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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Maçã com bicho

Miguel Cardina, 01.04.12

 

Todos os anos é a mesma coisa: mascaradas de formas tradicionais de "integração", grassam nas diferentes instituções de ensino superior práticas humilhatórias que misturam violência ritualizada, gesticularia fascizante e cantos brejeiros. Nem sempre é possível ignorar ostensivamente esta escola paralela de obediência, sobretudo quando alguém tem a coragem de denunciar o que se vai passando. Sabemos também que não é fácil combater as praxes, mas há gestos simples que exigem ser tomados. Gestos que sinalizem uma recusa ética em pactuar com a coisa e que busquem caminhos para que nem tudo fique na mesma. Foi nesse sentido que duas professoras da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Maria João Simões e Catarina Martins, produziram um abaixo-assinado que reuniu o apoio inicial de mais um punhado de colegas (ver texto abaixo). O documento conta neste momento com cerca de 50 adesões e será entregue brevemente ao director da Faculdade. Eu, por mim, gostaria muito que da próxima vez que cruzasse o átrio da faculdade onde estudei com gosto - e que ainda frequento com regularidade - não tivesse de me confrontar com cenários que são a verdadeira antítese do que entendo ser a função nobre da Universidade.

 

Como chegámos aqui?

Sérgio Lavos, 01.04.12

 

A nova ordem neoliberal, resultante das "reformas estruturantes" que o Governo PSD/CDS está a levar a cabo, está a nascer. No país dominado por essa nova ordem, os surtos de gripe têm como resultado um aumento da mortalidade por falta de acesso de velhos e pobres aos cuidados médicos; nesse país, as famílias com recurssos escassos são obrigadas a retirar os filhos das escolas; nesse país, doentes crónicos deixam de conseguir comprar medicamentos e ir ao médico; nesse país, as situações mais graves de entre os doentes crónicos, as pessoas com cancro, deixam de se tratar por passarem por dificuldades económicas.

 

Do que falamos? De pessoas, de velhos, de pobres. Daqui a uns anos, serão números: a taxa de mortalidade infantil, que ao longo dos últimos trinta anos foi reduzida a níveis dos mais baixos da OCDE, irá aumentar. A esperança média de vida irá baixar. A taxa de acesso aos cuidados de saúde irá ser muito inferior ao que era antes das medidas de austeridade além da troika. A taxa de alfabetização vai voltar a cair. Pobres, já são um milhão e meio. E a crescer. Desempregados, quase um milhão. E a crescer. Falamos de pessoas, gente que conhecemos, próximas de nós, gente que se cruza connosco todos os dias. Gente que nunca terá pensado que iria ver a miséria que viu nos tempos dos seus pais e avós.

 

E tudo isto para quê? Para salvar uns quantos bancos, para manter os níveis de riqueza dos "empreendedores" deste país, para que os juros desses bancos e das empresas que comem da malga não caiam, de ano para ano. Para que uma meia dúzia de gestores consiga continuar a receber os seus bónus anuais. Para que a rede de interesses ligada aos sucessivos Governos sobreviva à crise, e continue a vampirizar os recursos do Estado (nós somos o Estado, não esquecer). Tudo está a mudar, a piorar, para os mais pobres e para a classe média. Para os outros, está na mesma ou melhor. Mudar para ficar tudo na mesma, para que o capitalismo saia reforçado, acabando com o Estado Social, a forma mais elevada de democracia que até agora o mundo conheceu. 

 

A nova ordem não quer saber dos que estão mais pobres, dos que morrem mais depressa. No limite, nem de números quer saber: o défice, a dívida, os gastos, são cortinas de fumo para engordar a rede tentacular e emagrecer todos os outros. Mais cedo do que tarde, o fogo será apagado. Mas quem morreu antes do seu tempo, quem ficou pobre a ponto de não conseguir recuperar - é previsível que as depressões e a taxa de suicídio estejam a aumentar -, já cá não estará para ver as cinzas. Como chegámos aqui?

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