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Arrastão: Os suspeitos do costume.

10 anos depois, na primeira pessoa

Daniel Oliveira, 28.02.09


Foto Paulete Matos



O Bloco de Esquerda faz hoje dez anos. Muita gente fará o balanço político. Aqui, farei um balanço quase exclusivamente pessoal, porque o meu envolvimento neste aniversário é demasiado profundo para análises distanciadas. É da minha vida política que vou falar. O texto é demasiado grande. Podem parar de ler aqui. Depois não digam que não avisei.

Até chegar ao Bloco fiz um longo percurso político, que começou numa idade estupidamente precoce. A precocidade resulta do tempo da minha infância e do meu contexto familiar. No PREC tinha cinco e seis anos. Era de política, e não de futebol ou de novelas, que se falava nas ruas, nas escolas, nos empregos e nos cafés. E em minha casa muito mais do que em quase todo o lado. A minha mãe era sindicalista (uma das primeiras mulheres a presidir a um sindicato em Portugal), o meu padrasto, responsável por uma parte razoável da minha formação cultural e política, era deputado à Assembleia Constituinte. Na minha família alargada havia 16 militantes do PCP (sobram três). E eu, mínimo, tinha um interesse anormal (e clubístico, claro) pela política. Cresci, ainda assim, num ambiente onde o debate e a divergência eram normais. Um ambiente típico dos meios intelectuais comunistas.

Entrei para a juventude comunista numa idade indecente: 12 anos. Não me fez mal nenhum. Criou-me, desde novo, alguns hábitos de disciplina e de socialização com pessoas de meios diferentes do meu. E não perdi nada por isso. Interessava-me por política tanto ou mais que os meus irmãos mais velhos. Mas a minha militância precoce foi marcada por alguns condicionalismos “externos”. Antes de mais, estava num liceu em que a direita era avassaladoramente dominante (na altura havia muita política na escolas): o Pedro Nunes. Trabalhava com os militantes da juventude socialista. Nem havia outro remédio. Juntos, éramos menos do que os simpatizantes do CDS. E como sempre estive, na “jota”, dedicado à “frente unitária”, isso marcou a forma como, mais tarde, olharia para a actividade política. Nunca tive funções de aparelho e a minha ligação ao mundo da vida interna era distante. Era, por isso, alérgico ao sectarismo. E vivíamos no período de perda de influência do Partido Comunista, o que acentuava ainda mais essa abertura em relação aos outros.

Ainda um miúdo, com 14 anos, fiz o curso da Escola de Quadros do PCP. Era, para mim, uma espécie de ritual de passagem que, na altura (penso que mais tarde deixou de ser assim, não sei), tinha alguma importância. E foi aí, bastante cedo, que a coisa se tornou mais difícil. Levei para a escola do Lumiar algumas das dúvidas que me atormentavam. Na Polónia, a classe operária estava do lado contrário da barricada. No Afeganistão, a URSS portava-se como um qualquer estado imperial. Claro que já tinha havido a Hungria e a Checoslováquia, mas isso para mim eram histórias do passado. Aquilo acontecia naquela altura. Pouco mais do que uma criança (politicamente precoce, mas muito infantil em tudo o resto), estava convencido que os camaradas mais velhos me iam dar respostas satisfatórias. Claro que não deram. Nem podiam. E nunca mais me esqueço, passados tantos anos, da aula em que tudo desabou para mim, pobre adolescente militante: quando Vítor Dias, que dava a aula de política internacional (ao que parece a aula não era de política nacional - ver nota final), apenas me conseguiu explicar que eu estava baralhado. Começou, por assim dizer, bem cedo a minha "crise de fé".

Depois voltei para a minha vida normal. Não me passava pela cabeça sair do Partido. Seria uma traição. Não ao Partido. A mim. Afinal de contas, eu era, num liceu de betos, o “comuna”. Ali, eu era uma espécie do último dos moicanos, uma ave rara. Numa altura em que a diferença custa (a adolescência), já me tinha conseguido habituar a ela. Continuei a concorrer à Associação de Estudantes e a perder (mais uma vez, na altura a política existia nos liceus) e a criar com os “xuxas” movimentos na escola. Cheguei a ser delegado ao II Congresso da JCP. Aí tentei que fossem discutidos dois assuntos tabú que eram importantes para putos da minha idade: legalização das drogas leves e fim Serviço Militar Obrigatório. Sobre o primeiro, que na altura nem era um debate na sociedade portuguesa, tinha uma posição clara, sobre o segundo nem por isso (acabei, anos mais tarde, por fazer a tropa). Mas queria que se discutisse. Não passaram da mesa do congresso e os delegados nem souberam que tal proposta fora feita.

Depois desse congresso comecei a querer discutir mais as posições do partido (até porque estava na direcção do Ensino Secundário de Lisboa) e o seu funcionamento interno. Não que fosse perseguido. Longe disso. Nem havia como: era um puto que vivia em casa dos pais e sem qualquer tipo de dependência. Mas o debate chocava sempre com uma enorme dificuldade: a falta de vontade de debater. Tudo acabava num rótulo qualquer: social-democrata era (ainda é) o mais comum. Diletante e pequeno-burguês era outro. Reformista era o último e final. A esquerda não perdeu, aliás, este hábito rotulador. E, no entanto, naquela altura, enganavam-se os meus camaradas: eu não podia ser mais marxista-leninista. Mas os desenvolvimentos na Polónia e uma viagem que fiz à Checoslováquia tinham-me tornado, é verdade, cada vez menos pró-soviético. Gostava de Carrillo, de Berlinguer e de Tito. Lia, sem perceber bem, umas coisinhas soltas sobre Gramsci e Rosa Luxemburgo. Andava à procura das respostas e as dúvidas eram cada vez maiores. Se o activismo na tal “frente unitária” num liceu quase sem comunistas acabava por me permitir fazer política à minha maneira, ele, por outro lado, obrigava-me a confrontar-me com opiniões muito diferentes das minhas. Foi o meu gosto pela discussão, que ainda hoje tenho, que me fez afastar do PCP. A maioria dos meus amigos era de esquerda, mas não era, longe disso, comunista. Quando percebi que já não acreditava numa palavra do que defendia (ainda bem que me esforcei em defendê-lo, para chegar a perceber que não acreditava) percebi que não fazia sentido continuar no PCP. E quando saí do Liceu e comecei a trabalhar já não fazia mesmo qualquer sentido.

Quando, em Novembro de 1989, nas vésperas da queda do Muro, aconteceu o III Congresso da JCP e eu nem consegui que me convocassem para as reuniões preparatórias, entreguei o cartão. Foi recebido sem espanto e até alívio pela minha "controleira" de então (acho que também já não é militante). Mantive amigos e a minha família, que então se continuava intacta no Partido, achou normalíssima a minha saída. Foi, por assim dizer, um divórcio amigável. Olhando para trás, não me arrependo nada de ter sido militante do PCP (ou da JCP, para ser mais preciso). Fui-o por boas razões assim como as são a da maior parte dos comunistas que conheço e com os quais discordo. Há coisas na cultura do PCP muito saudáveis, outras absolutamente insuportáveis. O pior (ou o melhor) é que umas e outras estão intimamente ligadas. Do tempo em que fui militante, se a memória não me falha, só me arrependo de uma coisa: de ter deixado de apoiar Maria de Lurdes Pintasilgo por indicação do partido. Na altura fiz o cálculo das guerras que devia e não devia travar. Os cálculos fazem-se e devem fazer-se. Mas deveria saber que eles têm de ter como fronteira a nossa consciência. De resto, tudo o que fiz, fiz com generosidade. Como sei que a maioria dos militantes comunistas é por essa razão que perdem os seus dias em trabalho político. Não me impede de achar que estão errados. Mas sei que a maioria se move por convicções. Só gostava que tantos aprendessem a acreditar que não falta, fora do seu Partido, gente que, discordando deles, por vezes profundamente, se move pelo mesmo instinto.

Curiosamente, foi depois de sair do PCP (quando a maior parte das pessoas começa a pensar em política), que pude finalmente votar. Acompanhei com esperança e imensas ilusões a Perestroika de Gorbachev. Mas quando o PCP apoiou o golpe dos ortodoxos aconteceu o afastamento emocional (que no caso do PCP nunca é fácil) definitivo. Fiz o caminho de muitos ex-PC’s: INES e Plataforma de Esquerda. Fiz parte da direcção desta última, num contacto com o que de mais enfadonho e desinteressante há na política. Quando saí da Plataforma – e fi-lo rapidamente –, convencido que a minha participação naquilo fora um equívoco, fiquei a perceber mais algumas coisas sobre os partidos. Ver que para o PS rumaram os que tinham, no PCP, feito parte do aparelho partidário ou sindical (Pina Moura, Osvaldo Castro, José Luís Judas) e que de fora ficaram os que tinham vida profissional fora da política e podiam afastar-se dela sem dificuldade (Miguel Portas, António Hespanha, Paulo Varela Gomes, Rogério Moreira) foi esclarecedor sobre os riscos da dependência ou do vício da política. Uma lição que me acompanhou o resto da vida. Não que todos tenham ido para o PS por não conseguirem ficar na sombra da independência. Nunca deixei de admirar a honestidade política de homens como Barros Moura ou Raimundo Narciso, mesmo discordando das suas opções.

Mantive militância cívica e votei muitas vezes, sem qualquer convicção, no PCP. Só me voltei a empenhar em três campanhas. A do PSR, em 1991, que apoiei como independente, a da primeira candidatura de Sampiao à presidência (não participei nas únicas eleições em que a Política XXI concorreu, porque vivia no estrangeiro) e a primeira campanha do referendo do aborto, na qual me empenhei especialmente. E é nesta que começa a nossa história. Ela foi uma experiência traumática e muito importante para a esquerda. No dia do referendo, decidi que não fazia mais política (decisão que, como se pode ver, não durou muito). Ela trouxe ao de cima todos os fantasmas e fazia perceber que alguma coisa tinha de mudar.

A dificuldade que o PCP tinha em trabalhar num plano realmente unitário (não com "compagnons de route" ou os aliados de sempre) ficou mais uma vez muito evidente. O conservadorismo que dominava (e continua a dominar) a base do Partido Socialista e a dificuldade que este partido tem em se comprometer realmente com alguma coisa também. E, por fim, a falta que fazia um novo partido que conseguisse furar este bloqueio da esquerda e juntar a luta pela igualdade com a defesa da liberdade individual. O sinal tinha sido dado com o resultado do PSR em 91. Mas era cedo na altura e o PSR ainda não era o protagonista para o que era preciso fazer. Os ex-PC’s que, como eu, não desaguaram no PS juntaram-se na Política XXI. Havia por lá excelentes quadros políticos e técnicos, mas faltava a base militante e outras experiências. E a UDP, que tentara a abertura com a candidatura de Carlos Marques à Presidência, ainda não tinha completado a sua travessia do deserto. UDP com PSR e PSR com Política XXI já tinham experimentado coligações pontuais, mas sem sucesso.

O Bloco começou a nascer com a queda do Muro, mas só dez anos mais tarde, durante a campanha de 1998, ficou evidente que as coisas tinham mesmo de mudar.

Participei activamente no processo de fundação. Sobre ela, vale a pena ver o documentário completo sobre os 10 anos do BE que já está à venda e que tanto deu que falar.

Inicialmente, houve desconfiança. Seria a UDP apenas um pequeno PCP? Seriam os ex-PC’s uns diletantes em trânsito para o PS? Seria o PSR um grupo geracional dedicado a algumas causas importantes mas incapaz de lidar com maiores responsabilidades? Não duraram muito as dúvidas. E para dissipar as desconfianças foram fundamentais três coisas: os bons resultados nas primeiras legislativas (que superaram as melhores previsões que fazíamos internamente e fizeram perceber a responsabilidade que tínhamos nos braços); a entrada de muitas pessoas que não vinham de nenhum dos partidos e que acabaram por fazer a síntese do que deveria ser aquele partido; e um grupo dirigente de uma qualidade invulgar (e que estabeleceu uma fortíssima relação de confiança mútua), onde Francisco Louçã, Miguel Portas, Luís Fazenda (a pessoa que primeiro pensou que estava chegada a altura de uma coisa como o Bloco nascer) e Fernando Rosas tiveram um papel central. As diferenças políticas entre os partidos fundadores e de personalidade entre os principais dirigentes acabaram por ser complementares, em vez de antagónicas. O medo de falhar mais uma vez impediu que se fizessem muitos disparates. A necessidade de acção política resolveu, por termos de agir no concreto, muitas divergências.

E, por fim, foi feita uma coisa inteligente: em vez de nos sentarmos a discutir o nosso corpo ideológico, fizemos um diagnóstico comum e fomos chegando a acordo (ou ao consenso possível) na resposta a cada problema concreto. O Bloco foi construindo a sua identidade em vez de decidi-la à partida. Se fizesse ao contrário, cada palavra, por mais irrelevante que fosse, traria consigo toda a sua história, cada discordância seria uma linha de trincheira, e o Bloco nem teria chegado a nascer. E os que chegassem de novo encontrariam um partido já feito, que em vez de atrair, afastaria. Acordos que seriam impensáveis foram possíveis. Gente com percursos muito diferentes entrou. Demorou tudo mais tempo, mas a consolidação fez-se de forma segura. A isto juntámos uma coisa que para mim era fundamental e que me deu oportunidade de viver com uma nova experiência política: uma democracia interna sem paralelo na vida partidária portuguesa (e digo-o medindo as palavras), aceitando-se as divergências como uma coisa não apenas natural, mas indispensável, e recusando o unanimismo em torno de chefes.

Tive, ao longo destes dez anos, como simples militante ou como dirigente, divergências com opções do Bloco. Delas resultaram discussões internas calmas ou acaloradas. Mas nunca tive como resposta processos de intenções. As divergências, no Bloco, valem por si próprias e não se fazem atalhos para pôr de lado as posições diferentes. Perde-se a ganha-se, claro. Fazem-se escolhas e as pessoas são responsabilizadas pelas posições que defenderam. Mas o terreno é o da política, não é o da suspeita de traição. E a verdade é que crescemos todos muito com este processo. Ao contrário do que os defensores da pureza ideológica julgam, há disciplina no Bloco. Mas ela nasce da democracia interna, com garantias formais e informais para quem esteja em minoria. Assim, a disciplina é aceite como resultado de um processo justo (e mesmo a justeza deste processo pode ser posta em causa por qualquer um) e não como resultado de um processo que já tem um fim determinado à partida. E esta é a diferença entre a disciplina e a obediência.

Para mim, pessoalmente, a política partidária voltou a fazer sentido. O Bloco é perfeito? Longe disso. Umas vezes fomos exigentes, outras facilitámos; umas vezes demos o exemplo na capacidade de falar para fora e trabalhar com outros, outras demos sinais de sectarismo; umas vezes tivemos a coragem de apresentar propostas, outras nem por isso. E quando falo do plural, incluo-me nos acertos e nos falhanços.

E os maiores testes à solidez do Bloco ainda estão para chegar. Um, será quando aos dirigentes fundadores, que tiveram um papel fundamental na coesão do partido, sucederem as novas gerações. Não será fácil. Outro, é quando o Bloco se vir confrontado com a chantagem ou a possibilidade do poder e, tome a decisão que tomar, pode pôr em causa tudo o que acumulou. Mas, independentemente de tudo, o Bloco foi o primeiro partido que, depois das primeiras eleições de 1975, se conseguiu impor na vida portuguesa. E é um partido que corresponde à renovação que, fora da política partidária, a esquerda sofreu na sociedade civil nos últimos vinte anos. É olhado, garanto-vos, no resto da esquerda europeia, como um exemplo de um processo bem conduzido. Ao contrário do que tantas vezes se escreve por aí, o nascimento e consolidação do Bloco, com tudo o que tinha para falhar, é uma demonstração de uma enorme maturidade e responsabilidade dos seus fundadores.

Por vezes discordei do meu partido. Mas até hoje nunca deixei de achar que participar no nascimento do Bloco foi a coisa mais relevante da minha quase irrelevante vida política. E sei que há milhares de pessoas que militam no Bloco com uma biografia política bem mais recheada do que a minha que sentem exactamente o mesmo.

A política portuguesa mudou com o Bloco. E mudou para melhor. A minha experiência política também. E por isso comecei por falar dela e resolvi dar aqui um testemunho mais pessoal. Um partido que quer mudar a forma de exercer a política (e isso o BE ainda não conseguiu – trata-se de um trabalho de longo prazo) tem, antes de mais, de conseguir agir sobre aqueles que nele militam. E por isso fiz aqui esta pequena biografia, se é que sequer assim se pode chamar. Porque o Bloco alterou a forma como me vejo na política e como me porto na política. Quando nasceu, há 10 anos, apanhou-me mais descrente do que nunca em relação à vida partidária e até de cidadão. A mim, que desde tão novo a ela me entreguei, não me apanhavam noutra. A ideia de que, ao ser militante, teria de prescindir da minha autonomia intelectual, era insuportável. Estava confortável na minha posição de independente e achava que a convicção colectiva seria o contrário da tolerância e que a militância seria o contrário da liberdade. Decidi, no entanto, arriscar. E isso aconteceu porque, em vez do cinismo e da descrença que então me dominavam, achei que desta vez podia ser diferente. Fiz bem. Está a ser diferente.

Independentemente do que nos reserva o futuro, sei que só não falha quem não faz. O que fizemos há 10 anos, como diz o Fernando Rosas no documentário, olhando agora para trás, foi um gesto de uma enorme ousadia. Quase atrevimento. Podia ter corrido muito mal. Podíamos ter dado cabo das poucas esperanças e energias que restavam. Não demos. Por mim, sou, não tenho dúvidas, hoje politicamente mais útil e mais capaz. E isso deve-se, em grande parte, ao Bloco, onde aprendi, com outras pessoas, imensa coisa. Por isso, estes dez anos são, para mim, mais do que uma cerimónia.

PS: Vitor Dias garante-me que nunca deu aulas de política internacional. E se o diz, seguramente é verdade. A memória prega partidas quando chega à adolescência. Seguro, para mim, é que a conversa existiu e foi com ele - terá sido seguramente mais importante para mim do que para ele. É possível é que a aula tenha sido dedicada a outro tema (informação e propaganda, informa ele) e isto tenha surgido na conversa ou por perguntas minhas. Ainda assim, não me parece que seja muito relevante para a história e não tinha qualquer intenção de o melindrar. Pelo lapso, ficam as minhas desculpas.

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