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Arrastão: Os suspeitos do costume.

dia D

Arrastão, 12.02.09



© rabiscos vieira, ilustração originalmente publicada no número de fevereiro da revista LER


O Arrastão divulga hoje, data em que se celebra os 200 anos de Darwin, um artigo de Élio Sucena* sobre  a importância de Darwin também publicado no esquerda.net, portal onde se pode encontrar também um artigo de Rui Curado Silva sobre o mesmo tema.



Muito se tem escrito e discutido sobre os limites e alcance, origem, desenvolvimentos e impactos, da teoria de evolução por selecção natural apresentada há 150 anos por Charles Darwin. Avaliar a importãncia de Darwin no pensamento ocidental não é tarefa fácil. Isto porque, porventura a ideia de evolução tal como a define Darwin, constituti a revolução/mudança de paradigma, mais transversal desde que a Terra deixara o centro do universo. Tal como a heresia heliocêntrica de Copérnico e Galileu, também a teoria evolutiva de Darwin, revê a ordem natural das coisas, o lugar da nossa espécie, o conceito de nós mesmos. Para ilustrar esse alcance da teoria darwiniana, essa transversalidade, essa redifinição, basta-nos pensar na forma como a sua substância enfrenta de uma só penada quase todos os dogmas e princípios-primeiros da Igreja. A nossa espécie não é essencialmente diferente das demais, e toda a vida está ligada não por uma vontade criadora divina, mas por um processo histórico com uma base biológica material.

Vejamos brevemente de que consiste a teoria de Darwin, de evolução por selecção natural.

A ideia de evolução não surge da pena de Darwin, desde a Grécia antiga a Lamarck que conceitos mais ou menos vagos de evolução tinham sido avançados. No entanto, Darwin é único porque consubstancia essa ideia de padrão, de árvore da vida, num processo criador: a selecção natural. Este processo implica que existam variações herdáveis entre indivíduos que estabeleçam diferenças na sua sobrevivência e taxa reprodutiva. Por outro lado, é importante realçar que estas diferenças dependem das condições ambientais e como tal não existem em absoluto formas melhores ou piores. Deste processo resulta que, para essas condições ambientais, os contributos para geração seguinte são diferentes de indivíduo para indivíduo e que com o tempo a população vai mudar a sua composição, com variantes menos adaptadas a perderem representatividade por oposição ao crescimento relativo da descendência de indivíduos melhor adaptados. Esta ideia é em grande parte construída por Darwin a partir da observação de espécies domesticadas. Dos cães ao milho, passando por todo o gado domesticado, os humanos alteraram drasticamente estas espécies, da morfologia ao comportamento. Este processo, de selecção artificial (por mão humana) é no fundo análogo ao processo que opera em condições naturais, em que o critério humano é substituído pelas condições ecológicas específicas em que vive cada organismo.

Mas voltando à ideia de variação, gostava de desenvolver aqui um aspecto que é na minha opinião uma das suas ideias mais revolucionárias: o lugar desse conceito na teoria darwiniana. As diferenças entre indivíduos são uma condição necessária ao processo evolutivo. Rompendo com a tradição essencialista na qual as diferenças entre indivíduos são desvios indesejados ao ideal definidor da espécie, Darwin coloca a ideia de variação no centro da sua teoria como matéria-prima para a adaptação às flutuações ambientais e base geradora das “tão belas e incontáveis formas” que nos rodeiam.

Esta forma de encarar a variação pode ser vista como eminentemente humanista. Até que ponto o humanismo de Darwin é determinante na elaboração da sua teoria, é difícil de estabelecer. No entanto, um recente livro publicado por dois dos mais reputados biógrafos de Darwin - “Darwin´s sacred cause de Adrian Desmond e James Moore – defende a tése de que as fortes convicções abolicionistas de Darwin terão sido determinantes para a sua teoria. A existência de uma só origem para a vida tem como consequência uma noção de irmandade entre as espécies, e em particular entre humanos, tornando a escravidão (também) um absurdo biológico. Uma passagem da “Viagem do Beagle” talvez levante um pouco o véu: “se a miséria dos nossos pobres não é devida a leis naturais mas sim às nossas instituições, quão grande é o nosso pecado!”.

Há no vastíssimo espólio epistolar e científico de Darwin, extraordinários trechos reveladores de um conhecimento e intuição invulgares da Natureza e suas leis, bem como das nossas sociedades e da nossa espécie. Por isso, qualquer que seja a nossa formação o prazer de ler Darwin é o da descoberta de uma mente em (quase) tudo à frente do seu tempo. Quanto à sua teoria e como é apanágio de qualquer teoria científica, ela sobrevive e sai reforçada de todos os testes por que passou ao longo do século e meio de vida. Ela própria evoluiu e continuará a evoluir, incorporando novos conhecimentos, tornando-se mais sofisticada e sólida, sendo que os seus conceitos fundadores se mantêm os mesmos tão válidos hoje como então. Essa validade revela-se na forma como explicou a diversidade dos tentilhões das Galápagos há 150 anos atrás, e hoje nos permite compreender, e tentar resolver, os problemas colocados por bactérias multi-resistentes nos hospitais. Essa é o garante de que a Evolução Darwiniana continuará a constituir o princípio unificador da biologia, e logo, do nosso entendimento da Vida.

*Élio Sucena é investigador em Biologia evolutiva e do desenvolvimento no Instituto de Ciência da Gulbenkian e professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

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