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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Os cínicos que aprendam: a liberdade é possível em qualquer lado

Daniel Oliveira, 23.02.11

Uma a uma, vão caíndo as ditaduras árabes às mãos dos seus povos. Os ditadores ainda tentam lançar um último aviso: vêm aí teocracias. A ver se pega nos seus aliados - antigos, como os de Ben Ali ou Mubarak, ou mais recentes, como os de Kadhafi, que depois de anos com direito a estatuto de inimigo número um do Ocidente, passou a ser tolerado quando passou a estar diponível para bons negócios. E, apesar de estarmos perante revoltas laicas, muitos europeus e americanos compram facilmente o susto. Percebe-se: habituados a aceitar a cumplicidade com déspotas como um mal menor, um guião alternativo não encaixa na propaganda.

 

Esta é a tese específica para os países muçulmanos: ou a ditadura laica ou o islamismo terrorista. Há outra, mais geral, que tem muitas décadas: a democracia e a liberdade não têm futuro fora da nossa civilização. O problema é que, em democracia, os governos estão sujeitos à vontade popular. E a vontade popular dos outros pode não coincidir com os nossos interesses. É bem mais seguro dar uma ajuda a ditadores. Ficam dependentes de um apoio externo que compense a sua falta de legitimidade interna. Foi, aliás, essa a razão que levou as antigas potências coloniais a entregar o poder a minorias religiosas em países árabes: a xiitas na Síria sunita, a sunitas no Iraque xiita, a cristãos no Líbano muçulmano. Minorias que recebem o poder precisam de apoio externo para o manter.

 

A ideia de que a democracia e a liberdade não podem vingar fora da Europa e dos EUA tem barbas. Ela foi largamente desenvolvida sobre a África do Sul. Vinha aí um banho de sangue. Foi desmentida. Foi aplicada à América Latina. Generais como ditadores era coisa que sempre iria acontecer. Mas valia que fossem "dos nossos". Hoje, a maioria dos países da América do Sul e da América Central são democracias em construção. E continua a ser defendida quando se fala da China. Se aquilo vira uma democracia vai rebentar por todos os lados.

 

"Se se podem deitar abaixo ditaduras na Europa - primeiros os fascistas, depois os soviéticos - por que não se podem derrubar ditadores no grande mundo árabe muçulmano?", pergunta Robert Fisk, que sabe do que fala. Não sabemos se as coisas correrão bem. Mas é claro que podem.

 

Há dois mitos que estas revoltas voltam a desmentir: que há povos que têm uma propensão natural para viver debaixo do jugo do autoritarismo e que as democracias ocidentais, por o serem, querem ver esse seu modelo de organização política e social espalhado pelo Mundo. Nem a liberdade é um valor intrinsecamente ocidental nem os regimes democráticos põem o seu amor à liberdade à frente dos seus interesses políticos e económicos. As revoltas no Mundo árabe significam, antes de mais, uma derrota para os ditadores e os seus aliados externos. Mas são, também, uma derrota para os cínicos. Provam que o cinismo não é sinal de inteligência. É sinal de preguiça intelectual.

 

Publicado no Expresso Online

Norman Bates

Sérgio Lavos, 23.02.11

 

No meio do delírio alucinado que parece ter sido o discurso de Khadafi, há razões para acreditarmos no poder do non sense como arma de desconstrução de um discurso. Khadafi acha que não poderá empurrado da cadeira do poder simplesmente porque não é presidente; se não é presidente, não será deposto. Mais, arriscando um salto lógico digno de Wittgenstein, Khadafi assume o papel de líder da revolução que se prepara para o apear do lugar onde está. Resumindo: ele é simultaneamente vítima e carrasco, é o revolucionário bombardeado nas ruas por aviões e é o facínora demente que dá ordem para disparar sobre a multidão. O "guia da revolução" que não tem posto oficial para se demitir lá acaba por admitir que uns jovens, sob o efeito de drogas, provocaram algum sobressalto, mas reafirma-se como lança contra o poder do Ocidente. Psicopatia? Esquizofrenia? Ou um calculismo patético e perigoso? Khadafi pode viver num mundo muito seu, mas sabe que a contestação está sobretudo - e para já - a acontecer nos países cujos líderes foram beneficiando da complacência ou do apoio claro do Ocidente, a teoria que todos conhecemos de que mais vale um ditador amigo de que um democrata inimigo. A massa revoltosa na Tunísia e no Egipto clamava contra regimes opressivos, é certo, mas também contra a presença sombria dos interesses americanos e europeus nestes países. E assim também sucede no Bahrein, no Iémen e em Marrocos. O grande erro de Khadafi terá sido a reentrada, ensaiada na última década, na normalidade cínica da diplomacia internacional, as recepções de luxo em países ocidentais, a abertura do país ao investimento estrangeiro. O recuo tentado, apesar de parecer enfermo de um ridículo desarmante, será o mais lúcido passo que Khadafi poderá dar. E sabemos o que isto pode significar: se a resistência não desistir, a carnificina. Sob a capa do mais (aparentemente) legítimo dos terrores: o revolucionário.

São revoltas seculares - porque só se fala das religiões?

Andrea Peniche, 22.02.11

Artigo de Robert Fisk, roubado ao esquerda.net

 

Se se podem deitar abaixo ditaduras na Europa - primeiros os fascistas, depois os soviéticos - por que não se podem derrubar ditadores no grande mundo árabe muçulmano? E - só por um instante, pelo menos - deixem a religião fora da discussão.

 

Mubarak alegou que os islamistas estariam por trás da Revolução Egípcia. Ben Ali disse o mesmo, na Tunísia. O rei Abdullah da Jordânia vê uma sinistra mão escura - da al-Qa'ida, da Irmandade Muçulmana, sempre mão islâmica - por trás da insurreição civil em todo o mundo árabe. Ontem, as autoridades do Bahrain descobriram a amaldiçoada mão do Hezbollah, ali, por trás do levantamento xiita. Onde se lê Hezbollah, leia-se Irão.

Por que, diabos, tantos intérpretes cultos, embora impressionantemente antidemocráticos, insistem em interpretar tão mal as revoltas árabes? Confrontados por uma série de explosões seculares - o caso do Bahrain não cabe perfeitamente nessa classificação - todos culpam os islâmicos radicais. O Xá cometeu o mesmo erro, só que ao contrário: confrontado com um óbvio levantamento islâmico, pôs a culpa nos comunistas.

 

Os infantilóides Obama e Clinton acharam explicação ainda mais esdrúxula. Depois de muito terem apoiado as ditaduras "estáveis" do Médio Oriente - quando tinham a obrigação de defender as forças democráticas -, resolveram apoiar os clamores por democracia no mundo árabe, justamente quando os árabes já estão tão absolutamente desencantados com a hipocrisia dos ocidentais, que não querem os EUA ao lado deles. "Os EUA interferem no nosso país há 30 anos, apoiando o governo de Mubarak, armando os soldados de Mubarak" - disse-me um estudante egípcio na praça Tahrir, na semana passada. "Agora, agradeceríamos muito se parassem de interferir, mesmo que a nosso favor." No final da semana, ouvi vozes idênticas no Bahrain. "Estamos a ser assassinados por armas dos EUA, disparadas por soldados bahrainis treinados nos EUA, em tanques fabricados nos EUA" - disse-me um médico na sexta feira. "E Obama, agora, quer aparecer como nosso aliado?"

 

Continua aqui.

Salto à vara

Daniel Oliveira, 22.02.11

 

Seria normal que uma figura pública que tem estado na berlinda por suspeitas de ter usado os seus contatos no Estado em benefício próprio tivesse todas as suas cautelas no seu comportamento público. Sobretudo quando usa serviços do Estado. Que, culpado ou inocente, evitasse confirmar a ideia de que não respeita as regras.

 

A denúncia de utentes de um centro de saúde, confirmada pela direcção daquele serviço, de que Armando Vara passou à frente de toda a gente porque tinha um avião para apanhar não tem grande importância. O que não falta neste País é gente conhecida ou anónima que, tendo algum contato ou poder, não perde a oportunidade de os usar para saltar por cima dos direitos dos outros. Espera-se que alguém que sabe que o pode fazer com especial facilidade tenha cuidados redobrados.

 

Mas irrelevante que seja, não deixa de ter a sua força simbólica. Armando Vara está a ser julgado. Julgado por abusar do seu poder e da sua influência de forma criminosa. Que, nas barbas de tantos que o podiam reconhecer, tenha confirmado a imagem que dele poderiam ter, apenas demonstra que alguns cidadãos sentem que um tratamento de favor lhes é sempre devido. Em graus bem diferentes, o que Vara fez naquele centro de saúde resulta do mesmo sentimento que poderá ter levado a envolver-se no caso Face Oculta: a ideia de que o que é de todos nós é um pouco mais dele do que nosso. E que com o poder vem um tratamento de privilégio.

 

Diga-se, em abono da verdade, que a culpa é coletiva. Sabe quem tem o mínimo de notoriedade que muitas vezes não precisa de procurar tirar benefícios da sua "fama" ou poder para os receber. Eles são-lhe oferecidos a cada minuto e, para ser tratado como os outros, tem de estar especialmente atento para recusar favores que não pediu. A cultura da esigualdade raramente é apenas de quem recebe o privilégio. Mas, neste caso, Vara não de limitou a receber um tratamento que não lhe era devido. Não se limitou a procurar esse tratamento. Exigiu-o. E parece ser um padrão.

 

Publicado no Expresso Online

 

Paulo Sérgio

Bruno Sena Martins, 22.02.11
Perante a destruição em volta, a tenacidade e constância emocional do treinador do Sporting merecem ser devidamente apreciadas. Mas sejamos francos, nenhum sortido de desastres obstaria tão completamente ao desenvolvimento de uns rudimentos do jogo (até o Octávio Machado os tinha, rudimentares é certo, mas tinha-os). Ideias que porventura revolucionariam a concepção de vida de Paulo Sérgio seriam, por exemplo, a opção por um núcleo de jogadores que pelas suas qualidades ou maior filiação num sistema de jogo pudessem aparecer como tendencialmente titulares, ou, ainda, um sistema de jogo que não dependesse tão dramaticamente da capacidade de Postiga interceptar os passes que os defesas fazem para a linha de fundo.

Os heróis do nosso tempo

Sérgio Lavos, 20.02.11

 

Mais de 200 mortos depois, os protestos chegam a Trípoli. A frieza dos números esconde algo que deveria servir de exemplo a quem vê de longe as revoltas que eclodiram nos países islâmicos, o heroísmo de quem luta sem armas contra um regime totalitário. O mais difícil ainda está para vir, e não falo do período pós revolucionário nos países libertos, mas sim das ditaduras mais sanguinárias, as que ainda faltam cair. Khadafi, o antigo revolucionário transvestido de líder tribal, terrorista perdoado pelo Ocidente e apaparicado por economias mais interessadas no petróleo líbio do que em algo tão vago como direitos humanos ou democracia, não hesitará em reprimir a vaga que agora começa. Poderá acabar como em Tianamen, e nessa altura o nosso homem em Trípoli, o embaixador Rui Lopes Aleixo, já deverá ter visto qualquer coisa. Será este o momento certo para os nossos empresários, oportunamente amparados pelo Governo em funções, poderem fechar negócios e usufruir de mais algum tempo de bonança. Khadafi, o amigo e mentor (na especialidade do bunga-bunga) de Berlusconi (o novo santinho no altar de helenafmatos - les beaux esprits se rencontrent?), o aliado de Sócrates, garantirá a segurança do dinheiro de sangue que chegar a Portugal. Os amigos são para as ocasiões. Mas até onde poderá ir o heroísmo dos homens e mulheres que, nas ruas dos países islâmicos, se dispõem a sacrificar em nome da liberdade?