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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Ou sim ou sopas

Daniel Oliveira, 23.11.10

Se um ministro fala demais os mercados ficam histéricos. Se se cala ficam ansiosos. Se os eleitores, na sua livre escolha, elegem um governo que resolva defender os direitos dos cidadãos, ficam revoltados. Se um governo decide que os especuladores vão pagar impostos, ficam aborrecidos. Os mercados, sempre hipertensos, transformaram-se num excelente álibi para todos os abusos e todas as injustiças.

E como aceitamos que o poder absoluto dessa entidade semi-religiosa e castigadora, estamos a transformar as nossas democracias numa bolsa de valores, onde os jogadores ocuparam o lugar dos cidadãos. Não, já não aceitamos apenas a economia de mercado. Vivemos numa sociedade de mercado, dominada por uma cultura de mercado e regulada por uma democracia de mercado.

Só que, lamentavelmente para os que acreditam que o homem nada pode quando o Deus Mercado acorda mal disposto, ainda é quem produz que faz o mundo rodar.

Amanhã, os que produzem vão recordar ao poder político que também existem. Que também ficam histéricos, ansiosos, revoltados e aborrecidos. Por um dia, mostrarão ao poder político e económico que também querem contar naquilo a que ainda chamamos, por facilidade, de democracia. Para muitos, fazer greve será uma decisão difícil, que pode pôr em perigo o seu emprego ou a promoção esperada. Para outros, um acto que pode parecer inútil. Mas de nada servirão os resmungos quotidianos contra os políticos que tão mal nos têm governado se não formos coerentes. Amanhã veremos se os portugueses falam a sério quando dizem que estão fartos de pagar as crises que não provocaram. Ou sim, ou sopas.

Publicado no Expresso Online

Robin Hood de pernas para o ar

Daniel Oliveira, 22.11.10

A Irlanda foi obrigada pela União a pedir ajuda ao Fundo Europeu de Estabilização Financeira e ao FMI. Na realidade, o Estado irlandês não precisava de dinheiro. Apenas teria de recorrer aos mercados da dívida em Abril de 2011, mês até ao qual tinha os seus problemas de financiamento resolvidos. Só que o mesmo que o levou a um défice público astronómico repete-se: é preciso salvar a banca em apuros.

Este pedido de ajuda, que enterra definitivamente a possibilidade de recuperação da economia irlandesa, pode vir a ter um efeito arrastamento para países como Portugal. E a Irlanda continuará o seu caminho para o abismo porque a Europa, apesar da sua generosidade com os especuladores, não muda uma vírgula nas draconianas imposições aos Estados-membros. Não se importa de ver afundar as economias periféricas da Europa para salvar a banca sem que, no entanto, tenha a coragem de dar qualquer passo para responsabilizar os culpados por este desastre e disciplinar o comportamento patológico das instituições financeiras.

O governo irlandês quer tentar o impossível: reduzir o défice público, causado por esta ajuda à banca, em 15 mil milhões de euros até 2014. E tentará que isso aconteça através do aumento de impostos e redução das prestações sociais. Trata-se de um desvio de fundos dos cidadãos e das empresas produtivas para as instituições financeiras. As mesmas instituições que não hesitam em cobrar juros usurários aos Estados para os salvar da situação em que ficaram por causa ajuda que lhe deram. Ou seja, a banca rouba duas vezes: é salva por dinheiro públicos e agradece cobrando juros astronómicos por um risco que ela própria provocou.

Aquilo a que estamos a assistir na Europa é a um roubo sem precedentes. E este roubo não resulta apenas da impossibilidade de deixar cair instituições financeiras que se transformaram em monstros inimputáveis. Resulta de uma geração de líderes políticos cobardes que se recusam a decidir que a política tem de voltar a comandar a economia. O que está a acontecer na Irlanda é apenas mais um episódio de um assalto aos cofres públicos. E ele continuará até os europeus mudarem de governantes.

Publicado no Expresso Online

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Daniel Oliveira, 19.11.10
O Arrastão volta a crescer. Com três entradas directas. Andrea Peniche, editora, licenciada em Filosofia e mestranda do curso "Educação, Género e Cidadanias", portuense e portista, feminista de todos os costados, é também uma das autoras do blogue Minoria Relativa. Miguel Cardina, historiador, coimbrão (mais um), batido na blogosfera vindo do Vias de Facto, é investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. E Ana Nunes, lisboeta e benfiquista, ????, que se estreia em grande na blogosfera, aqui no Arrastão. Podem ver as suas pequenas biografias na página dos autores.

A todos eles as boas vindas. Com um pormenor simpático: finalmente isto deixa de ser um clube masculino.

O Arrastão passa a estar albergado na plataforma do Sapo (com algumas pequenas alterações gráficas), mas o endereço continua a ser o mesmo.

Mais uma vez, claro

Daniel Oliveira, 19.11.10
“Sei que há pouco dinheiro mas tem que haver dinheiro para o essencial. Comigo na Presidência ninguém toca no SNS, na escola pública, na segurança social pública e nos direitos laborais dos trabalhadores. O candidato que se recandidata não diz o que fará se isso acontecer. Pois eu digo: veto e usarei todos os poderes presidenciais para defender esses direitos e para defender o conteúdo social da nossa democracia”.
Manuel Alegre

A morte da Europa

Daniel Oliveira, 19.11.10

Hoje, na cimeira da NATO, uma das chaves centrais de todo o xadrez estratégico é a Turquia. Pela sua posição geográfica, pela sua relação com o Médio Oriente e os países islâmicos, pelo seu crescente poder económico e militar. E não nos podemos deixar de lembrar que a este colosso, que daria à Europa um extraordinário poder internacional, foi negada a entrada na União. Como um clube elitista e decadente, por razões mesquinhas, fez-se de caro quando não podia.

E olhamos para a patética situação actual da Europa, para este seu suicídio económico, para os egoísmos nacionais que a matam como projecto político, para a construção de uma moeda feita de pernas para o ar, para a escolha de Durão Barroso como seu líder, apenas porque é suficientemente irrelevante para não fazer sombra ao ego de nenhum dos líderes das maiores potências, para a incapacidade de dar passos para um governo europeu, deixando sempre tudo a meio, e percebemos como tudo isto não passa de um equívoco.

Julgámos, por quase meio século, que o que veio a ser a União Europeia concretizava um sonho que parecia quase impossível. Em parte conseguiu-se. Tantos anos de paz não é coisa pouca. Mas no momento da verdade a Europa emperrou. Embrenhada nas suas contradições, incapaz de reagir quando a história se encontrou com ela, é hoje um doente em estado terminal. E não falta muito para podermos decretar a sua morte. Como mercado único, como poder geoestratégico, como projecto político, como pólo civilizacional, mas, acima de tudo, como ideia democrática.

Não há Europa porque demasiado líderes fracos a mataram. Dela, pouco podemos esperar para alem do cálculos eleitorais de dirigentes nacionais e a cobardia de burocratas sem dimensão política. A Europa perdeu o rumo, perdeu o seu modelo social e perdeu os europeus. Só lhe falta mesmo perder a pompa que a faz olhar de cima para os turcos. O que eles se devem estar a rir de nós. Livraram-se de boa.

Publicado no Expresso Online

Estavas, linda Irlanda, posta em sossego

Daniel Oliveira, 18.11.10

A Irlanda é que era. Impostos baixos, desregulação laboral, exposição sem limites aos riscos externos, a receita mais do que perfeita. Devíamos seguir-lhe o exemplo porque os factos não enganavam. Aquilo é que era uma maravilha.

Depois dos factos se virarem contra os adoradores da Irlanda, eles não desarmaram. Sim, digam o que quiserem. Ainda estaremos nós a penar a Irlanda correrá saltitante e fora da crise. Vão ver! Só que a Irlanda, teimosa, não ficou melhor. Ficou pior.

Mas uma fé é uma fé e nada a pode contrariar. A Irlanda continuou a ser um exemplo. Porque tomou antes de todos os outros as medidas que se exigiam. Ah, se Portugal tivesse feito o mesmo em vez de andar a perder tempo. Cortar a direito e sem contemplações. Aquilo sim, é ter coragem. Aquilo sim, vai correr bem.

Mas a Irlanda, que não sabe nada de economia, armou-se em parva e a sangria que começou antes dos outros acelerou ainda mais a desgraça. Só que nada demove quem se guia pelo dogma. E se os factos desmentem uma boa ideia, os factos estão errados.

Não julguem que a Irlanda agora se vê obrigada a receber o socorro que não queria para salvar as suas contas públicas. A Europa, que é como aquele escuteiro que para fazer uma boa acção obriga a velhinha contrariada a atravessar a rua, exige que a Irlanda aceite o apoio para continuar a salvar os bancos que a enterraram. Não é seguramente para resolver os problemas com a sua dívida, já que só em Abril do ano que vem precisava de ir aos mercados.

A coisa mais extraordinária de toda esta história é que são os mesmos que defenderam a desregulação do sistema financeiro, que defenderam o desastroso modelo irlandês como exemplo e que defendem as políticas de austeridade que estão a matar as economias europeias que são ouvidos como conselheiros das Nações. Os cangalheiros fazem-se passar por médicos. E o engodo funciona.

Publicaco no Expresso Online

Os portugueses

Daniel Oliveira, 18.11.10
Nada há de mais cansativo do que as conversas existenciais sobre os portugueses. Eles são tristes. Pessimistas. Obedientes. Invejosos. Mesquinhos. É curioso que a coisa raramente bate certo com a ideia que os portugueses têm do seu passado. Que foram corajosos. Ambiciosos. Tolerantes. Generosos. E a propósito desta incongruência construiu-se uma narrativa que se entranhou nos nossos espíritos: a de um Império perdido que espera, acabrunhado nos seus brandos costumes, pelo regresso de um Sebastião que lhe devolva essa glória imaginada.

Os portugueses não são nada. São, como todos os povos, temerosos e temerários, tolerantes e preconceituosos, mesquinhos e generosos. E a sua proverbial inveja resulta apenas de uma forma resignada que temos de lidar com a injustiça. Quando se vive num país onde uma pequena elite goza de um conforto desproporcionado para os recursos que temos e a maioria de uma pobreza que o que já temos não justifica, a inveja é apenas a alternativa passiva à revolta. Mas essa revolta já se fez sentir algumas vezes: na I República e no PREC, por exemplo. Dois momentos de dignidade em que os portugueses contrariaram a narrativa que a sua elite foi construindo sobre eles. Dois saltos no escuro que nos fizeram melhores como povo.

Aquilo a que assistimos nos últimos meses tem décadas. Tem séculos. Dia após dia, todos os dias, vendem-nos as histórias de sempre: vivemos acima do que podemos; não merecemos o pouco que temos; somos gastadores e improdutivos; devemos aceitar disciplinadamente todos os sacrifícios; a revolta apenas nos poderá prejudicar.

É por isso que a próxima greve geral é uma urgência. Um momento em que recusamos a estabilidade que nos amesquinha numa mediocridade que não merecemos. Não é apenas um protesto. Não pode ser apenas um grito. Tem de ser um aviso. Não somos o que se diz de nós. Ou até somos. Invejosos perante os privilégios que outros não merecem. Rancorosos por décadas de assalto ao que devia ser de todos. Intolerantes com a injustiça que deixa sempre para os mesmos a fatura de erros que não lhes podem ser atribuídos. Enfim, cidadãos. Fartos de ser os portugueses que queriam que fossemos.

Texto publicado na edição do Expresso de 13 de novembro de 2010

Tenham a bondade de auxiliar

Daniel Oliveira, 17.11.10
Como sabemos, o sector bancário foi a único que realmente se salvou do sacrifício geral. Empresas, desempregados, pobres, trabalhadores, classe média, todos levaram pela medida grande. Para os bancos, com enormes responsabilidades na situação em que estamos (recordo que o nosso principal problema é, comparativamente com os restantes países europeus, o endividamento externo privado), ficaram as medidas simbólicas.

Os mesmos deputados que, na altura de elaborar um orçamento demolidor, acharam que não deviam incluir os bancos nos sacrifícios, resolveram dar um ar da sua graça. Um grupo de parlamentares do PS defendeu um aumento da taxa efectiva de IRC para a banca.

Para defenderem o seu ponto de vista recordaram, e bem, que em 2008 e 2009, quando "as instituições financeiras se defrontavam com grandes dificuldades de financiamento externo", o Governo "avançou com a concessão de garantias do Estado para o reforço da estabilidade financeira do mercado português, assumindo responsabilidades até 20 mil milhões de euros". E que a nacionalização do BPN, "operação destinada a evitar uma catástrofe do sistema financeiro" obrigou a uma assistência estatal de 4600 milhões de euros.

Perante isto, os corajosos deputados fizeram uma proposta ao governo para obrigar a banca a pagar os mesmo que as outras empresas? Não. Isso seria um sinal inaceitável de radicalismo. Uma irresponsabilidade. Ela que autoproponha um aumento da taxa. Em quanto? "Até poderia ser o valor pago pelas empresas normais, mas também pode ser um pouco abaixo. A banca saberá até onde pode ir."

Sim, leram bem: os cândidos (antes fosse isso) "socialistas" querem que os banqueiros tenham a amabilidade de aumentar os seus próprios impostos. E é à vontade do freguês. Mandem aí um valor que o governo aceita. O que espanta já não é a falta de espinha destes senhores. É a falta de sentido do ridículo. Antes a direita, que por não ter vergonha do que defende, não se presta a estas figuras.

Publicado no Expresso Online