É o pecado do orientalismo: vê o mundo árabe com os olhos das angústias do Ocidente. E é a partir delas que analisa as motivações dos árabes. A forma mais simples desta miopia resume-se na catalogação dos próprios países, escolhendo-se dois modelos para falar de todos: o da Turquia e o do Irão. De um lado a laicidade ocidentalizada, do outro o fanatismo religioso.
Além de se esquecer que nenhum destes países é árabe, o que, culturalmente, não é um pormenor, esquece-se que, sendo a Turquia uma democracia, não o é ainda plenamente. E que, sendo o Irão uma ditadura, não o é ainda plenamente. O poder dos militares, a questão curda e a repressão à liberdade religiosa deixam a Turquia a um passo da democracia plena. E no Irão há poderes partilhados e fações que se vão digladiando.
Mas esquece-se de outro pormenor: que a Turquia é exatamente um excelente exemplo de como os perigosos islamistas, no poder, se podem integrar no jogo democrático e transformarem-se numa versão muçulmana da democracia-cristã conservadora. E esquece-se que se tratam de dois países com uma organização social bem diferente da dos países árabes, sem a importância dos clãs e com classes médias fortes.
Esta tendência para arrumar em gavetas simples os países árabes (e para os confundir com os restantes países muçulmanos) nasce de um equívoco: que a laicidade do Estado e a questão religiosa são o alfa e o ómega da vida política nos países islâmicos. E que é a relação dos seus regimes com os EUA e com a Europa que determina a sua natureza democrática e liberal.
A divisão entre conservadores, de um lado, e ocidentalizados e amigos, do outro, não faz qualquer sentido. A Arábia Saudita e o Iémen são conservadores e pró-americanos, a Síria é laica e anti-americana. Até porque essas relações, como acontece frequentemente com aqueles países, vive da ambiguidade. Grande parte destes regimes dedica-se ao jogo do gato e do rato nas suas relações com o Ocidente. São os seus interesses regionais - ou a necessidade de ver as suas ditaduras protegidas por outras potências - e não qualquer proximidade cultural ou política ao Ocidente que determinam as suas alianças. Mais: não está escrito em lado nenhum que a democracia naqueles países levará à sua laicização. Na Palestina, foi através de eleições que os radicais religiosos chegaram ao poder. Sem elas, nunca se teriam sequer aproximado dele.
Não é a questão religiosa ou a relação com o Ocidente que leva a estas revoltas. Foi a crise económica e social, associada a décadas de repressão, que trouxe para a rua o descontentamento latente contra ditaduras incompetentes. O que acontecerá no Egito depende de quem tenha força para surgir como alternativa num vazio de poder. O que está em causa no Egito não é se se transformará num Irão ou numa Turquia. É se será uma democracia que ajude a tirar os egípcios da crise em que se encontram. Basta recordar: foi a crise económica que levou os fanáticos religiosos iranianos ao poder, com apoio popular. É ela que os pode tirar de lá, porque perderam esse apoio.
No Egito há a oposição laica e a Irmandade Muçulmana. Mesmo a ideia de que estarão obrigatoriamente em campos diferentes é simplista. Não o estão em vários países árabes. E a Irmandade Muçulmana não são os taliban. Trata-se de uma força política com implantação social que poderá estar disponível (e tem dado sinais claros disso) para entrar no jogo democrático - sabendo que está longe de ter apoio para chegar ao poder. Assim foi na Turquia, com o AKP, assim está a ser no Líbano, com a aliança que inclui o Hezbollah. E assim poderia ter sido na Palestina, não fosse a estupidez internacional de isolar o Hamas.
No Egito, o que contará no fim são três coisas: a força dos protestos, a posição dos militares, que ali é determinante e que, ao contrário da polícia, não tem sido hostil aos manifestantes, e a capacidade das oposições - religiosa e laica - se entenderem.
Aconteça o que acontecer, o Egito não será um Irão ou uma teocracia. Poderá vir a ser uma democracia musculada, poderá vir a ser uma democracia plena ou poderá, depois de um banho de sangue ou de mais uma ajudinha dos aliados de sempre de Mubarak, ficar tudo na mesma. Mas o Egito é o Egito e é o desespero social dos jovens e as alianças políticas que vão determinar o que se segue. Assim como a Jordânia é a Jordânia e a relação com os milhões de refugiados palestinianos é indissociável do que ali vá acontecer. E o Iémen é o Iémen e o facto de ser o segundo país mais pobre do Mundo é o que mais conta. Ou seja, os países árabes não são apenas países muçulmanos, fundamentalistas ou laicos. Há mais mundo para lá dos nossos medos. E, coisa extraordinária, tal como nós, no fim, é a fome, o desemprego, a crise e a vontade do povo escolher o seu próprio destino que determinam o futuro das ditaduras. Os egipcios, jordanos ou iemenitas são pessoas, com as aspirações normais de todos os seres humanos, e não apenas personagens das nossas fantasias.
Publicado no Expresso Online