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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Soares

Daniel Oliveira, 30.07.05
DUAS coisas se têm dito sobre a putativa candidatura de Mário Soares à Presidência da República: que o seu tempo já passou e que ele seria a solução de recurso da esquerda. Nenhuma das duas é verdadeira. Soares manteve-se no activo e o partido que fundou só deve temer a sua candidatura.

Soares é velho. Bem sei que estamos no tempo dos políticos sorridentes e saudáveis, mas a verdade é que outros, mais novos, no centro ou na esquerda, ficaram-se. E Soares não regressa de uma reforma. Conhecemos as suas opiniões sobre todos os temas essenciais dos últimos anos. É verdade que a realidade mudou, mas o Soares de há vinte anos e de hoje também não é o mesmo. As suas posições em matérias internacionais são a prova disso. O problema, para muitos, não é Soares ser velho. É ter querido envelhecer de esquerda.

Soares pode impedir a despolitização do debate presidencial, condição para que Cavaco chegue a Belém. Cavaco contava com um passeio sem luta até uma pacífica coabitação com Sócrates. Soares pode estragar-lhe os planos. E, sendo uma inesperada dificuldade para Cavaco, é, para já, uma dor de cabeça para Sócrates. Uma vitória de Soares não vale um chavo para o secretário-geral do PS - a vitória será sempre de Soares - e pode transformar-se num pesadelo para o primeiro-ministro. Soares é demasiado livre. É a liberdade dos velhos. Não têm nada a perder. Não têm nada a ganhar.

Entre o bem e o mal

Daniel Oliveira, 23.07.05
UM RELATÓRIO do Instituto Chatam House diz que o envolvimento do Reino Unido na guerra do Iraque facilita o recrutamento de bombistas contra o Reino Unido. Não espanta. Imagine-se um muçulmano a ver imagens, todos os dias, de mortos e torturados islâmicos. Não é difícil supor que se sentirá cada vez menos inglês. Mas os líderes políticos ocidentais estão na fase da negação. O que respondeu Blair: que tudo se resume a gente que segue uma «ideologia do mal». E que julga que basta os líderes religiosos islâmicos apontarem outro caminho que o rebanho os seguirá.

Pede-se alguma racionalidade. Bem sei que voltou a estar em voga a divisão absolutamente moral do mundo. Do lado de lá, a convicção maniqueísta também pega com facilidade. Mas a mim, na verdade, pouco me interessa saber de que lado está o bem. Porque sempre que alguém se convenceu de tão absoluta certeza deixou atrás de si um rasto de sangue. Para lá do bem e do mal, queria apenas que se tivessem evitado as 60 mortes em Londres, as três mil em Nova Iorque, as duzentas em Madrid ou em Bali, e, já agora, se não me levam a mal, as 25 mil no Iraque. O mal absoluto não existe. Existe a guerra e o poder. Quando os poderes se equilibram, as guerras são feitas com regras, de forma convencional. Quando os poderes se desequilibram, a guerra faz-se usando armas baratas e gente desesperada. E a religião sempre foi apenas um suplemento energético para o sacrifício.

O atentado de Londres foi o primeiro atentado suicida em solo europeu. É bom percebermos que chegámos a uma nova fase. Mesmo que estes suicidas representassem a «ideologia do mal», o que eu queria mesmo era saber o que vamos fazer para parar esta vertigem de morte. Se a solução é começarmos a ler os «e-mails» uns dos outros, digo desde já que, mesmo mortos, eles ganharam. Para além do bem e do mal, já nem damos valor à liberdade que conquistámos no século XX. Começámos a matar o melhor da nossa história.

Os náufragos

Daniel Oliveira, 23.07.05
SEGUNDO a lei portuguesa, uma criança que nasça em solo português e seja filha de imigrantes é estrangeira na sua própria terra. Nunca conheceu outro lugar, não fala outra língua, mas todos lhe dizem, desde o dia em que nasce, que este não é o seu país. Ao mesmo tempo, um filho de um português nascido e criado no estrangeiro, que nunca aqui tenha estado, tem garantida, graças à pureza do sangue pátrio, a nacionalidade.

O Governo vai mudar a lei, mas a nacionalidade originária continua a ser vedada aos filhos de estrangeiros. O direito de solo, que até 1982 dominava a lei portuguesa, continua a ter de conviver com o direito de sangue, tão querido às mais tenebrosas ideologias do século XX. O bom exemplo americano, que se orgulha da diversidade de origens dos seus cidadãos, continua a encontrar resistência nos espíritos das nações europeias.

A identidade nacional apenas nos confina à pequenez da memória e ao absurdo da pureza étnica. O multiculturalismo apenas transforma as nossas sociedades em supermercados de culturas que não se tocam. Só uma cidadania cosmopolita, com base em direitos e deveres iguais, pode garantir a integração. Seja qual for a nacionalidade, que sejam todos mestiços, vagamente portugueses, vindos de todo o lado. Todos imigrantes no lugar onde nascerem ou viverem. Se não for assim, haverá sempre milhares de adolescentes que, na busca da sua identidade, descobrirão que não são de lugar nenhum. Nem de cá nem de um outro lugar mítico que nunca conheceram. Serão náufragos em terra firme. Desesperados.

Espírito Santo de orelha

Daniel Oliveira, 17.07.05
QUANDO foi o caso da nomeação do director do «Diário de Notícias», apesar da PT ser uma empresa privada, logo todos apontaram o dedo ao poder político: o problema estava na «golden share» do Estado. Quando foi o caso do afastamento de Marcelo Rebelo de Sousa da TVI, a cena repetiu-se. Apesar de se tratar, mais uma vez, de uma empresa privada, o problema estava na dependência da estação em relação a decisões do Estado. Agora é a vez do braço-de-ferro entre o Banco Espírito Santo e o EXPRESSO.

O BES tem aparecido, no último ano, alegadamente envolvido em inúmeros escândalos: o caso Euroamer, o caso Portuccale, a lavagem de dinheiro de Pinochet na Florida e o escândalo da compra de deputados da oposição no Brasil. Tudo isto é, em qualquer lugar do mundo, notícia. Caso se trate de uma tenebrosa cabala internacional, o banco poderá sempre limpar o seu nome. Mas quer mais. Muito mais. Quer o silêncio. E, para tanto, não hesita em usar o seu poder económico, cortando as relações comerciais com o grupo liderado por Balsemão. A resposta de uma empresa de comunicação social foi, por uma vez, exemplar.

Por tudo ser demasiado evidente e o oponente demasiado forte, é claro que o grupo de Ricardo Salgado sabe que por agora não levará a melhor. Mas quer deixar um aviso à navegação e aos restantes escribas: antes de pensarem sequer em escrever uma notícia, uma opinião, um comentário, olhem para quem vos paga os jornais. A autocensura é a mais eficaz das censuras. O crime perfeito, o que não deixa pistas. E nestes jogos de poder, o Espírito Santo está sempre entre nós. Uma vantagem: talvez todos fiquem finalmente a saber quem manda neste país. Conto-vos um segredo: não é o Estado.

A corporação

Daniel Oliveira, 17.07.05
ESCREVI aqui que o «arrastão» não existiu. Aqui d’el-rei, que era a esquerda do costume, que não queria ver a verdade, que negava a evidência, sempre politicamente correcta. Bem sei que devia ter cedido. O que é que interessa a verdade ao pé da urgência de dar provas de incorrecção política? Nicolau Santos acusou-me mesmo, no EXPRESSO Online, de «falta de aderência» à realidade.

Para criar bom ambiente até pensei virar o bico ao prego. Mas não havia maneira. Eu bem queria aderir à realidade, mas ela foi-se mostrando de tal maneira rugosa que não havia quem lhe encontrasse aderência. A polícia diz que não houve arrastão. Não houve uma queixa. Não há testemunhas para nos dizer «eu fui assaltado». O homem que falou para todas as televisões a contar tudo foi o mesmo que tirou as fotografias e que chamou a polícia. Fez a festa, lançou os foguetes, apanhou as canas.

Perante todos os desmentidos, o que fizeram os jornais e as televisões? Uns culparam a polícia, apesar de agora se saber que esta tentou desmentir o caso sem que alguém nas redacções lhe quisesse dar ouvidos. Outros atiraram-se à autora do documentário que denunciava o engodo. Perante um erro jornalístico destas dimensões, o grande debate passou o comprometimento político da autora da denúncia. Outros teimaram que era indiferente serem 500 ou 30 assaltantes. Para quem caiu em cima do ministro das Finanças por um erro num mapa explicativo do défice, o mínimo que podemos dizer é que o rigor é coisa que só se exige aos outros. Tudo, menos assumir o disparate, pedir desculpas aos leitores, investigar os factos e, já agora, responsabilizar os autores de tamanha efabulação. Nos melhores jornais do mundo, é isto que se faz. Mas aí, há um bom-nome a defender. Por cá só se defende a corporação.

A marca do terror

Daniel Oliveira, 09.07.05
A TRAGÉDIA de Londres mostra que o terrorismo veio para ficar. Para o prevenir, quase nada é eficaz. Atacar os factores políticos e sociais, apertar as medidas de segurança e aumentar a transparência financeira dos circuitos legais que os terroristas utilizam terá sempre algum resultado. Mas os atentados continuarão. Porque são fáceis de executar e vivem da amplificação mediática que espalha os mortos por todas as televisões do mundo. O terrorismo vive da globalização do medo. E continuará a viver.

E, como todos os fenómenos de comunicação, encontrou a sua marca: a Al-Qaeda. Não é como a ETA ou as Brigadas Vermelhas, dependentes de uma direcção política. Trata-se de uma rede, não de uma organização terrorista tradicional. Tem uma cúpula de coordenação e, abaixo dela, uma estrutura fluida. Nuns casos são células autónomas, mas que não respondem a uma estrutura piramidal clássica. Noutros são organizações pré-existentes que beneficiam do seu apoio. Quem fez o atentado em Bali não queria exactamente o mesmo que os que fizeram os atentados em Nova Iorque, Madrid ou Londres. Limitam-se a ter alguns interesses convergentes, algumas fontes de financiamento comuns, alguma coordenação política e orgânica e, por vezes, treino coordenado. Une-os o objectivo de destabilizar países árabes e países ocidentais onde a imigração islâmica seja numerosa. A Al-Qaeda quer, antes de mais, quebrar todas as pontes entre o Islão e o Ocidente. E tem conseguido. Quem, do lado de cá, lhes fizer o favor de alimentar o «choque de civilizações» será, mesmo sem o querer, seu aliado.

O terrorismo é demasiado difuso e amoral para ser decapitado. Já a democracia, essa, só tem uma forma de não perder: nunca se esquecer, quando combate o terror, de não ficar parecida com ele. E é exactamente na ressaca das tragédias que não se pode esquecer da sua natureza.

Para lá do Marão

Daniel Oliveira, 09.07.05
MARQUES Mendes deu um murro na mesa e afastou os indesejáveis da corrida autárquica. Perdeu a aposta. As sondagens dão a vitória a Isaltino, a Valentim e, mais à direita, ao inenarrável ditador do Marco, Avelino Ferreira Torres, agora candidato a Amarante. Para lá do Marão, o aplauso de colunistas e jornalistas à firmeza de Mendes vale muito pouco.

Num país que odeia os políticos (os portugueses têm, na União Europeia, os mais baixos índices de confiança na democracia), o sucesso de figuras tutelares como Cavaco, Eanes ou Salazar, ou de políticos buçais, como estes autarcas, é revelador de infantilidade cívica. Não alinho em teses identitárias, como se este atraso fosse constitutivo dessa efabulação a que chamamos povo português. Responsabilizar meio século de ditadura pode ser tentador, mas também não chega. A dependência nacional da conjuntura externa, que deixa à política doméstica um baixíssimo grau de autonomia, um Estado fraco perante as pressões de uma elite económica sem horizonte e a inexistência de uma classe média sólida e qualificada parecem-me explicações mais plausíveis para esta falta de exigência nacional.

Fica-se sempre com a estranha sensação de que, por aqui, os cidadãos não se importam de ser enganados, ver os seus impostos pilhados e a sua inteligência insultada, se em troca tiverem um pai protector e autoritário. Que prezam pouco o património do Estado e a dignidade da democracia, porque não vêem nenhum deles como coisa sua. Seja como for, enquanto avelinos, jardins, valentins e isaltinos andarem por aí, saberemos o que falta para chegarmos ao mundo civilizado.

O funcionário público

Daniel Oliveira, 02.07.05
OS PECADOS da Função Pública são o Viagra dos governos. Num país absolutamente injusto, onde só os assalariados e os trouxas pagam impostos, eles são o alvo fácil para satisfazer todos os que se sentem, e com toda a razão, mal servidos pelo Estado.

Todos sabemos que há, na função pública, um imobilismo desesperante, um desperdício vergonhoso, uma angustiante indiferença perante o empenho dos melhores. Eles existem e não são assim tão poucos. Os serviços do Estado têm de levar uma grande volta. Mas evitemos a demagogia. É claro que os funcionários públicos não devem ter privilégios. A questão política é saber se devem ser eles a perder direitos ou os restantes a ganhá-los. Infelizmente, ao falar apenas de «direitos adquiridos», os sindicatos têm sido pouco pedagógicos nas suas intervenções.

A questão, na Função Pública, como em qualquer empresa, é de liderança. Se quem dirige os serviços do Estado vai saltando de lugar em lugar, deixando atrás de si um rasto de incompetência, sem nunca responder pelo seu trabalho, quem pode avaliar os seus funcionários? Se o cartão partidário é meio caminho andado para trepar na máquina burocrática, como podem os trabalhadores do Estado acreditar no mérito? Se os governos e os seus comissários partidários são incapazes de definir objectivos claros, como podem os funcionários do Estado cumpri-los? Se o topo da hierarquia é distante e errático, como pode a base ser eficiente e rápida?

Numa empresa, como numa repartição pública, saber dirigir as pessoas é, antes de tudo, dar-lhes gosto pelo que fazem. E valorizar cada gesto empenhado. Mas não é isso que temos ouvido dos dirigentes políticos. Sempre desconfiei do patrão que culpa o empregado, do professor que culpa o aluno, do general que culpa o soldado. Geralmente, o incompetente é ele

Bons ventos

Daniel Oliveira, 02.07.05
QUANDO a maré negra chegou à costa da Galiza, o velho Fraga estava numa caçada, com os amigos. Soube da notícia e por ali ficou. Porque, como dizia um seu opositor, Fraga só conhecia a sua terra de dentro de um carro oficial. Há 40 anos na política, homem de Franco e pouco dado ao debate democrático, julgava-se, como tantos, inamovível. A semana passada finou-se. E Zapatero foi o seu coveiro.

Em toda a Europa, o socialismo e a social-democracia estão moribundos. Perante uma direita agressiva e com um programa claro, o centro-esquerda está bloqueado. Sem alternativa política, resta-lhe a memória de glórias passadas. Não deseja mais do que cumprir o programa do adversário em versão «light». Temeroso, contenta-se em ser o dique de uma avalancha ideológica.

Mas Zapatero, pelo contrário, não tem vergonha. Mandou as suas tropas regressar do Iraque, legalizou meio milhão de imigrantes, afrontou a poderosa Igreja espanhola, começou a resolver a obsessão centralista e a preparar o reforço das autonomias e encostou os criminosos da ETA às cordas dando-lhes a escolher entre a violência e a negociação política. Na Galiza, província conservadora, o seu partido contrariou todas as vozes medrosas e preparou uma aliança à sua esquerda. Teve o seu prémio.

Não me iludo: nas questões estruturantes da economia, Zapatero não saiu nem sairá do consenso conformado. As suas causas podem até não ser as mais relevantes para o futuro. Mas quando a esquerda está em ressaca profunda, o estilo também conta. E a verdade é que Zapatero obrigou a direita espanhola a palmilhar, indignada, as ruas de Madrid. Parece uma mosca morta, mas vai sempre aos cornos do touro. E já percebeu o óbvio: nem os indecisos gostam de ser governados por indecisos.

Sócrates que olhe para lá de Elvas. Três exemplos: Zapatero, Blair e Schroeder. Três caminhos: fazer-se à vida, converter-se ou ficar em cima do muro até se estatelar no chão.