Romano Prodi demitiu-se e ao que tudo indica vai regressar integrando no seu novo governo elementos do centro-direita.
O chumbo da moção de apoio à política externa italiana (sobretudo à participação na missão da NATO no Afeganistão) não se deve exclusivamente à abstenção de dois senadores à esquerda - um da Refundação Comunista outro do Partido dos Comunistas Italianos. Também três senadores vitalícios pró-americanos, calculistas e pouco amigos do ministro dos Negócios Estrangeiros não deram o seu voto à moção. A verdade é que D'Alema julgava poder contar com apoios que não tinha e subiu demasiado a fasquia. Não foram sequer os votos dos senadores do Partido da Refundação Comunista (PRC) que faltaram. Apenas um deles se absteve. Faz parte de uma tendência trotsquista minoritária que vale 7% num partido que vale 7% de um país. Mas a verdade é que um senador "transviado" chegou para que começasse a gritaria contra a Refundação e a exigência de alterações (mais uma vez e desta vez com razão) da lei eleitoral. O espectro da impossibilidade de manter a Refundação Comunista e o centro-esquerda no mesmo governo continua e continuará a pairar sobre Itália.
Escrevi, quando a coligação de esquerda ganhou as eleições, que, apesar de me ter parecido indispensável a unidade em defesa da democracia, com o objectivo de garantir a derrota de Berlusconi, tinha muito pouca esperança na viabilidade deste governo baseado numa aliança negativa.
Vamos, por facilidade, entender neste texto por "esquerda" os que estão à esquerda dos partidos social-democratas tradicionais. Quase sempre é feita a esta esquerda a mesma pergunta: terá maturidade para participar em soluções de compromisso?
É, na verdade, um problema sem solução. Hoje, as principais clivagens políticas não se fazem entre a esquerda e a direita. Nem em política externa, nem em políticas sociais, nem no debate sobre o papel do Estado. Por deslocamento da social-democracia tradicional para a direita? Por cegueira ideológica da esquerda? Porque no plano estrito dos governos nacionais não há alternativas ao "realismo" do que se vai fazendo? A verdade é que hoje são maiores as afinidades entre um neo-liberal e um dirigente de um partido social-democrata europeu do que entre as várias componentes da esquerda.
Em Itália, a dúvida é esta: pode a Refundação Comunista participar em manifestações contra a política externa americana e defender que a construção de "Império Americano" é um dos maiores riscos para a paz mundial e ao mesmo tempo votar favoravelmente a expansão de uma base americana em solo nacional? Pode aprovar orçamentos que dizem o contrário do que o partido defende? Argumentando que o pacto de Estabilidade Crescimento foi uma poderosa arma no desmantelamento do Estado Social na Europa pode apoiar a política Europeia do pai do dito pacto? Pode ser contra a guerra no Afeganistão e a favor da participação das tropas italianas no conflito? Pode ceder em tudo para estar aliado a quem não mostra qualquer disponibilidade para ceder em nada? Pode, pelo contrário, querer ter a força política que o eleitorado não lhe deu para que quem tem muito mais votos ceda? Faria sentido que cedessem? Até onde pode um partido à esquerda ir para garantir a estabilidade governativa e impedir o regresso da direita ao poder?
Resta a dúvida contrária: havendo um fosso intransponível entre partidos social-democratas e os partidos que estão à sua esquerda, devem os últimos arredar-se do poder condenando-se a si próprios ao papel de resistência inútil, para sempre na oposição? Não estão assim a atirar o centro-esquerda para os braços da direita?
Não vale a pena ficar no confortável plano dos princípios. A esquerda deve medir cada um dos seus passos e cada uma das consequências das suas opções. Em Itália, sendo o regresso de Berlusconi um risco, a Refundação Comunista deve aguentar-se firme, tal como está a fazer a sua direcção, com um alto custo para a unidade do seu partido. O preço que a Refundação pagaria pelo regresso de Berlusconi ao poder por sua responsabilidade - pela segunda vez- seria tão alto que ela não só pode como vai aguentar isto tudo e muito mais. Sobretudo agora que se juntam ao albergue os democratas-cristãos de centro-direita que nem a sua agenda "fracturante" vão deixar de pé.
Mas seria o mínimo exigir dos restantes partidos da coligação (muitos deles com menor peso eleitoral que o PRC) respeito por este esforço. Ou, pelo menos, que se evitassem actos de pura provocação, esperando que apenas os outros estejam a altura das suas responsabilidades. Para ser possível a unidade, todos têm de estar preparados para compromissos que podem ter um preço junto dos seus eleitorados.
Dito isto, em situações normais (as que nunca ocorrem em Itália) os governos de unidade de esquerda são cada vez mais improváveis. Serão mais naturais os governos de bloco central. Concordam em política externa, em política social e em política económica. É normal que quem veja a democracia como um mero acto de gestão da alternância na continuidade discorde de mim, mas os governos de bloco central não são compostos por forças alternativas. O entendimento ideológico é obviamente mais fácil. E faz-se, sem grandes dramas, quando a urgência o exige.
O problema desta constatação é que, perante ela, a esquerda fica condenada ao degredo. E tendo o poder como uma miragem, não se sente na obrigação de construir um programa viável, fazer as alianças necessárias e abandonar a cartilha ideológica ou o populismo de circunstância. Condenada a receber ciclicamente o voto de protesto mais não pode ambicionar do que ser uma força de protesto.
Para não viver o dilema de ou trair o seu programa ou a tornar-se numa força de oposição sem futuro, a esquerda tem de saber construir a sua credibilidade programática, recusar a inflexibilidade ideológica e ter, a cada momento, a inteligência táctica de encontrar aliados. Participar ou não participar em governos, conforme o momento e, claro, o governo, sem preconceitos ou juras de pureza. E, talvez isto seja mesmo o mais importante, cada um saber que será parte da alternativa que ajudar a construir e não obrigatoriamente o seu principal protagonistas. Isto, se a esquerda quer que alguém acredite que ao votar nela está a ajudar a construir alguma coisa. E tem de ganhar os desiludidos do centro, integrando as suas preocupações e os seus contributos. Quem julga que basta somar descontentamentos deveria saber que o descontentamento que não encontra solução acaba sempre em frustração. E que a frustração é o mais perigoso vírus que pode atacar a democracia.
Por isso, a resposta às repetidas dúvidas sobre a disponibilidade da esquerda para a governabilidade é esta: depende. Depende do governo, das circunstâncias, do peso de cada um. De tudo. Mas a disponibilidade não pode ser tão pouca que o poder seja apenas uma projecto sempre adiado. Nem tanta que o programa político seja apenas um objecto decorativo. Sendo certo que um partido que não se vê a si próprio no poder não é um partido. É um hobby. E se só imagina no poder daqui a cem anos é pior que um hobby. É uma perda de tempo.