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Arrastão: Os suspeitos do costume.

A glória do moralismo

Daniel Oliveira, 31.01.13

 

 

E de novo a fúria viral. Glória Araújo, deputada do Partido Socialista, foi detida numa operação "stop" por conduzir com 2,4 gramas de álcool por litro de sangue. Trata-se de um crime. Glória Araújo não se pretende esconder atrás da imunidade parlamentar, que não tem como função defender os deputados deste tipo de acusações criminais - mas garantir a sua liberdade de expressão e a separação entre o poder legislativo e o poder judicial. A imunidade será levantada com consentimento da deputada. Como tinha de ser. Mas a gritaria continua. A senhora não pode continuar no seu cargo.

 

A ver se nos entendemos: um deputado não é um exemplo de tudo o que nós devíamos ser e não somos. É um representante. Se usar o seu cargo para proveito próprio - e tantos usam - deve abandoná-lo. Assim como qualquer trabalhador corrupto ou funcionário desonesto. Se tentar que as leis que aprovou não lhe sejam aplicadas também não pode ser legislador. Falta-lhe autoridade. Não foi o caso. A deputada violou a lei e será julgada como qualquer cidadão. A lei não estipula, nem deve estipular, que ser deputado é uma agravante. Não estipula, nem deve estipular, que conduzir alcoolizado é razão para perda de emprego, de cargo político ou de função da administração pública. A lei estipula que a senhora, que não conheço, deve ser julgada. E caso seja condenada pode ser punida com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. Por mim, defendo que os deputados, os ministros, os secretários de Estado ou os autarcas não podem estar acima da lei. Mas não defendo que devem estar abaixo da lei.

 

Um detentor de um cargo público, assim como qualquer cidadão, deve respeitar a ética republicana. Ou seja, zelar pelo interesse público no cargos que ocupa. Claro que alguns atos fora do cargo que se ocupa podem levar a que consideremos que um político não está apto para desempenhar determinadas funções. É pouco provável que um empresário corrupto seja um político honesto. Mas não se pode dizer o mesmo sobre alguém que conduz alcoolizado. Não, não reduzo a importância de tal crime. Ele pode custar, e tem custado, a vida de outros. Apenas não consigo vislumbrar qualquer relação entre este comportamento condenável - tão condenável que a deputada será, como qualquer outro cidadão, julgada - com o desempenho de funções públicas. Concluímos dele que a deputada é desonesta? Que é incompetente? Que não representará os seus eleitores? Que o seu cargo para benefício próprio? Não vejo como. Logo, não percebo porque raio há de abandonar qualquer função parlamentar que desempenhasse antes do sucedido. Ainda mais, quando ainda nem sequer foi julgada e condenada.

 

O que me incomoda nesta história, ao ponto de decidir escrever sobre ela, é confusão moral que se anda a instalar nas democracias. Que se baseia num princípio falso: que os políticos devem ser um exemplo para os restantes cidadãos. Não concordo. Os políticos devem ser um exemplo no desempenho das suas funções. Não fora delas. Porque corremos o risco de passar a escolher políticos que nos parecem tão perfeitos que só podem ter uma de duas características: ou não têm vida ou são excelentes mentirosos. Uma e outra são pouco recomendáveis a quem tem de decidir sobre as nossas vidas concretas.

 

Claro que estamos longe de andar a eleger gente perfeita. Se assim fosse, Isaltino Morais, condenado por corrupção, não teria sido reeleito já depois de ter sido julgado. O que parece suceder, e não só em Portugal, é uma inversão absoluta de valores: um político deve ser bom pai de família, marido extremoso, vizinho exemplar, condutor perfeito, cidadão sem mácula. Mas se, como político, for tudo o que não se recomenda, não há qualquer problema. Desde que seja, fora dos cargos que ocupa, um anjinho, tem lugar seguro.

 

Por mim, desde que Glória Araújo não use o cargo que ocupa para fugir à lei e se submeta a ela como qualquer cidadão, pode continuar no lugar para o qual foi eleita e ocupar todos os cargos que ocupava antes. Se foi uma deputada competente e cumpridora dos compromissos políticos que assumiu com os seus eleitores (e não estiver presa), deve ser reeleita. Se não foi nada disto não devem votar nela de novo. Mesmo que fosse, fora da Assembleia da República, uma cidadã exemplar.


Publicado no Expresso Online

O escurinho do FMI

Daniel Oliveira, 30.01.13

 

Usando a metáfora dos reis magos para se referir à troika, Arménio Carlos referiu-se, no seu discurso no final da manifestação dos professores, a Abebe Selassie como "o mais escurinho, o do FMI". Esta forma de falar do etíope representante do Fundo Monetário Internacional na troika causou natural incómodo a muita gente. A mim também. E por isso escrevi que "esta crise anda a fazer quase toda a gente perder o norte e o sul e coisas extraordinárias vêm de quem menos se espera". Outros foram os que, com mais ou menos veemência, se indignaram.

 

Em defesa de Arménio Carlos vieram muitas outras pessoas, mais e menos anónimas. Com argumentos variados. Uns, que nem deveriam merecer grandes comentários:criticar Arménio Carlos para defender o representante do FMI, nas circunstâncias em que o País vive, é dividir a oposição à troika e ajudar o inimigo. A ver se nos entendemos: considero a troika inimiga dos interesses do País e da justiça social. Mas isso não permite tudo. E não me permitirá a mim, com toda a certeza, esquecer outros valores e outros combates tão essenciais como os que agora se travam. O facto de ser dito pelo líder da CGTP, organização em que muitas vezes me revejo, torna a coisa mais grave para mim. Se não criticamos os nossos nunca teremos autoridade para criticar os outros.

 

Outro argumento foi um pouco mais sonso: então ele não é mesmo mais escurinho? Qual é o problema? A não ser que passe a ser normal responsáveis políticos referirem-se a adversários desta forma, tudo bem. Será, assim, natural ouvir em intervenções públicas falar do ministro das finanças alemão como o "aleijadinho" (ele, de facto, anda de cadeira de rodas, não anda?), a António Costa como o "monhé" (ele, de facto, tem origem indiana, não tem?), a Jaime Gama como o "badocha" (ele, de facto, tem uns quilos a mais, não tem?), a Ana Drago como a "pequenota" (ela, de facto, é baixa, não é?), a Mário Soares como o "velhadas" (ele, de facto, já não é jovem, pois não?), a Miguel Vale de Almeida como "larilas" (ele, de facto, assume publicamente a sua homossexualidade e faz da luta pelos direitos LGBT uma parte fundamental do seu combate político, não faz?). Espera-se, no entanto, que o debate público mantenha algumas regras de civilidade. E, sobretudo, que não alimente alguns preconceitos importantes. Arménio Carlos não disse o que disse num café, onde a conversa se pode aligeirar sem problemas. Disse o que disse numa intervenção pública oficial.

 

Por fim, porque não há oportunidade em que a expressão não seja usada a propósito ou a despropósito, veio a costumeira acusação do "politicamente correto". A ver se nos entendemos: o politicamente correto tem um sentido. E esse sentido resume-se assim: as palavras não são neutras e carregam consigo história, cultura e política. Por isso, devemos usá-las com correção. Não quer isto dizer que devemos ser bem comportados ou que devamos fazer de cada frase um manifesto político. Quer dizer que não devemos usar as palavras ao calhas. Pelo menos quando estamos a falar ou a escrever na arena pública e não conhecemos as convicções mais profundas dos nossos interlocutores. Há, claro, excessos de purismo no politicamente correto. Que me irritam, como me irritam todos os purismos. Mas o princípio está certo e não é preciso ser especialmente adepto dele para não gostar de ouvir falar de um responsável público como "escurinho".

 

Portugal é um país racista. Tem uma longa história de racismo. E uma longa história de negação desse racismo. É um racismo suave, sorrateiro, com diminuitivo (como "escurinho"), que não se exibe de forma descarada na praça pública. É, talvez, das formas mais insidiosas de racismo. E um homem que se enquadra numa corrente política com provas na luta contra o racismo e a discriminação, como Arménio Carlos, tem obrigação de saber isto. É por isso que o incómodo com esta afirmação deve ser maior por vir da sua boca. Não duvido, no entanto, que se a expressão tivesse sido dita por um homem de direita a indignação seria muito mais violenta. E mal. A direita tem, nesta matéria, menos responsabilidades. Não porque a direita seja, em geral, racista, mas porque acredita, em geral, que os portugueses não o são. É, por isso, menos vigilante consigo própria.

 

Se repararmos, Abebe Selassie é o primeiro negro com algum poder real em Portugal. Ou seja, num país razoavelmente multiétnico, o primeiro negro com algum poder só o consegue ter porque esse poder não resultou da vontade dos portugueses. Há, que me lembre, apenas um deputado negro no parlamento - e é do CDS. Não há nenhum presidente de Câmara, nenhum ministro, nenhum secretário de Estado. Isto tem de querer dizer qualquer coisa. Ou quer dizer que os portugueses não votam em negros ou quer dizer que a generalidade dos negros não consegue ascender socialmente no nosso país para chegar a cargos públicos relevantes. Porque são geralmente discriminados ainda antes de chegarem à fase de poder ascender a estes cargos. São discriminados na distribuição do rendimento, dos empregos, das oportunidades. E é neste contexto, e não numa sociedade que dá a todos, independentemente da sua etnia, as mesmas oportunidades, que Arménio Carlos falou de um "escurinho".

 

Arménio Carlos não se referiu aos outros dois representantes da troika como "o carequinha" e o "loirinho". E é normal. Carecas e loiros há em muitos cargos semelhantes. Não chega a ser um elemento distintivo. "Escurinhos" é que há poucos. Ou melhor, não há nenhum. Só que essa característica física não é comparável a outras que aqui referi. Ela é causa de uma discriminação muitíssimo mais profunda. E foi isso que Arménio Carlos, sem o querer, acentuou: em vez do nome e do cargo, sobrou a Selassie (que eu aqui já critiquei violentamente sem me ocorrer falar da sua cor de pele) o facto de ser "escurinho".

 

Selassie não foi identificado como etíope, que é, como técnico do FMI, que também é, como alguém que usa óculos, que usa, que é careca, que também é, ou que é politicamente incompetente, que parece ser. É negro. Não pretendo que sejamos cegos perante a negritude. O que fica claro é que, mal surge um pessoa com algum poder no nosso país que seja negra passa a ser essa a forma mais evidente de a identificar. Com direito a dimunitivo. Que isso aconteça num café ou entre amigos não me choca. Que seja essa a forma como o secretário-geral da CGTP se refere a um adversário político - e o facto de ser um adversário político e da frase ter sido dita no contexto de um ataque político só torna a coisa mais grave - numa iniciativa pública é relevante.

 

Arménio Carlos é racista? Não me parece. Mas a indignação não resulta de uma qualquer avaliação do carácter ou das características políticas de Arménio Carlos. Resulta do que a frase que proferiu num contexto oficial acrescenta ao discurso político em Portugal. Mais grave: o que ela acrescenta ao combate a uma intervenção externa que está a deixar as pessoas desesperadas. A intervenção externa é condenável, mas nunca se pode passar a ideia que ela é condenável porque envolve um "boche" ou um "escurinho". Porque, mesmo que não seja essa a intenção de quem assim falou, isso transforma uma resistência em defesa da soberania democrática num ataque xenófobo. Repito: mesmo que não seja, e estou seguro de que não era, a vontade de Arménio Carlos. É que o sentido das palavras ditas na arena pública não depende da vontade de quem as diz. Dirigindo-se indistintamente a todos - e também a quem seja, e são muitos, racista -, é apropriável por todos. Por isso somos obrigados a especiais cuidados quando as dizemos no espaço público.

 

Arménio Carlos já veio dizer que não sabe de ninguém que tenha ficado pessoalmente incomodado. E que se alguém ficou, transmite as suas desculpas. Arménio Carlos é um político e tem obrigação de saber que a questão não é o incómodo pessoal de cada um. O confronto político permite o incómodo dos outros. Ele até poderia insultar Selassie. Mas deve pensar bem se o insulto que escolhe corresponde aos valores políticos que defende. A questão é o que a expressão, ainda mais com o diminutivo paternalista, revela. E se há coisa que um político tem de saber é que as palavras, sendo parte fundamental do seu ofício, são importantes. Um trabalhador pode ser um "colaborador"? Pode. Um despedimento colectivo pode ser uma "reestruturação" de uma empresa? Pode. E, como tão bem sabe Arménio Carlos, não é indiferente se usa umas ou outras expressões. Mesmo que ninguém fique pessoalmente incomodado por ser chamado de "colaborador". Porque, como gritava Nanni Moretti, "as palavras são importantes". E em política elas são muito importantes. Mesmo quando não se quer ofender ninguém.


Publicado no Expresso Online

Se continuamos a cortar, haverá ainda menos dinheiro

Daniel Oliveira, 29.01.13

As políticas de austeridade ganharam força no início desta crise. Assim como tinham força no período logo a seguir aos crash de 1929. Num e noutro período provaram o seu falhanço. Esperemos que agora, como no passado, sejam seguidas de uma correção profunda. Por agora, é receita da troika e do FMI, historicamente desastrosa, que prevalece. E ela vive deste dogma: a austeridade, baseada na consolidação orçamental, é expansionista. Ou seja, liberta dinheiro para a economia e fá-la crescer.

 

O Expresso publicou excertos de uma entrevista ao economista australiano Anisuzzaman Chowdhury , em que este demonstra como a tese é desmentida pela história da própria instituição financeira. Segundo Chowdhury, investigações de dois dos economistas que mais terão influenciado a tese da "austeridade expansionista" (Alberto Alesina e Silvia Ardagna) são contundentes a desmentir a sua bondade. Num conjunto de eventos estudados em países da OCDE, entre 1970 e 2007, apenas em 19% a austeridade teve resultados positivos. E em apenas 25% houve uma expansão económica posterior. Arjun Jayadev e Mike Konczal, do Roosevelt Institute , foram escalpelizar o estudo destes economistas e, alargando a amostra para 107 episódios, em nenhum caso os resultados bem sucedidos ocorreram, de facto, em contexto de crise económica. E é em contexto de crise que esta "austeridade expansionista" está a ser tentada.

 

Socorrendo-se de um outro estudo de Adam Posen, realizado em 2005 para a Comissão Europeia, concluía-se que em 50% dos casos em que houve sucesso dos programas de austeridade eles foram acompanhados por uma política monetária expansionista que, como sabemos, nos está vedada. E essas intervenções não aconteceram durante crises financeiras e económicas globais e não coincidiram com outros programas de ajustamento em países que fossem importantes parceiros comerciais. Ou seja, o expansionismo da austeridade é ainda menos provável quando é aplicado em todo o lado ao mesmo tempo.

 

Na realidade, não há, neste momento, qualquer base empírica para continuar a seguir o caminho que a Alemanha e as instituições europeias que esta domina estão a obrigar a Europa a seguir. Sabe-se, através de um relatório do próprio Fundo Monetário Internacional, que os cortes no Estado têm tido repercussões na economia que chegam a ser superiores ao que se conseguiu cortar nos gastos públicos. Julgava o FMI que por cada euro de corte na despesa pública ou em aumento de impostos o PIB perderia 50 cêntimos. Na realidade, desde 2008 até hoje, por cada euro de corte na despesa pública ou de aumento de impostos o PIB perdeu entre 90 cêntimos e 1 euro e 70 cêntimos. Em geral, a economia perdeu mais do que o Estado ganhou. Ou seja, o multiplicador orçamental era muito mais elevado do que se pressupôs. E este erro explica-se, diz Chowdhury, porque as estimativas eram baseadas em metodologias informais e não, como muitos acreditavam, em estudos confirmandos por resultados empíricos.

 

Para contrariar algumas ideias feitas sobre os multiplicadores orçamentais (efeitos das políticas orçamentais e fiscais na economia), é interessante conhecer os números recentemente usados pelo jornalista americano Doug Henwood . Por cada dólar investido pelo Estado em programas de criação de emprego e infraestruruas, o PIB cresce de um dólar e 60 cêntimos a um dólar e 70 cêntimos. Por cada dólar na redução de impostos o PIB cresceu um dólar e 20 cêntimos. Porque os trabalhadores gastam tudo o que ganham com este corte mas as classes mais altas não. Num caso o dinheiro entra todo na economia e multiplica-se, no outro não. Só que a política da troika está a conseguir o dois em um: reduz investimento e aumenta impostos. Isto em plena crise económica. Ou seja: o resultado é duplamente negativo.

 

Um outro estudo, da Unidade Técnica de Acompanhamento Orçamental, diz-nos que, em Portugal, por cada cinco euros que se poupou no Estado perderam-se quatro euros em receita fiscal por causa da crise económica que a própria austeridade alimenta. Ou seja, a crise comeu os cortes que se fizeram e os ganhos com eles são, para o próprio Estado, marginais. O ajustamento orçamental faz-se, mas com sacrifícios desproporcionais aos ganhos e efeitos duradouros na economia.

 

Tudo isto serve para dizer o que já deveria ser óbvio: a ideia de que o Estado vai, no meio desta crise global e sem instrumentos monetários, encontrar o seu equilíbrio orçamental através da austeridade esbarra com os factos. Como a austeridade tem efeitos na economia e as contas do Estado dependem da economia, a "consolidação orçamental", nestas circunstâncias, mata a economia e esta mata as contas públicas. Traduzindo para a linguagem de Vítor Gaspar: "se continuamos a cortar, haverá ainda menos dinheiro". Qual das palavras estes senhores não entendem?


Publicado no Expresso Online

(Dis)pensar Abril

Miguel Cardina, 28.01.13

 

Na morte de Jaime Neves, vários órgãos de comunicação social referiram-se ao “militar de Abril e de Novembro”, sugerindo uma relação directa entre ambos os momentos. A chamada de capa feita hoje pelo Público ia mais longe: “Morreu o comando que manteve Abril no 25 de Novembro de 1975”. Esse “Novembro que mantém Abril” sugere que ali se repôs a natureza de uma ruptura cuja essência, a dado momento, teria sido corrompida (logo nas horas a seguir ao golpe?).

 

Independentemente das interpretações que possamos ter acerca do que foi e do que representou o 25 de Novembro, essa continuidade imaginada é sintoma da persistente incapacidade em pensar o biénio revolucionário no que ele revelou ser: uma inaudita irrupção popular, de natureza socializante, com múltiplas e por vezes contraditórias formas, e que em vários momentos ultrapassou as dinâmicas militares e partidárias então em disputa. Uma irrupção popular que reverteu formas antiquíssimas de opressão no país, levando a que muita gente se sentisse gente pela primeira vez (mais: que fosse convocada a definir por si própria o que é isso de “ser gente”).

 

A contenção do processo revolucionário, ocorrida a 25 de Novembro, não conseguiu eliminar algumas dessas marcas trazidas pela revolução. Elas passavam, genericamente, pelo entendimento da democracia, não apenas como pluralismo político, mas como democracia económica e social. A força desta ideia é tal que, apesar dos engulhos que a Constituição sempre criou à direita, só hoje – e a coberto da intervenção da troika – ela sente coragem para apontar a mira ao coração deste Estado democrático criado no pós-25 de Abril.

 

Volto à frase curta no jornal que leio todos os dias. E penso como o silêncio balbuciante sobre a guerra colonial – sempre referida de raspão, mesmo quando o lembrado fora um comando com várias comissões de serviço – e a incapacidade de pensar Abril para além da sombra de Novembro nos dizem tanto sobre o que foi e o que é este país.

 

(A imagem reproduz o conhecido quadro de Maria Helena Vieira da Silva)

Uma forma de escravatura

Sérgio Lavos, 28.01.13

Emigrar pode ser apenas uma escolha, mas quando é por necessidade última, porque o país não consegue criar condições para as pessoas ficarem juntos dos seus, das suas raízes, já estamos a falar de política. Toda a conversa sobre "mobilidade laboral" e "globalização do trabalho" não passa de fumo lançado para encobrir as políticas económicas que estão a forçar a saída não só da geração mais qualificada de sempre, mas também de muitos portugueses mais velhos e menos qualificados, que pura e simplesmente não encontram trabalho em Portugal. 

 

Ainda a propósito de mais um execrável Prós & Contras no qual os convidados via Skype eram todos exemplo de uma emigração por escolha, e não por obrigação, a qual constitui a maior parte dos casos registados nos últimos anos (todos nós, os que ficamos, conhecemos pessoas que estão a emigrar deixando ficar a família, trabalhando em empregos pouco qualificados, em sobre-exploração), ficam aqui as palavras do escritor Rentes de Carvalho, ele próprio emigrante forçado na Holanda por razões políticas:

"De um ponto de vista social, a emigração portuguesa constitui a manifestação de uma forma de escravatura que subsiste ainda hoje. De um ponto de vista ético, a emigração portuguesa significa a negação constante do direito mais elementar da pessoa: o direito à vida no próprio país. De um ponto de vista político, a emigração portuguesa supõe a renúncia à revolta".

António Costa no seu labirinto

Daniel Oliveira, 28.01.13

 

O cemitério da política está cheio de dons sebastiões. De homens desejados que esperam tanto pelo momento certo para avançar que, quando finalmente se decidem, o seu tempo já passou.

 

António Costa teve o seu momento: o último congresso do PS, quando o político sem carisma nem qualquer das qualidades de que um líder precisa foi eleito secretário-geral. Costa tinha a força, a experiência e o distanciamento de Sócrates necessários para preparar o eu partido para o regresso ao poder. Preferiu não o fazer e esperar por melhor momento. Na realidade, a sua situação não é, agora, pior do que era então. Estamos perante um dos governos mais impopulares da nossa democracia, o País está desesperado por uma alternativa e Seguro mostrou ser ainda mais fraco na oposição do que os mais pessimistas previam. O problema de Costa é outro: o calendário.

 

A oposição interna a Seguro quer acelerar a marcação do próximo congresso. Parece existir a convicção de que este, para apear Seguro da liderança, tem de acontecer antes das eleições autárquicas, que deverão dar à direção do PS um novo fôlego.

 

Se o congresso acontecer antes das autárquicas, não faço ideia como vai António Costa descalçar esta bota. Se, mais uma vez, não avança, a paciência dos que esperam por ele esgota-se. Se avança, não deverá ser candidato à Câmara de Lisboa. Não havendo um candidato óbvio para o substituir e estando já no terreno Fernando Seara, o PS pode bem conseguir o que parecia ser impossível: perder a câmara da capital. Ou seja, Costa ganha a liderança do Partido Socialista e estreia-se, como líder, com uma derrota. Pior: uma derrota que só a ele pode ser imputada. É que dificilmente os socialistas podem cantar vitória nas autárquicas perdendo a capital para o PSD. Ou seja, Costa começa o seu mandato como líder do PS numa posição mais frágil.

 

Claro que António Costa pode ganhar a liderança do PS e, ainda assim, concorrer a Lisboa. Mas não me parece que seja fácil fazer uma campanha em que toda a gente sabe que o candidato não pretende ocupar por muito tempo o lugar de presidente.

 

Na realidade, a única possibilidade que me parece restar a Costa é esperar por um congresso depois das eleições autárquicas. Uma possibilidade arriscada. Porque não é certo que o governo de Passos aguente até lá. E porque as autárquicas podem mesmo dar um novo fôlego a Seguro. Ainda assim, diga-se em abono da verdade, será um fôlego partilhado. Já que a vitória nas autárquicas, sem que o PS conquiste a câmara do Porto, terá como principal rosto António Costa.

 

Resumindo: se Costa não avança, as pessoas cansam-se de esperar, se avança cedo demais poderá oferecer uma derrota em Lisboa à sua própria liderança, se avança tarde demais pode perder a sua oportunidade. António Costa esperou pelo melhor momento. Acabou num labirinto, onde todos os momentos parecem ser maus.

 

Publicado no Expresso Online

Emigração

Miguel Cardina, 28.01.13

Todas as mensagens buscam um efeito, mas às vezes a vontade de afirmá-lo faz esquecer o conteúdo. O Prós e Contras desta noite, dedicado à emigração, teve vários momentos desses, com a tónica a transferir-se das condições estruturais que determinam os fluxos migratórios para o sermão sobre "estados de alma": falta-nos arrojo, optimismo, esperança, olhar os bons exemplos, confiar em nós próprios e mais uma série de lugares-comuns de natureza onanista. O reitor da Universidade Técnica, um antigo gestor de fortunas do BPP e um empresário dinâmico alinharam por esse diapasão. Felizmente, o painel contou com a presença de José Soeiro e de Jorge Malheiros, que trouxeram alguma informação e um olhar crítico e contextualizado sobre a situação que vivemos. Ambos recordaram, por exemplo - num momento em que a coisa resvalava para um misto de "fuga de cérebros" e "busca do sucesso" - que boa parte da emigração hoje ainda não é de gente hiper-qualificada que vai para fora após a licenciatura ou o doutoramento. Se essa é já uma realidade muito significativa, os níveis de escolaridade ainda baixos da população portuguesa e o reconhecimento dos sectores mais atingidos pela crise (como a construção civil, por exemplo) dão-nos um retrato menos "cool" (retrato esse onde se inserem, obviamente, essas fatias da população qualificada que não saem propriamente para ir trabalhar para a City de Londres). Mas essas - ontem como hoje - são as vozes silenciadas da emigração portuguesa.

 

(E já que vem a propósito, é de começar a seguir estas Cartas de Londres, registos pessoais de quem está emigrado naquelas terras).

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