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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Experimente ser miserável com todo o conforto

Daniel Oliveira, 29.11.13

 

 

Um hotel sul-africano teve uma ideia genial: reproduzir um bairro de barracas. Daqueles onde uma parte muito substancial da sua população vive. O hotel promete uma experiência única no seu espaço miserável privado, onde a casa de banho fica na rua e o cliente tem de aquecer a água no fogo que ele próprio faz. Os quartos-barraca, para clientes "extravagantes", custam 61,5 euros por dia. Não se assuste. Têm o chão aquecido e wireless. Radical, mas sem exageros.

 

O site do Emoya Luxury Hotel dá-nos o devido enquadramento: "Milhões de pessoas vivem em bairros informais na África do Sul. Esses bairros consistem em milhares de casas, conhecidas como Shaks, Shantys ou Makhuhus." Depois de explicar as péssimas condições físicas em que se vive nesses bairros, que ali são reproduzidas, fica o desafio: "agora, pode experimentar ficar numa Shanty num ambiente seguro". É excelente para "team building", festas temáticas ou simples experiência. E é "child friendly".

 

Tornaram-se habituais, no Rio de Janeiro, as visitas guiadas às favelas. Essas, ao menos dão algum dinheiro a ganhar a quem lá vive. Seja como for, por todo o lado o turismo diversifica a sua oferta. E os safaris, para conhecermos os animais selvagens no seu habitat natural, vão sendo substituídos pela experiência da pobreza, podendo, em vários casos, o visitante conviver com os miseráveis sem que estes vivam em cativeiro. Não desesperem. O turismo em prisões virá logo a seguir.

 

Não farei grandes divagações morais sobre a comercialização e estetização da pobreza, para divertir uma classe média ocidental enfadada e à procura de sensações fortes. Até porque, neste caso, é só o simbólico da coisa que incomoda. Não farei grandes considerações sobre o turismo humanitário, o turismo revolucionário, as experiências sociais de verão e todo esse filão comercial que nos oferece a ilusão de conhecemos o que nos é estranho, dando-nos vidas falsas para depois voltarmos às nossas intactos. Apenas concluo o evidente: o capitalismo mantém uma capacidade extraordinária de transformar tudo em dinheiro. Até as revoluções são um bom negócio - haverá brand comercialmente mais atrativo do que o de Che Guevara? Agora, chegou a vez de fazer dinheiro com a falta dele. Nada se perde, nada se cria, tudo se vende. E como não há má publicidade, o esgoto é o limite.

 

Publicado no Expresso Online


NOTA: ficam as minhas desculpas pelo erro na publicação deste post. Está corrigido.

O apelo à violência

Daniel Oliveira, 28.11.13

 

"Hoje, em muitas partes, reclama-se maior segurança. Mas, enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e entre os vários povos será impossível erradicar a violência. Acusam-se da violência os pobres e as populações mais pobres, mas, sem igualdade de oportunidades, as várias formas de agressão e de guerra encontrarão um terreno fértil que, mais cedo ou mais tarde, há-de provocar a explosão. Quando a sociedade - local, nacional ou mundial - abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir indefinidamente a tranquilidade. Isto não acontece apenas porque a desigualdade social provoca a reação violenta de quantos são excluídos do sistema, mas porque o sistema social e económico é injusto na sua raiz. Assim como o bem tende a difundir-se, assim também o mal consentido, que é a injustiça, tende a expandir a sua força nociva e a minar, silenciosamente, as bases de qualquer sistema político e social, por mais sólido que pareça. Se cada ação tem consequências, um mal embrenhado nas estruturas duma sociedade sempre contém um potencial de dissolução e de morte. (...)

 

"Mais cedo ou mais tarde, a desigualdade social gera uma violência que as corridas armamentistas não resolvem nem poderão resolver jamais. Servem apenas para tentar enganar aqueles que reclamam maior segurança, como se hoje não se soubesse que as armas e a repressão violenta, mais do que dar solução, criam novos e piores conflitos. Alguns comprazem-se simplesmente em culpar, dos próprios males, os pobres e os países pobres, com generalizações indevidas, e pretendem encontrar a solução numa "educação" que os tranquilize e transforme em seres domesticados e inofensivos. Isto torna-se ainda mais irritante, quando os excluídos veem crescer este cancro social que é a corrupção profundamente radicada em muitos países - nos seus Governos, empresários e instituições - seja qual for a ideologia política dos governantes."

 

Lamento se cos pareço preguiçoso. Mas o meu texto de hoje é este. Assinado pelo Papa Francisco, na sua exortação apostólica "Evangelii Gaudium" ("A Alegria do Evangelho"). Subscrevendo mais umas partes do que outras, deixo este excerto aqui para aqueles que, tendo rasgado as vestes contra supostos apelos à violência, possam agora atacar o Papa Francisco. Estou seguro que Paulo Portas condenará esta insuportável legitimação da violência. Que o CDS dirá que, no fundo, isto é um apelo. E que a maioria dos comentadores fará um ar constrangido com tão infelizes afirmações. Afinal de contas, quem avisa e explica está, no fundo, a desejar que aconteça.

 

Publicado no Expresso Online

Um orçamento contra o país do meio

Daniel Oliveira, 27.11.13

A conversa sobre a retoma da economia, a luz ao fundo do túnel e o regresso aos mercados é a banda sonora. O Orçamento de Estado é o guião. E a banda sonora da comédia romântica não cola com o filme gore. Porque começamos a ter alguma tarimba em austeridade, sabemos exatamente o que acontecerá: entre as previsões e a realidade qualquer semelhança será pura coincidência.

 

O caminho determinado por este orçamento não resulta apenas de incompetência. O "ajustamento interno" que a troika e o governo pretendem, correspondendo à contração da economia, quer simular, de forma tosca, uma desvalorização monetária. Que permita garantir o crescimento por via da redução dos custos de trabalho e redução do consumo. E isto já nos foi explicado com todas as letras: temos de empobrecer para encontrar um novo lugar na economia do euro. Um lugar que, um dia, acabará mesmo por garantir o nosso crescimento. Mas em moldes sociais e económicos completamente novos, mais habituais nos países subdesenvolvidos. Isto, e não as delirantes metas definidas pela troika, é que interessa. Elas nunca foram para cumprir. E por isso mesmo a troika, nas suas avaliações, pouca relevância lhes tem dado. As metas são a motivação para a austeridade. A austeridade não é o meio para cumprir o memorando de entendimento e o que lhe venha a suceder. É o meio para garantir esta assustadora engenharia social. Que permitirá, de caminho, esmifrar a economia nacional, transferindo todos os recursos ainda disponíveis para os credores.

 

Manter o IVA e o IRS onde estão, punindo os consumidores, as pequenas empresas e os trabalhadores, enquanto se desce o IRC, que apenas beneficiará grandes empresas que já têm lucro, é uma escolha política. Fingir que se exige qualquer esforço real à banca e empresas de energia (que é imediatamente compensado pela queda do IRC) e às concessionárias das PPP (que só reduzem a as compensações que recebem na medida em que vão reduzindo os serviços que garantem), enquanto se assalta o contribuinte, o trabalhador e o reformado, é uma escolha política. Dizer que, em caso de chumbo do Tribunal Constitucional, o plano B passa por mais impostos pagos pelos de sempre, mantendo intocados os interesses que têm sido poupados, também é uma escolha política. E estas escolhas não resultam de teimosia. Se digo que são políticas é por terem uma racionalidade. E a sua racionalidade corresponde à estratégia de empobrecimento definida pela troika. Que implica perda de rendimento.

 

Muitos pensavam que esta estratégia de empobrecimento teria como principal alvo os mais pobres. Isso seria apenas sadismo e, havendo pouca margem para os empobrecer, não teria grande efeito na economia. A redução do consumo e dos salários (os dois principais instrumentos para, com a redução da despesa pública, contrair a economia) passa pelo empobrecimento de quem consome e de quem tem salários acima do limiar de sobrevivência: os trabalhadores (e também os reformados) que ainda não são mesmo pobres. São eles que "inflacionam" os custos do trabalho e, com o seu consumo, aumentam as importações.

 

A vitima preferencial é o país do meio (que não é, longe disso, apenas a classe média), que aproxima os seus rendimentos dum país de baixo cada vez mais maioritário e se afasta cada vez mais das classes mais altas. É através do seu empobrecimento que esta macabra engenharia social se faz. A ideia não é pôr todos na miséria e causar o colapso político e social do país, apesar de, no meio de tanta irresponsabilidade, tal poder vir a acontecer. É pôr quase todos próximo do limiar da pobreza, a produzir barato para consumir apenas o indispensável, exportando quase tudo o que se produz e não importando quase nada para consumir. Os mais qualificados e mais jovens, que não quiserem participar neste desígnio nacional, emigram. Esse é o investimento que fizemos e oferecemos de borla a outros países. Aqui fica a mão de obra barata que trabalhará apenas para exportar e pagar a dívida e os seus juros, numa das maiores transferências de riqueza para o exterior a que este país já assistiu. Isto, claro, se a estratégia resultar.

 

O que nos é proposto é passarmos a ocupar, na economia global, o lugar reservado para os países subdesenvolvidos. Como eles, escravos da dívida e da chantagem externa. A competitividade que nos propõem depende, na política, da ausência de exigência democrática. Na organização social, da ausência de mobilidade e dos serviços públicos que a facilitam. Na economia, da ausência de mercado interno e de consumo. E, para tudo isto, do empobrecimento radical da classe média e dos remediados. É isso mesmo que significa o orçamento ontem aprovado: a continuação do ataque ao país do meio. E assim, dentro da Europa, vamos saindo dela.

 

Publicado no Expresso Online

A nostalgia dum país derrotado

Daniel Oliveira, 26.11.13

 

As dúvidas em torno da melhor data para a homenagem a Ramalho Eanes ilustram bem o seu percurso político. E que se resume neste facto: foi eleito para um primeiro mandato como candidato da direita e para o segundo como um candidato da esquerda. O papel que teve no 25 de Novembro marcaria o seu próprio papel na construção da democracia. Se o tornava no candidato natural daquilo a que agora se chama "arco da governação", permitia, como moderado, que fizesse pontes com o resto da esquerda. Até porque, apesar do seu discurso público, a cúpula do PCP viu o 25 de Novembro como uma inevitabilidade. E viu muito bem. O 25 de Novembro travou um processo revolucionário que já perdera a sua base social de apoio, a sua legitimidade política e até a sua direção, que se limitava a tentar acompanhar os acontecimentos. Que se encaminhava para um confronto de consequências imprevisíveis mas seguramente perigosas, que poderia terminar ou numa guerra civil ou num golpe da direita autoritária, com a ilegalização do Partido Comunista. Vários dados indicam que Álvaro Cunhal terá aceite não resistir em troca da integração segura dos comunistas no sistema democrático. Em tudo isto, teve um papel central o mais clarividente dos militares de Abril: Melo Antunes.

 

Do 25 de Novembro nascia uma figura política que, pairando sobre os lideres dos quatro grandes partidos fundadores da democracia portuguesa, iria ter um papel central na vida politica da década que se seguiu. A sua presidência correspondeu ao período de "normalização" dum país que ainda estabilizava a forma do seu regime e o seu sistema partidário. Nestas circunstâncias, o presidente tinha um papel necessariamente activo. E essa presidência foi marcada por um conflito politico e de personalidades quase permanente com Mário Soares. Uma inimizade profunda que determinou muitas das escolhas politicas de Ramalho Eanes, sobretudo na fase final da sua carreira política. Da aliança contranatura com o PCP até à curta aventura do PRD. Resumindo: apesar da actual canonização, Eanes foi tudo menos um politico consensual. Todos os atores políticos fundamentais estiveram, pelo menos num determinado momento, contra ele.

 

É por ignorar o seu lado político que, apesar da data escolhida, a homenagem a Ramalho Eanes tem uma dimensão quase exclusivamente ética. Eanes sempre teve, no seu comportamento enquanto cidadão e homem público, uma irrepreensível correção. De que nunca fez muita publicidade. Não deixa de ser interessante, aliás, o contraste ente Eanes e o atual Presidente da República. Onde num encontramos rigor na ética republicana, noutro encontramos a gestão de interesses privados, próprios ou de terceiros. Onde num encontramos discrição e humildade, noutro encontramos a exibição arrogante duma suposta superioridade moral que não encontra adesão à realidade. O que num é carácter, noutro é propaganda.

 

Ainda assim, não deixa de ser sintomático do estado de espirito da Nação, que seja a dimensão ética dum político, mais do que os seus pontos de vista e as suas soluções para sair desta crise, que mobiliza os cidadãos. E que escolha uma figura do passado (Eanes explicou, muitissimo bem, que tem presente na cidadania mas não tem futuro na politica), que não poderá fazer desta mobilização nada de substancial. Não é verdade o que já ouvi por aí: que o País está à procura dum salvador. Isso implicaria uma réstea de esperança que não encontro na sociedade portuguesa. Trata-se do mais puro dos sebastianismos: uma esperança quase platónica, que alimenta, através de figuras do passado, uma nostalgia de alguma confiança no poder político. Onde a dimensão ética é a mais valorizada.

 

A escolha da figura de Eanes para este exercício nostálgico, sendo absolutamente justa, tendo em conta a sua irrepreensível conduta moral, diz bem de Eanes mas mal de Portugal. Um país que, vivendo uma profunda crise económica, social e política, procura santos no seu passado (Eanes, mas também Cunhal), despindo-os do conteúdo político que tiveram, é um país bloqueado na sua capacidade de se reconstruir. É um país sem esperança. Descrente de poder encontrar no presente as respostas para o seu futuro.

 

Publicado no Expresso Online

E o Estado de Direito não põe comida no prato (2)

Daniel Oliveira, 25.11.13

 

A tomada das escadarias da Assembleia da República transformou-se num marco simbólico para muitas manifestações. O que já levou a momentos tensos e até violentos no Largo de São Bento, com a polícia a defender, sem cedências, aquela linha que supostamente divide a rua do poder. É por isso que a imagem da polícia a "conquistar" aquelas escadaria se torna tão forte. Como podem as forças de segurança impor aos outros os limites que elas próprias ultrapassam?

 

A gravidade não reside, obviamente, no facto do corpo de intervenção não ter atuado com mais vigor para impedir aquele desfecho. Nem me parece, nestes e noutros protestos, que a defesa duma escadaria valha alguma cabeça partida, nem acho que, do ponto de vista simbólico, a imagem de polícias a bater noutros polícias, como vimos nos tempos de Cavaco Silva, fosse mais benigna para a autoridade do Estado. O problema foi mesmo dos policias manifestantes que se terão esquecido, por umas horas, das suas funções. Quando a polícia não cumpre os limites que a própria polícia determina para si e para os outros, é o Estado de Direito que está em causa, disseram muitos. No caso em apreço, talvez seja um pouco excessivo dizer tanto. Mas reconheço que este foi um sinal que não pode ser ignorando. Porque ele é o reflexo dum clima geral no País. Que tem responsáveis muito fáceis de identificar.

 

Quando o governo exerce uma pressão sem precedentes sobre o Tribunal Constitucional, não hesitando em procurar no exterior aliados para esse inaceitável comportamento, começa a ser difícil falar de respeito pelos órgãos de soberania. Quando trata a Constituição do País como um problema a contornar e não como um limite que, por vontade dos poderes eleitos, não pode ser ultrapassado, começa a ser difícil falar no primado da lei. Quando o governo não cumpre os compromissos do Estado para com os cidadãos e, de forma continuada, põe em causa a indispensável confiança no Estado, começa a ser difícil garantir a autoridade. Foi o governo que criou o ambiente de bandalheira institucional que torna este comportamento, mesmo que criticável, quase natural. Quando o poder político, por vontade ou por uma suposta necessidade, torna difusos os limites definidos pela lei e das funções de cada instituição, não se pode queixar quando outros lhe seguem o exemplo.

 

Mas, acima de tudo, a forma como o governo trata a generalidade dos funcionários do Estado, dos trabalhadores das empresas públicas aos da administração pública, dos professores à polícia (de que o corte do subsídio de fardamento é apenas um exemplo quase caricatural) só poderia ter este resultado. Um governo não pode tratar com desprezo aqueles que, junto dos cidadãos, representam o Estado e achar que a sua autoridade e a autoridade do próprio Estado ficam intactas.

 

O comportamento da policia na ultima quinta-feira não é o problema. É o sintoma. Do clima de degradação institucional e democrática que o governo tem fomentado. O primeiro-ministro afirmou, há uns meses: "Já alguém perguntou aos mais de 900 mil desempregados do que lhes valeu a Constituição?" Parece que para cada vez mais portugueses, incluído os que devem garantir o cumprimento da lei, o Estado de Direito também não lhes põe comida no prato. Se o pragmatismo quase selvagem, que ignora leis e instituições, em nome de supostas inevitabilidades, serve ao governo também pode servir a todos os outros.

 

Publicado no Expresso Online

Tontearia tanta sensatez

Bruno Sena Martins, 25.11.13

 

Marcelo Rebelo de Sousa designa de tontearia o apelo de Soares à demissão de governo e presidente por este implicar, à luz da Constituição, uma longa invernia política capaz de atirar para o espaço aos juros da dívida. Sensatez precisa-se, alega. Na verdade, são precisas muitas vozes 'sensatas' por este mundo afora para que o absurdo da democracia dobrada à especulação do neoliberalismo nos pareça razoável.

 

A tontearia de Soares aponta o caminho, senão da sensatez democrática, certamente da clarividência revolucionária.

Avulsos

Bruno Sena Martins, 22.11.13

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