura médica, a mortalidade infantil estava na estratosfera e havia muitas vezes mais analfabetos do que licenciados. Na altura, as nossas despesas sociais estavam, em percentagem do PIB, muito abaixo da média europeia. E continuam a estar. Mas aproximámo-nos da Europa. E agora, que os nossos amigos, os nossos filhos e os nossos netos partem, porque os que sempre viram estas conquistas como "demasiado generosas" finalmente levaram a melhor, choramos por o que estamos a perder.

 

Como comunidade, temos de nos perguntar: soubemos merecer as nossas vitórias? O País que construímos nas últimas décadas (e que é visível na mais qualificada e preparada geração da nossa história, que durante anos tratámos, por despeito, como ignorante) está a partir. Se nada fizermos, ficará o País do passado. A não ser, claro, que tomemos a defesa do que conquistámos como a luta das nossas vidas. Melhorando o que há para melhorar. Mas nunca regressando a um passado que nos obrigou a conquistar em poucas décadas o que outros tiveram um século para conseguir.

 

Publicado no Expresso Online

Um zero à esquerda

Daniel Oliveira, 28.11.12

 

Muitos constitucionalistas têm levantado imensas dúvidas sobre a constitucionalidade do Orçamento de Estado. Essa constitucionalidade apenas pode ser verificada pelo Tribunal Constitucional. E esse só se prenunciará a pedido do Presidente da República ou de um determinado número de deputados. São estas as regras em Portugal.

 

Deputados do PCP e do Bloco de Esquerda irão, ao que tudo indica, cumprir a sua obrigação: se têm dúvidas sobre a constitucionalidade de uma lei devem pedir ao tribunal competente que faça a respectiva fiscalização. É possível queum grupo de deputados do PS os venha a acompanhar, garantindo assim o número necessário de deputados para pedir a fiscalização sucessiva da lei do Orçamento. Mas António José Seguro já disse que não o fará. Que toda a gente sabe que se opõe a este orçamento e que o seu combate continuará a ser feito no "terreno político".

 

O papel da oposição não é apenas deixar registado nos jornais e na televisão que se opõe a uma determinada medida. Não é apenas ocupar uns lugares no Parlamento e justificar a sua inutilidade com uma postura de "responsabilidade" vazia de conteúdo. É ser consequente com a sua posição e cumprir as suas obrigações. No princípio do mês, Seguro disse que queria um Orçamento "sem dúvidas de constitucionalidade". Ou é um dos poucos portugueses sem essas dúvidas ou a palavra "querer" não é suficiente para que faça qualquer coisa por isso.

 

Se existe a convicção que uma determinada lei, e ainda mais a lei do Orçamento, viola a lei fundamental, é obrigação dos deputados pedir a verificação dessa constitucionalidade. Assim garantem que não vivemos numa república das bananas onde a lei constitucional é um mero adereço e a oposição uma mera sala de espera para o governo seguinte.Quem não cumpre as suas funções na oposição dificilmente as cumprirá no governo. Quem não zela pelo respeito pela Constituição da República como deputado dificilmente o fará enquanto primeiro-ministro. Quem fica quieto a ver um País a afundar não merece governá-lo.

 

Pedir a fiscalização da constitucionalidade de uma lei é um privilégio dos deputados, do Presidente e de mais uns poucos detentores de cargos públicos. É um ato essencialmente político. E exigir o respeito pela lei fundamental também o é. Se o líder do maior partido da oposição acha que a política se esgota no uso da palavra então escolheu a atividade errada. É apenas um saco de vento.

 

Percebo bem qual é a estratégia de Seguro. Não fazer ondas, não correr riscos, fingir-se de morto para não poder ser responsabilizado por nada e esperar que a situação apodreça de tal forma que o poder lhe caia no colo. Para fazer o quê com ele? Nem o próprio sabe. Tenho-me queixado da aparente indisponibilidade do PCP e do Bloco de Esquerda para participar numa solução alternativa a este desastre. Mas com Seguro a coisa é mais grave: ele está indisponível para fazer oposição. O problema do atual líder do PS não é a sua evidente falta de carisma. É o seu desempenho corresponder ao seu conteúdo. Poucas vezes a política nacional produziu tão pomposa inutilidade.

 

Publicado no Expresso Online

Há quem ache que ser estivador é uma brincadeira

Sérgio Lavos, 27.11.12

A Catarina Martins publicou um texto no Esquerda.net no qual esclarece as razões da luta dos trabalhadores da estiva. Contra a propaganda governamental dos avençados das televisões e dos jornais:

 

"Como o deputado do CDS que queria fazer um concurso para ver quem carregava um contentor mais depressa. Caricaturas à parte, aqui ficam algumas notas do que me transmitiram os sindicatos de estivadores e trabalhadores portuários com quem reuni:

 

1. Os portos dão lucro (em 2011 entregaram aos cofres do Estado mais de 10 milhões de euros) e a sua atividade está a crescer; não há nenhum problema de competitividade dos portos.

 

2. O governo está a preparar uma alteração laboral que torna regra o trabalho eventual não qualificado e mantém um pequeno grupo de trabalhadores com direitos.

 

3. Com a proposta do governo o trabalho suplementar vai ser pago mais caro, porque passa a ser calculado à hora e não por turno; mas mais trabalhadores precários, a quem nunca se paga trabalho suplementar, serão explorados.

 

4. Os estivadores e trabalhadores dos portos em greve não querem ser um pequeno grupo de privilegiados num mundo de precários explorados e é por quem está excluído que estão a lutar.

 

6. Há portos em Portugal onde só há trabalhadores eventuais ou em que os precários representam mais de 70% do total dos trabalhadores.

 

7. Os estivadores não querem acumular trabalho suplementar, mesmo que ganhem mais com isso. Querem, como toda a gente, poder estar com a família e os amigos. E querem que sejam contratados mais trabalhadores, criando emprego. Não tem sentido tanta gente sem trabalho e estes trabalhadores fazerem turnos de 14, 20 e mais horas

 

8. Os salários dos estivadores não são tão atrativos como circula na net: ficam entre 550 e 1700 euros. Os salários sobem com o muito trabalho suplementar que é exigido a estes trabalhadores.

 

9. Para ser estivador e progredir na carreira é necessário ter o 12º ano, fazer exames médicos, psicotécnicos e vocacionais, e fazer formação específica, tão mais exigentes quanto a especificidade técnica dos equipamentos que operam.

 

10. A segurança no trabalho deixa muito a desejar e os acidentes de trabalho não são raros. Os trabalhadores precários não só têm mais acidentes, porque têm menos acesso a formação especializado, como, quando têm acidentes, são dispensados.

 

11. A greve dos estivadores é só ao trabalho para lá de um turno de 8 horas. Ou seja, fazem oito horas de turno todos os dias e ainda asseguram, no resto do dia (os portos trabalham dia e noite), os serviços mínimos. Esta greve é um problema para a economia porque os portos assentam na exploração destes trabalhadores.

 

12. Acabar com a greve e proteger a economia é simples: basta o governo recuar na sua proposta aberrante de regresso às praças de jorna."

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