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Arrastão: Os suspeitos do costume.

É o povo e não as bombas

Daniel Oliveira, 01.02.11

 

 

O rei Abdullah II da Jordânia demitiu o Governo do primeiro-ministro Samir Rifal, num momento em que o país está imerso em protestos populares.

Mais de dois milhões manifestam-se nas ruas do Cairo.

Páginas na rede social Facebook, vários utilizadores no Twitter e fóruns de discussão na Web apelam à revolução na Síria

Parvo é quem não vê

Miguel Cardina, 01.02.11

 

Não tive a sorte de assistir ao concerto que na semana passada os Deolinda deram no Coliseu do Porto. Mas basta ver o vídeo para nos apercebermos que algo de significativo aconteceu. A dado momento, Ana Bacalhau anuncia que vai cantar uma música nova e não foi preciso chegarmos ao fim da canção para termos a certeza que nascera um hino. A comunhão entre a banda e o público mostrava que aquelas eram as palavras de uma inteira geração. De uma geração que estudou mas que não tem perspectivas, de uma geração que anseia por estabilidade familiar mas que vive enredada na precariedade, de uma geração que já não tem grandes cartilhas ideológicas mas que não permanecerá para sempre no desânimo e na apatia.

 

Houve quem dissesse que renascera a canção de intervenção. Talvez. No fundo, ela verdadeiramente nunca morreu. O campo musical português está cheio de exemplos de letras combativas, e não é preciso sequer remetermo-nos para o domínio do hip-hop. Veja-se por exemplo a poética artesanal cultivada por Pedro e Diana. Mas o que ali aconteceu foi diferente: a insatisfação de uma parte considerável da sociedade tinha encontrado maneira de se dizer. E se isso também não é novo - há quanto tempo andamos a falar de precariado, de falsos recibos verdes, de geração bloqueada? - aquele momento trouxe alguma coisa que faltava: uma linguagem simples para falar de experiências comuns.

 

A política não se confunde com uma canção, mas os sentimentos de pertença colectiva constroem-se de várias maneiras. E o que os Deolinda fizeram foi dar voz a esse sentimento. De repente, a vida adiada de cada um e de cada uma tornou-se parte de um todo. O reconhecimento desse "mundo tão parvo em que para ser escravo é preciso estudar" exorcizou um pouco a realidade. Chega? Não chega. Mas naquela noite a impotência morreu um bocadinho mais.

É a crise, é a ditadura, são pessoas

Daniel Oliveira, 01.02.11

 

É o pecado do orientalismo: vê o mundo árabe com os olhos das angústias do Ocidente. E é a partir delas que analisa as motivações dos árabes. A forma mais simples desta miopia resume-se na catalogação dos próprios países, escolhendo-se dois modelos para falar de todos: o da Turquia e o do Irão. De um lado a laicidade ocidentalizada, do outro o fanatismo religioso.

 

Além de se esquecer que nenhum destes países é árabe, o que, culturalmente, não é um pormenor, esquece-se que, sendo a Turquia uma democracia, não o é ainda plenamente. E que, sendo o Irão uma ditadura, não o é ainda plenamente. O poder dos militares, a questão curda e a repressão à liberdade religiosa deixam a Turquia a um passo da democracia plena. E no Irão há poderes partilhados e fações que se vão digladiando.

 

Mas esquece-se de outro pormenor: que a Turquia é exatamente um excelente exemplo de como os perigosos islamistas, no poder, se podem integrar no jogo democrático e transformarem-se numa versão muçulmana da democracia-cristã conservadora. E esquece-se que se tratam de dois países com uma organização social bem diferente da dos países árabes, sem a importância dos clãs e com classes médias fortes.

 

Esta tendência para arrumar em gavetas simples os países árabes (e para os confundir com os restantes países muçulmanos) nasce de um equívoco: que a laicidade do Estado e a questão religiosa são o alfa e o ómega da vida política nos países islâmicos. E que é a relação dos seus regimes com os EUA e com a Europa que determina a sua natureza democrática e liberal.

 

A divisão entre conservadores, de um lado, e ocidentalizados e amigos, do outro, não faz qualquer sentido. A Arábia Saudita e o Iémen são conservadores e pró-americanos, a Síria é laica e anti-americana. Até porque essas relações, como acontece frequentemente com aqueles países, vive da ambiguidade. Grande parte destes regimes dedica-se ao jogo do gato e do rato nas suas relações com o Ocidente. São os seus interesses regionais - ou a necessidade de ver as suas ditaduras protegidas por outras potências - e não qualquer proximidade cultural ou política ao Ocidente que determinam as suas alianças. Mais: não está escrito em lado nenhum que a democracia naqueles países levará à sua laicização. Na Palestina, foi através de eleições que os radicais religiosos chegaram ao poder. Sem elas, nunca se teriam sequer aproximado dele.

 

Não é a questão religiosa ou a relação com o Ocidente que leva a estas revoltas. Foi a crise económica e social, associada a décadas de repressão, que trouxe para a rua o descontentamento latente contra ditaduras incompetentes. O que acontecerá no Egito depende de quem tenha força para surgir como alternativa num vazio de poder. O que está em causa no Egito não é se se transformará num Irão ou numa Turquia. É se será uma democracia que ajude a tirar os egípcios da crise em que se encontram. Basta recordar: foi a crise económica que levou os fanáticos religiosos iranianos ao poder, com apoio popular. É ela que os pode tirar de lá, porque perderam esse apoio.

 

No Egito há a oposição laica e a Irmandade Muçulmana. Mesmo a ideia de que estarão obrigatoriamente em campos diferentes é simplista. Não o estão em vários países árabes. E a Irmandade Muçulmana não são os taliban. Trata-se de uma força política com implantação social que poderá estar disponível (e tem dado sinais claros disso) para entrar no jogo democrático - sabendo que está longe de ter apoio para chegar ao poder. Assim foi na Turquia, com o AKP, assim está a ser no Líbano, com a aliança que inclui o Hezbollah. E assim poderia ter sido na Palestina, não fosse a estupidez internacional de isolar o Hamas.

 

No Egito, o que contará no fim são três coisas: a força dos protestos, a posição dos militares, que ali é determinante e que, ao contrário da polícia, não tem sido hostil aos manifestantes, e a capacidade das oposições - religiosa e laica - se entenderem.

 

Aconteça o que acontecer, o Egito não será um Irão ou uma teocracia. Poderá vir a ser uma democracia musculada, poderá vir a ser uma democracia plena ou poderá, depois de um banho de sangue ou de mais uma ajudinha dos aliados de sempre de Mubarak, ficar tudo na mesma. Mas o Egito é o Egito e é o desespero social dos jovens e as alianças políticas que vão determinar o que se segue. Assim como a Jordânia é a Jordânia e a relação com os milhões de refugiados palestinianos é indissociável do que ali vá acontecer. E o Iémen é o Iémen e o facto de ser o segundo país mais pobre do Mundo é o que mais conta. Ou seja, os países árabes não são apenas países muçulmanos, fundamentalistas ou laicos. Há mais mundo para lá dos nossos medos. E, coisa extraordinária, tal como nós, no fim, é a fome, o desemprego, a crise e a vontade do povo escolher o seu próprio destino que determinam o futuro das ditaduras. Os egipcios, jordanos ou iemenitas são pessoas, com as aspirações normais de todos os seres humanos, e não apenas personagens das nossas fantasias.

 

Publicado no Expresso Online

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