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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Há vida para além de Sócrates

Daniel Oliveira, 26.05.11

 

Quem leia grande parte das colunas de opinião e da gritaria sempre indignada dos comentários em blogues e jornais fica a achar que tudo neste País se resume aos problemas de carácter de políticos. A coisa divide-se em duas correntes: os que veem nos defeitos pessoais de Sócrates a causa desta crise e os que, num olhar mais abrangente e estrutural, alargam a coisa a todos os políticos. Há, claro, os que tentam discutir alguma política. Mas rapidamente são afogados pela maré de insultos em que se transforma qualquer conversa. A questão é, portanto, saber se é apenas Sócrates que é aldrabão ou se o insulto se aplica a toda a classe política.

 

A ética não é um assunto externo à política. A violação sistemática do contrato de confiança dos eleitos com os eleitores é relevante. A corrupção, o nepotismo, as redes de influência e muitos dos podres que degradam a nossa democracia são assuntos políticos. Não desculpabilizo aqueles que, nesta matéria, têm sido cúmplices e laxistas. Nem antes, nem agora. O meu problema não é isto ser debate. Participo nele e muitas vezes aqui escrevi sobre este tipo de assuntos. O meu problema é quando isto é todo o debate que sobra.

 

Porque leva as pessoas ao erro quanto ao diagnóstico: se tudo se resume às características pessoais e éticas dos governantes, a Europa, a desregulação dos mercados financeiros, os erros no nosso modelo de desenvolvimento ou a desigualdade estrutural em todos os domínios da vida portuguesa ficam arredados de qualquer conversa. E são o que realmente conta. Muitos portugueses acreditam que chegámos aqui por causa do que aconteceu no País nos últimos seis anos. Claro que também foi por isso. Mas resumir os nossos problemas ao último governo e às questões domésticas é de tal forma absurdo, tem tão pouca relação com os factos, que é argumento que não se aceita em pessoas inteligentes e informadas que estejam de boa-fé num debate.

 

Porque leva as pessoas ao erro quanto às soluções: se tudo se resumisse às características pessoais e éticas do governante as coisas seriam muito simples. Bastaria mudar de protagonistas. É excelente para quem defende que a democracia se resume à alternância. E o jeito que tem dado a quem, sabendo que não fará melhor, gosta de centrar tudo no ódio que tanta gente sente por Sócrates e que ele parece não querer evitar. E assim se deixa de fora do debate quem quer discutir alternativas às verdades feitas e ao discurso do inevitável. A coisa está neste ponto: ou insultamos Sócrates ou estamos feitos com Sócrates. Assim, não sobra espaço para a política.

 

Porque retira à política todo o seu conteúdo. Sem, mais uma vez, desprezar a importância das qualidades humanas e sociais dos atores políticos, arrisco-me a dizer isto: a história está cheia de escroques que foram bons governantes e excelentes pessoas que foram líderes medíocres. Grande parte dos homens e mulheres que hoje admiramos eram intragáveis como seres humanos. E muitos deles tinham uma conduta pública pelo menos duvidosa. O que conseguiram não diminui os seus defeitos. Apenas prova que de boa gente está a desgraça dos povos cheia.

 

Li, esta semana, num diário, uma carta extraordinária de um leitor. Chamava ele à atenção para o olhar de cada líder partidário nos últimos debates. Mostrava-se, aliás, indignado por ninguém ter dado destaque a isso. Portas não olhava nos olhos dos opositores. Sócrates tinha a raiva no olhar. Passos Coelho e Jerónimo de Sousa eram, via-se nos olhos, sem margem para dúvidas, boas pessoas. Sabem porque temos tantas vezes falhado nos políticos que elegemos? Porque acreditamos em duas coisas: que boas pessoas são bons governantes e que podemos ver a alma de um político através da televisão.

 

Sócrates mentir com tanta facilidade é, para mim, um problema político. Não é, ao contrário do que agora parece, nem o primeiro nem o pior. Mas, sobretudo, não é esse o seu principal problema. O seu problema é não ter um rumo para o governo do País nem convicções políticas. O maior problema de Sócrates não é dizer hoje uma coisa e amanhã outra. É a razão porque o faz. É não ter uma verdade sua - e isso não é uma questão de carácter, é uma questão estritamente política. É que o confronto político faz-se de mundividências e convicções que se confrontam. Diz-se que Sócrates é determinado. O problema é que a sua determinação não está associada a convicções.

 

Porque fica tanta gente presa ao debate sobre o carácter do primeiro-ministro? Porque a ausência de ideologia está longe de ser exclusivo de Sócrates. É um problema do nosso tempo. Sem ela, sobram as qualidades pessoais dos governantes e a indignação sem propósito dos cidadãos. Sem ela temos políticos mas não temos política. E aos políticos sem política, que são meros gestores de inevitabilidades, chamamos, com toda a razão, de oportunistas. Só que eles são a consequência, e não a causa, das nossas falhas enquanto cidadãos.

 

Publicado no Expresso Online

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