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Arrastão: Os suspeitos do costume.

A austeridade liberta

Bruno Sena Martins, 05.12.11

Não sabemos exactamente quando, mas houve um momento em que o discurso do governo substituiu a convicção ideológica na austeridade pela presunção moral do castigo. Ninguém desdiz as malfeitorias de aproveitamento e esbanjamento dos sucessivos governos PS/PSD, mas há algo que deve ficar claro: Passos Coelho não tem que se arrogar a emissário de um Deus castigador, tampouco insinuar que agora cabe ao povo português sofrer pelos desmandos dos seus governantes. Agracedecemos, portanto, que o discurso do sofrimento merecido fique acoitado nas fantasias pessoais de cada qual e que não seja usado como insulto para tantos que padecem imerecidamente as consequências de uma crise que é, em larga medida, internacional e sistémica. 

Roubados pelo patrão, roubados pelo Estado

Daniel Oliveira, 05.12.11

 

A relação da segurança social com os trabalhadores precários é das coisas mais escandalosas a que assistimos neste País. E resume-se assim: os precários não têm direito a quase nada. Nem a subsídio de desemprego, nem a baixa. A insegurança das suas vidas é absoluta e o Estado não lhes garante nada. Mas, na hora de cobrar, não se esquece deles. Cobra-lhes os descontos que apenas servirão, se quando lá chegarem ainda existirem, para as suas miseráveis reformas. Muitas vezes cobra-lhes ainda mais do que aos trabalhadores com vinculo laboral que têm, e muito bem, direito a alguma segurança em caso de doença ou desemprego. Na realidade, segundo o novo código contributivo, o assalto será ainda maior.

 

Depois de muita insistência dos movimentos de precários e de ter dito que esses números não estavam disponíveis, o ministro Pedro Mota Soares lá cedeu. Ficámos a saber quantos trabalhadores a recibos verdes estão a braços com cobranças coercivas: cem mil. Cem mil pessoas que, na sua maioria, vivem na corda bamba, sem saber se amanhã ainda comem, sem poderem assumir compromissos ou ter filhos com o mínimo de paz de espírito, sem direito a nada do Estado, com o Estado à perna para lhes tirar a casa ou o pouco que tenham. Infelizmente, em muitos casos, não têm mesmo nada que lhes possa ser tirado.

 

O mais grave é que a esmagadora maioria destes cem mil trabalhadores não é, na realidade, fornecedor de serviços. São trabalhadores por conta de outrem roubados duas vezes. Roubados pelos seus empregadores, que para fugirem a qualquer obrigação - incluindo o pagamento da sua parte das contribuições para a segurança social -os contratam com recurso a uma ilegalidade: os falsos recibos verdes. Uma ilegalidade tolerada pelo Estado. Quando não mesmo promovida. Não é o Estado um dos principais prevaricadores, com milhares de trabalhadores a recibos verdes? Não teve o Partido Socialista um dos principais dirigentes (Vitalino Canas) como provedor pago pelos traficantes negreiros a que damos o pomposo nome de Empresas de Trabalho Temporário? E roubados depois pelo Estado, que lhes desconta no magro salário o que não lhes devolve em caso de necessidade.

 

Ou seja, o mesmo Estado que não garante nenhuma segurança a estas pessoas, que não fiscaliza as empresas e as obriga a cumprir a lei, que ele próprio a viola de forma descarada, diz "presente" quando chega a hora de cobrar o dinheiro. Sabendo que parte desse dinheiro deveria ser cobrado às empresas, não hesita em pôr estes desgraçados à beira do precipício para depois dar o empurrão final. Quanto às empresas que ficaram com o dinheiro que deviam ter descontado, continuam a sua vida e a contratar mais gente de forma ilegal. Com os precários ainda mais aflitos, com mais esta dívida imoral para pagar, talvez os possam contratar um pouco mais baratos ainda.

 

O Estado não quer saber se aquela dívida é, na realidade, daqueles trabalhadores ou se, pelo contrário, resulta de uma forma ilegal dos empregadores fugirem às suas responsabilidades. Mas ameaça com penhoras e até com a prisão as vítimas do abuso. Forte para os fracos, fraco para os fortes. É este o padrão de comportamento do Estado português. 

 

Publicado no Expresso Online

Melancolia/Lars Von Trier

Sérgio Lavos, 04.12.11

 

Lars Von Trier conseguiu. Outra vez. Criar um mastodonte pretensioso, caricato e obcecado com o seu próprio umbigo. Melancolia é isto, em tons sépia, como convém num filme sobre o fim do mundo - ou lá o que é -, uma obra sobre cortar os pulsos que quase nos impele a isso. Desprovido de subtilezas - mas o realizador nunca se preocupou com isso -, repetindo temas anteriores, um grito na cara do espectador com a densidade filosófica do correio sentimental da revista Maria. 

 

Em tempos, gostei de Ondas de Paixão - mas admito que, se eu o revisse, talvez mudasse de opinião. Dogville é excelente, por conseguir chegar a um nível de abstracção que o transforma num objecto que reflecte sobre a sua própria importância, um ensaio metaficcional sobre o mal e as suas consequências, uma obra conceptual sobre os limites da artificialidade e do naturalismo da representação cinematográfica. O contrário de Dogville é Melancolia: indigesto e farto, depósito de citações de pintores - Pré-Rafaelitas, Românticos alemães -, uma espécie de paródia involuntária ao cinema da contemplação metafísica - como se fosse um Malick de quinta categoria ou um Tarkovsky superficial, sem espessura - e manifesto da neurose pessoal do realizador dinamarquês. Só se safa mesmo Kirsten Dunst, que parece ter conseguido fazer melhor figura que outras mártires do cinema de Von Trier, como Björk ou Charlotte Gainsbourg (fraquíssima - o que é uma pena, tendo a conta a linhagem da qual descende).  

 

A polémica do último festival de Cannes - o elogio provocatório e infantil a Hitler - é uma nota de rodapé, perante o desastre preguiçoso e auto-contemplativo que é Melancolia. Prémio de Melhor Filme Europeu do Ano? Não quero saber quem seriam os outros concorrentes...

 

 

(Publicado inicialmente no Auto-retrato.)

Herr Passos Coelho

Bruno Sena Martins, 04.12.11

Notícias do estado em vias de se tornar policial (3)

Sérgio Lavos, 02.12.11

Finalmente, os media começam a noticiar os sérios abusos cometidos pela polícia no dia da Greve Geral, sobretudo na manifestação que desceu até ao Parlamento.

 

Hoje, o Jornal de Notícias dá voz aos protestos de João Palma, líder sindical do Ministério Público: "A confirmarem-se os agentes provocadores, é grave". E a Marinho Pinto, bastonário da Ordem dos Advogados: actuação da PSP foi "vergonhosa e indigna" e "Devem ser exemplarmente punidos os comandantes policiais ou membros do Governo que permitiram essas práticas".

 

Os indícios de que terá havido ordens superiores para que agentes infiltrados fingissem provocar os seus companheiros fardados são evidentes e tanto o director da PSP, Guedes da Silva, como o ministro da tutela, Miguel Macedo, têm de responder por estes abusos.

 

(Via 5 Dias).

 

Adenda: mudei a imagem (retirada daqui) para que quem anda entretido com cortinas de fumo perceba bem o que é um agente infiltrado e provocador. Mas podem continuar a assobiar para o lado - eu é que não tenho tempo para desconversas e tonterias.

A Doutrina do Choque

Sérgio Lavos, 01.12.11

 

Este documentário de 2009 é uma adaptação do livro com o mesmo título da activista canadiana Naomi Klein. Uma relato da ascensão das ideias de Milton Friedman e da Escola de Economia de Chicago (inspiradas por Hayek*) em países como o Chile de Pinochet, a Argentina de Videla, a Inglaterra de Thatcher e o Iraque ocupado pelos EUA. Mais do que nunca, um filme obrigatório: temos o nosso próprio "rapaz de Chicago", Vítor Gaspar, a liderar o processo de empobrecimento do país. Um grande admirador de Friedman não pode deixar o seu legado morrer.

 

*Esta informação aparece no documentário mas não corresponde exactamente à realidade. Apesar de Hayek ter ensinado na Universidade de Chicago nos anos 60, não o fez no departamento de Economia. No entanto, é reconhecida a influência das ideias de Hayek na teoria económica de Friedman, tendo este inclusivamente citado Hayek no seu discurso de aceitação do Prémio Nobel. Encontra-se bastante bibliografia na Net sobre o tema. Este ensaio, por exemplo, ou este vídeo.

A receita não resulta? Reforce-se a dose

Sérgio Lavos, 01.12.11

Até matar o doente. Preto no branco, claro como a água. Pedro Passos Coelho, na entrevista de ontem, não poderia ter revelado mais. As medidas de austeridade provocam recessão? É verdade. O que fazer? Repensar as medidas, atenuar o seu impacto na economia, chegar a quem mais pode pagar - a banca, os ricos, as mais valias financeiras - e fazê-los pagar mais? Não, aplicar as mesmas medidas ainda a mais gente. Começa a não ser apenas teimosia, incompetência ou ideologia: chegamos ao foro criminal. Quem, deliberadamente, leva milhões à pobreza e o país à destruição, terá de ser julgado, mais cedo ou mais tarde. Que a entrevista sirva para memória futura.

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