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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Quem é terrorista?

Daniel Oliveira, 25.02.11

 

Os ingleses chamavam aos independentistas irlandeses de terroristas. Salazar referia-se aos movimentos de libertação africanos como terroristas. Os britânicos diziam que os apoiantes de Gandhi eram terroristas. E também consideravam os sionistas terroristas. Os sionistas consideravam Arafat um terrorista. E também o Hezbollah. E até todos aqueles que criticam o comportamento de Israel na região. A Fatah diz que o Hamas é terrorista. Para o regime sul-africano Mandela era terrorista e até usou vários dos métodos de combate que hoje são claramente considerados habituais para terroristas. Como os sionistas em Israel, por exemplo. Entre outros argumentos, George W. Bush justificou a invasão do Iraque com as supostas relações do regime com terroristas. Os EUA achavam que Kadhafi era amigo de terroristas. Quando se abriu ao mercado internacional deixou de ser. Kadhafi avisa que os que o querem derrubar são terroristas.

 

Para os EUA os mujahedin que combatiam no Afeganistão eram libertadores, para os soviéticos eram terroristas. E os mesmos que eram "freedom fighters" no tempo dos soviéticos passaram a ser terroristas no tempo dos americanos. Para a população americana, composta por muitos descendentes de irlandeses, os repúblicanos da Irlanda do Norte são nacionalistas, para os britânicos são terroristas. Para os africanos o MPLA era um movimento patriótico, para o regime português era terrorista. Para todo o Mundo Mandela era um defesor dos direitos cívicos, para os defensores do Apartheid não passava de um terrorista. O Ocidente considera os independentistas curdos do Iraque heróis da democracia e os independentistas curdos da Turquia terroristas.

 

A palavra terrorista sempre serviu para tudo. Poderia servir para definir um método de guerra: espalhar o terror indiscriminado. Mas se assim fosse, teriamos de incluir na lista o terrorismo de Estado usado em guerras convencionais: em Angola, no Vietname, no Iraque, na Chechénia, em Gaza, no Líbano e em quase todas as outras. Poderia servir para definir aqueles que usam os métodos da guerra assimétrica: a falta de meios é compensada pelo uso de ataques não convencionais. Mas se assim fosse, quase todos os movimentos de guerrilha urbana, onde estão incluidos vários os movimentos que fundaram vários Estados que temos por democráticos - a República da Irlanda ou Israel, por exemplo -, teriam sido terroristas. Até a resistência francesa aos nazis seria terrorista. Ou podemos considerar que terroristas são os que combatem em forças militares não regulares. E aí, praticamente todos os que combatem sem estarem integrados em forças armadas de um Estado são terroristas.

 

Na verdade, a palavra terrorista não define grande coisa a não ser a simpatia ou antipatia que sentimos por cada movimento armado. Há uma posição coerente, que é a do pacifismo radical: só a não-violência abdica do terror, só ela se opõe de forma clara ao terrorismo. Aquela que reconhece que todas as formas de guerra têm, entre as seus técnicas de combate, o uso do medo e do terror como forma de impor a sua vontade, seja essa vontade justa ou injusta. Claro que daqui não pode resultar o relativismo absoluto: matar milhões de judeus em câmaras de gás não é o mesmo que provocar algumas mortes num bombardeamento; atirar dois aviões contra um edifício no centro de uma cidade não é mesmo que disparar um rocket para o outro lado da fronteira. Em que ponto fica exactamente o terrorismo? Nunca encontrei uma definição neutra . E, desde o 11 de Setembro de 2001, a palavra banalizou-se de tal forma que já não parece corresponder a mais do que uma forma de "terrorismo" verbal (cá está o uso indiscriminado). Foi a partir dela que todos os atropelos aos direitos cívicos e às liberdades individuais e políticas se foram fazendo neste início de século. É a vantagem das palavras brutais com objecto inpreciso. Ela própria ajuda a criar o terror suficiente para o inaceitável poder ser aceite.

 

O facto de um ditador ex-financiador de movimentos considerados terroristas ter usado a palavra no momento em que a sua queda parece eminente tem uma enorme utilidade: mostrar a inutilidade da própria palavra e criar o hábito de, antes de se colar o rótulo, analisar as motivações e os métodos de cada movimento político sem comprar pacotes completos. E assim concluir que talvez nem todos islamistas sejam terroristas, apesar de serem extremistas, o que já não é grande elogio. Que nem todos os que se opõem aos regimes que apoiamos são terroristas. Que, coisa extraordinária, nem sequer todos os que se opõem à democracia e à liberdade são terroristas. E, acima de tudo, que as listas europeias, americanas ou seja de quem for de organizações terroristas não valem uma pevide. Que aqueles que são terroristas para uns são heróis para outros e que até os terroristas do presente passarão a ser vistos como heróis no futuro pelas mesmíssimas pessoas.

 

Todos somos antiterroristas. Até os terroristas acham que são. A questão é outra. É saber quanto vale uma vida para quem combate. E aí, meus amigos, suspeito que valha tanto para muitos dos que nos habituámos a chamar de terroristas como para outros que vestem uniformes mais respeitáveis.

 

Publicado no Expresso Online

Bring them on, baby

Sérgio Lavos, 24.02.11

alguns que gostam de se esquecer que morreu mais gente ao longo da intervenção americana no Iraque (e, já agora, no Afeganistão) do que em qualquer revolução que  possa surgir no mundo árabe, mesmo tratando-se, neste caso, de um psicopata assassino como Khadafi e ressalvando que uma vida perdida já é muito, demasiado. Os que estão a morrer em nome da liberdade na Líbia não precisam de amigos destes, certamente. E é tão fácil ser marine sentado à frente de um ecrã de computador. Os cowboys de sofá voltaram. Já cá faltavam.

Notícias da frente vermelha

Sérgio Lavos, 24.02.11

 

No Benfica começa-se a sentir uma estranha tendência, que poderá trazer dissabores no futuro, para finalizar jogadas com "nota artística elevada" (no linguajar de JJ). Deveria haver um credo nas grandes equipas: não humilharás os teus adversários - mesmo que eles peçam para ser humilhados. E uma finta a mais pode ser um risco, como pode comprovar Carlos Martins no final do jogo; trocar duas vezes as voltas a um matulão ex-jugoslavo cujo nome eu não quis decorar dá direito a um golpe de karaté. Lições que não se devem esquecer.

 

E o Benfica também não deverá esquecer a maneira correcta de poder desfrutar da oportunidade de Gaitán tentar mais um chapéu ou Salvio rematar sem deixar cair a bola: a afamada pressão alta, especialidade apurada por Mourinho e imitada por JJ neste Benfica. A meio da segunda parte, distraí-me durante alguns segundos, julgando que o Estugarda iria partir para o ataque, e ia perdendo o segundo golo do Benfica depois de um roubo de bola no meio-campo e de uma finta demasiado perfeita de Jara ao defesa esquerdo alemão. Há, claro, hesitações. Dúvidas. Erros. Mas a suspensão da descrença em relação à falibilidade humana apenas se aceita em alguns jogos de equipas de outro mundo. O Benfica é deste mundo, porque não pode ter melhores jogadores do que tem. Mas sim, o futebol "lindo" do Benfica é resultado do aproveitamento máximo dos jogadores que podem actuar, o que justifica em parte as debilidades da primeira parte da época. Os substitutos dos melhores da época passada demoraram seis meses a compreender as ideias de Jesus, e neste momento são o motor da equipa, levantando deste modo o véu sobre a funcionamento do sistema de jogo escolhido: ele depende do equilíbrio precário entre ataque e defesa que os dois médios centro/alas podem trazer. Gaitán aprendeu a defender e, supreendentemente, corre mais rápido com bola do que Di Maria (ou pelo menos com maior controlo) e Salvio percebeu que pode arriscar a jogada um para um no ataque sem que a equipa perca defensivamente - e neste aspecto, Javi Garcia continua a ser essencial (e Airton só não é porque tem o lugar tapado). 

 

Voltando à questão da humilhação, gostei de ver o Benfica jogar apenas com dez, durante mais de meia parte, contra o Sporting. Depois do Porto, parece-me que se poderá manter a coerência arbitral nos jogos contra os grandes que se seguem: golo nos primeiros quarenta e cinco minutos, eficácia defensiva e desnorte quase patético da equipa com mais um jogador na etapa complementar. Paulo Sérgio deveria ter visto o vídeo do Porto-Benfica da Taça; e só por este deslize merece o despedimento (como se o resto não fosse mais do que suficiente).

 

*É claro que eu bem gostaria de gostar de ver o Sporting no fundo do poço. A maioria dos sportinguistas que eu conheço mereceria este desprezo; é a maioria que se diverte mais com as escassas derrotas do Benfica (é verdade, empates não temos há quase um ano) do que com as parcas vitórias do Sporting. Mas não gosto, não consigo. O desvario total que tomou conta do clube de Alvalade não me traz felicidade, nem conforto (bom, talvez algum gozo culpado). Arribem depressa, que isto a dois tem menos piada.

O argumento da força ou quando a democracia vem depois da decisão

Daniel Oliveira, 24.02.11

Perante este texto do meu camarada Luís Fazenda, onde é feito um desafio para a apresentação de moções à próxima convenção do Bloco, com destinatário evidente e num apelo a uma clarificação interna, escrevi uma resposta. Como o desafio interno foi feito no esquerda.net, enviei o meu texto para o mesmo lugar. A resposta veio do secretariado do partido, que me recordou que o portal não costuma ser usado para polémicas internas e decidiu publicar o meu texto no site interno do Bloco, como contributo para a Convenção, publicação que agradeci, esperando que futuros desafios internos sejam publicados no mesmo lugar. Tencionava publicar o meu texto apenas no esquerda.net. Como assim não aconteceu, ele também é publicado aqui. E esta explicação serve apenas para o justificar. Voltando a repetir o que já escrevi no Arrastão: este texto apenas me vincula a mim próprio e a mais nenhum dos membros do Arrastão, alguns deles militantes e dirigentes do Bloco e vários com posições diferentes das minhas na matéria em debate. Feito o esclarecimento, segue o texto em causa:

 

"Escreveu o camarada Luís Fazenda, a propósito das críticas feitas à apresentação de uma moção de censura: 'Agora que se iniciou o processo da convenção nacional talvez não fosse desejar muito esperar notícia das moções que se apresentem, da qualidade do argumentário, da representatividade de que dispõem. Quem quer debate geral no partido recolhe 20 assinaturas e vem a jogo. É óptima a discussão aberta entre opiniões contrárias de bloquistas, mesmo quando tem lugar na tv ou nos jornais. No entanto, quando os instalados "comentadores" falam do Bloco de Esquerda como um todo, e até alegam crises internas (diabo!) convém perceber, é o mínimo, o peso das coisas e das pessoas. Os media não dão cartão de eleitor no Bloco, como se viu bem pelo "caso" Joana Amaral Dias. Felizmente há luar, mesmo quando passam cometas. Quem disse que o Bloco não é um partido diferente?'

 

Apenas li críticas públicas à moção de censura de pessoas ligadas às listas minoritárias com presença na Mesa Nacional, de Rui Tavares e de mim próprio. Como os primeiros já se mediram em votos na última convenção e o eurodeputado não é militante do Bloco de Esquerda, fico com a estranha sensação de ser um dos destinatários deste desafio. E sobre esse desafio tenho apenas quatro coisas a dizer:

 

1 – Que fico satisfeito por o camarada Luís Fazenda ter finalmente dado a cara pela moção de censura. Sendo membro da Comissão Política e deputado não pude deixar de sentir a sua ausência pública neste importante combate que o partido tem pela frente. Pena que se tenha ficado pelo Esquerda. Mas estou seguro que no próximo mês a direcção do Bloco lhe dará a mesma tarefa que deu aos camaradas Francisco Louçã, Miguel Portas, Ana Drago, João Semedo e José Manuel Pureza. Porque nos momentos difíceis o empenho de todos os dirigentes é fundamental.

 

2 – Que esta moção teve uma excelente oportunidade de ir a votos: a reunião da última Mesa Nacional, órgão responsável pela direcção política do partido entre convenções. Não deixa de ser extraordinário que depois do atropelo às regras democráticas do partido, que levaram a Comissão Política a decidir um acto desta importâcia táctica e estratégica três dias depois da reunião de uma Mesa, sem que sequer o tema fosse abordado na mesma, se venham fazer desafios à intervenção democrática dos militantes nesta matéria. Digamos que o apelo vem tarde demais e devia começar por ser feito à própria comissão política. Como delegado à última convenção, elegi apenas a Mesa Nacional. Era ela, e não a próxima convenção, que devia ter sido chamada a decidir. Não o foi. Apelos para recolher vinte assinaturas para discutir uma decisão que já foi tomada são pelo menos bizarros. O camarada Luís Fazenda quer medir a força da sua posição depois de uma decisão ser tomada mas não achou necessário medir argumentos antes de tomar a decisão. Por mim, prefiro a clareza da democracia interna a lutas de facções. E se houve quem tomasse posições públicas talvez seja porque a direcção achou que o debate interno era dispensável

 

3 – Que não me recordo de, na última convenção do partido, ter aprovado nenhum documento que apontasse para a apresentação de uma moção de censura desta natureza. E por isso não consigo perceber quando terá ido esta opção a votos. A não ser, claro, que esta moção de censura tenha como objectivo uma clarificação interna e que este estranho parágrafo do camarada Luís Fazenda, que substitui a força do argumento pelo argumento da força, apenas queira clarificar essa vontade de separação de águas. Só assim se compreende que o camarada veja a critica a este gesto político como razão bastante para a apresentação de uma moção contra a da lista da direcção. E se é esse o objectivo, devolvo o desafio: que o camarada Luís Fazenda avance com teses próprias, explicitando essa clarificação política interna que aparentemente deseja.

 

4 – Não fazia ideia que a camarada Joana Amaral Dias (que até apoiou publicamente esta decisão do partido) tinha um “peso” diferente de qualquer outro militante. Se se trata de um “cometa”, será tanto como o camarada Luís Fazenda ou qualquer membro do partido. O Bloco não tem donos nem notáveis e as críticas de qualquer camarada, acertadas ou não, valem exactamente o mesmo. A referência à camarada Joana Amaral Dias, completamente a despropósito do tema, e sabendo-se que nunca a direcção assumiu qualquer tipo de problema com esta militante, é no mínimo deselegante. De resto, como nenhum órgão eleito em convenção foi auscultado nesta matéria, o peso de cada posição sobre o assunto é uma incógnita e o camarada Luís Fazenda limita-se a partir do princípio que a posição que defende é maioritária. É sempre um mau princípio num partido democrático."

Revolta e esperança

Daniel Oliveira, 24.02.11

A crise económica provocou um movimento de revolta nos países árabes. Não se tratou, como alguns românticos gostam de pensar, de uma revolta espontânea. As revoltas que vencem nunca são. No Egito, teve uma direção política que a preparava há pelo menos três anos. No caso, jovens educados e apostados num movimento assumidamente não-violento. Contaram com o descontentamento que resultou da situação económica? Sim. Com o facto de, vivendo numa ditadura, não haver outra forma de protesto? Claro. De, com um desemprego galopante e a ausência de Estado Social, os egípcios não terem nada a perder? Provavelmente. Mas contaram, antes de mais, com a única coisa que constrói movimentos em tempos de crise: a esperança, essa palavra maldita para os cínicos. Não tinham um programa, mas tinham um objetivo possível: o fim da ditadura. E um inimigo claro: Mubarak. A revolta só constrói alguma coisa quando sabe contra quem e para onde vai. Os egípcios não estavam desesperados. Eles acreditaram que podia ser diferente.

 

E essa, entre tantas outras, é a diferença entre o que se passa nos países árabes e na Europa. Somos mais ricos e temos mais a perder, é verdade. Mas é mais do que isso: estamos desesperados. Não sabemos quem é o inimigo ou então ele é demasiado etéreo para cair. E não acreditamos que pode ser diferente. A revolta que se sente nas conversas públicas e privadas não se vai transformar num movimento coletivo porque lhe falta um horizonte e um adversário com rosto. Quem julga que este será um momento cheio de enormes lutas sociais e de oportunidades para a esquerda se afirmar engana-se. Sim, haverá uma minoria mais politizada que irá à luta. Mas para a grande maioria o desespero traduz-se em medo. Medo da crise, de perder o emprego, das taxas de juro, da dívida, da instabilidade, de tudo. Não é por acaso que o discurso do poder sobre a crise aposta no medo. Porque resulta.

 

A radicalização, nestes períodos, não é apenas ineficaz. Ela alimenta o medo que devia combater. Mas, acima de tudo, ela isola os que querem dirigir uma oposição que não aposte apenas na alternância. É o populismo autoritário de quem promete 'pôr o país na ordem' que conquista apoios nestes momentos. É a situação e não a oposição que ganha nestas alturas.

Nada a fazer? Pelo contrário. Há uma forma de vencer o desespero: dar esperança. E para isso é preciso que as pessoas acreditem que há alternativas e que elas podem vencer. Ninguém se arrisca a troco de coisa nenhuma. Duas condições para que isso seja possível: credibilidade no que se propõe e uma ação política que se dirija a uma base social maioritária. Programa exequível e alianças alargadas. Exatamente o oposto da radicalização.

 

Não, não estou a falar de flores. Estou a falar do Bloco de Esquerda, do PCP e dos muitos eleitores e militantes do PS que ainda acreditam que o poder pode ser mais do que gestor da desgraça. Estou a falar dos sindicatos, dos movimentos sociais, de quem tem espaço na comunicação social. Na radicalização podemos sentir-nos mais fortes, mas é uma ilusão. Porque ninguém acredita que podemos vencer, fica a faltar a esperança. E, sem ela, o medo acaba sempre por levar a melhor.

 

Texto publicado na edição do Expresso de 19 de fevereiro de 2011

O discurso do abutre

Daniel Oliveira, 24.02.11

 

O ministro dos Negócios Estrangeiros avisou que a situação nos países muçulmanos é explosiva. Demos por isso. Mais explosiva do que a quando da queda do Muro de Berlim. Talvez. Que pode vir aí o fundamentalismo que apoia terroristas. Seria talvez mais sábio saudar o facto de, ao contrário de todas as previsões dos cínicos, as revoltas terem sido dirigidas por democratas laicos. Se dependesse da forma como a Europa lidou com a região, nada teria mudado.

 

Mas Luís Amado fez mais do que dizer o obvio: explicou que aquelas ditaduras fizeram muito pela segurança europeia. Agradece-se a franqueza, mas, quando vemos um banho de sangue num país onde um louco varrido governa há quarenta anos ao sabor dos seus caprichos delirantes, só me ocorre uma palavra para qualificar estas declarações: nojo.

 

Não está sozinho, o senhor. Na televisão, o secretario de Estado do Turismo não cabe em si de contente. A instabilidade, as mortes e os motins no Egito e na Tunísia são excelentes para o turismo português. De novo, sinto asco.

 

Tenho a certeza que a muitos portugueses acham tudo isto normal. O egoísmo é instintivo e as lágrimas pelos outros ficam para filmes num serão bem passado e campanhas de solidariedade com data marcada. Sou dos que acha que a política não se pode limitar à pura gestão de interesses, mesmo que os interesses sejam os nossos. Que ela tem uma dimensão moral. E que os países e os povos também se distinguem pela elevação moral do seu comportamento.

 

Não espero nem quero que Portugal lamente os turistas que decidem mudar de destino e compreendo que em tempos de crise os que vivem do setor fiquem satisfeitos com o facto. Não espero nem quero que a Europa prefira a insegurança destes momentos à segurança do que é previsível. Mas espero que os dirigentes políticos não se esqueçam da dimensão moral da sua função. E que saibam que a desgraça de um povo não se festeja e a liberdade de um povo não se lamenta. Que não há camas ocupadas em hotéis que paguem as vidas que se perderam nem segurança que valha décadas de loucura de meia dúzia de déspotas. Que não há discurso cínico aceitável quando a força aérea de Kadhafi bombardeia manifestantes.

 

Uma funerária enterra os mortos mas não festeja uma catástrofe. Um médico trata de um doente mas não lamenta a saúde. Um militar vive da guerra mas deve esperar a paz. E se até os que tratam dos seus negócios têm a obrigação de não esquecer a sua primeira condição - a de humanos -, esperava-se que políticos não a esquecessem. A imagem que, nestas declarações, estes governantes dão do país é a de uma Nação de abutres e de gente sem espingarda dorsal. E isso envergonha-me.

 

Publicado no Expresso Online

Mudem de Rumo

Andrea Peniche, 23.02.11

 

A formiga no carreiro
vinha em sentido contrário
caiu ao Tejo
ao pé de um septuagenário

Lerpou trepou às tábuas
que flutuavam nas águas
e do cimo de uma delas
virou-se para o formigueiro
mudem de rumo
já lá vem outro carreiro

A formiga no carreiro
vinha em sentido diferente
caiu à rua
no meio de toda a gente

buliu abriu as gâmbeas
para trepar às varandas
e do cimo de uma delas
virou-se para o formigueiro
mudem de rumo
já lá vem outro carreiro

A formiga no carreiro
andava à roda da vida
caiu em cima
de uma espinhela caída

furou furou à brava
numa cova que ali estava
e do cimo de uma delas
virou-se para o formigueiro
mudem de rumo
já lá vem outro carreiro