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Arrastão: Os suspeitos do costume.

O Verão do nosso descontentamento

Daniel Oliveira, 31.07.12

Nuvens, de Teresa Dias Coelho

Quando voltarmos de férias, aqueles que as têm, é certo que encontraremos uma Europa e um País diferentes. É impossível fazer grandes previsões. Mas sabemos algumas coisas: que a Grécia está a um passo de sair do euro, o que coloca Portugal no primeiro lugar da lista de espera; que a Espanha está à beira do colapso, o que seria um rombo sem remédio no euro; que a Itália se prepara para ser notícia séria nos próximos meses; e que a Alemanha não tenciona abandonar o seu autismo, bloqueando qualquer solução que salve o euro do seu próprio suicídio.

 

Quando voltarmos de férias, aqueles que as têm, começaremos o debate sobre uma mais que certa renegociação do memorando, o que, com este governo, pode significar um memorando ainda pior. Que o governo estará a tentar encontrar uma alternativa para a poupança que queria fazer através do roubo do dos subsídios de férias e Nataldos funcionários públicos. Roubando rendimentos, através de novos impostos, aos trabalhadores do privado, ou arranjando formas de desobedecer à decisão do Tribunal Constitucional, transformado, como noutros tempos, numa "força do bloqueio". Sendo certo que, mantendo o rumo que definiu desde que chegou ao governo, a crise económica nacional entrará numa nova fase bem mais grave do que a atual.

 

Quando voltarmos de féria, aqueles que as têm, saberemos que este foi o último Verão em que vivemos numa relativa, mesmo que precária, normalidade política e económica de Portugal e da Europa. Escrevi-o há dois anos e não foi por auto-inspiração: 2013 será o ano decisivo para o euro e, seguramente, para Portugal. É o ano que a própria Alemanha tinha determinado como o do tudo ou nada. Em que, na infinita irresponsabilidade que domina o seu governo, de que as declarações do seu ministro da economia sobre a saída da Grécia do euro são apenas mais um exemplo, se fará o redesenho dos equilíbrios europeus. Não o sabem os alemães, mas sabe quem não vive maravilhado com a imagem que lhe reflete o seu generoso espelho, poderá ser o ano em que o euro e, com ele, o projeto político europeu, entrará na sua derradeira fase decadente.

 

Posso estar enganado. Na realidade, perante tanta incerteza, toda a gente pode estar enganada sobre o que nos espera a todos. Mas o mais provável é que este seja o último Verão em que ainda só estaremos descontentes. Nos seguintes suspeito que estaremos a reaprender a viver sem a União que conhecíamos até hoje. E em Berlim pode erguer-se mais um dos tantos memoriais que a Alemanha dedica aos seus erros históricos: aqui morreu o projeto que garantiu meio século de paz e propriedade aos europeus.


Publicado no Expresso Online (a coluna do Expresso só regressa em Setembro)

Para ser alternativa, muda de vida!

Daniel Oliveira, 30.07.12

Portugal vive um momento único. Daqueles momentos fundadores de um novo tempo. O que ele será, nenhum de nós sabe. O provável é que sejamos surpreendidos e contrariados em todas as nossas previsões. A crise económica, a iminente, mas não certa, saída do euro e a segura degradação social e política produzirão os seus efeitos. Certo é que a minha geração e as gerações que a ela se seguem - as que não viveram ativamente os anos imediatamente posteriores ao nascimento da nossa democracia - estão a viver o período politicamente mais relevante das suas vidas. E é neste cenário que os vários atores políticos e sociais que se opõe ao saque do País vão ter de decidir que papel terão no futuro.

 

Por enquanto, todos parecem continuar a fazer tudo como antes. Como se nada de novo estivesse a acontecer. Como sempre, em todos os tempos e em todas as Nações, o País político e institucional rege-se pela inércia e pelo hábito. Mas alguma coisa acabará por ter de mudar.

 

A direita que não se sente representada pelo fanatismo ideológico que nos governa terá de fazer um corte com o deslumbramento de recém-estrangeirado e com uma cultura de subjugação ao poder financeiro, dando lugar a um pragmatismo patriótico que não a leve na enxurrada do descontentamento que virá. Apesar de uma direita mais autoritária não ter, desde o 25 de Abril, tradição no nosso País, não está escrito nas estrelas que sempre assim será. Se a direita conservadora com preocupações sociais e éticas não cumprir o seu papel, gente mais perigosa o fará.

 

O Partido Socialista, com a provável assinatura de um novo memorando, terá de abandonar a sua estratégia de sempre, quando está na oposição (já para não falar da que usa quando está no governo): a de basear o seu comportamento numa imagem de responsabilidade sem qualquer conteúdo político, que lhe retira qualquer utilidade como verdadeira alternativa. Já não basta arranjar um líder com mais carisma, apresentar-se como um mal menor e sacar à sua direita e à sua esquerda uns nomes que componham o ramalhete e criem uma "dinâmica de vitória". Não é só a esquerda fora do "arco de poder" que não tem sabido apresentar-se como alternativa credível. O PS há muito que não desempenha esse papel.

 

O PCP terá de compreender que, num tempo absolutamente novo, com uma realidade laboral e social completamente diferente, já não chega preservar uma memória de luta que o honra - e honra. Poderá, por falta de alternativas, manter intacta a sua fortaleza. Mas ela contará cada vez menos na luta social e política. Devemos aos comunistas coisas boas e coisas más. Soube representar um país de excluídos, enquadrado numa mundividência cada vez mais anacrónica. Um país social e uma memória que, se não fosse o PCP, estariam fora da representação institucional e política. Mas um país que conta cada vez menos nos conflitos sociais relevantes. Até porque, enconchado na sua própria autopreservação institucional e ideológica, essa mais-valia vive isolada dos outros, temendo ser contagiada por culturas e modos de agir diferentes.

 

O Bloco de Esquerda terá de sair da encruzilhada em que se encontra. O estado de graça que a novidade naturalmente lhe garantiu acabou. E construir uma alternativa depende da capacidade de, à esquerda, saber fazer todas as pontes, tendo na recusa do sectarismo a sua principal marca identitária. Aceitando o que muito dificilmente qualquer partido aceita: que, em tempos tão dramáticos, ele é muito curto para a construção de uma alternativa. E que a acumulação de forças, por via do descontentamento crescente, nem é provável, nem, mesmo que acontecesse, seria suficiente para que tivesse um papel útil no cenário que nos espera. Um partido que nasceu para desbloquear a esquerda portuguesa não pode transformar-se em mais um factor de bloqueamento, regressando à velha cultura de seita que condenou a esquerda redical portuguesa. Até porque, tendo em conta a juventude do BE e a natureza da sua base social, dificilmente, ao contrário de outros, sobreviverá ao seu próprio autismo.

 

Os empresários do sector produtivo têm de perceber que, neste momento específico, o capitalismo financeiro, que vive da especulação à custa da produção, é seu inimigo. E que, por isso, também são diferentes os seus aliados. Aceitarem manter-se reféns de quem nada produz é aceitarem o fim do seu próprio poder. Posso não me rever nas suas aspirações de sempre. Mas também posso aceitar que, vivendo momentos dramáticos, há interesses circunstanciais que nos são comuns. Mas para que isso seja possível é fundamental abandonarem a cultura rentista, que vive do tráfico de influências no Estado. Até porque, neste novo mundo, ela apenas beneficiará os novos senhores do dinheiro. E eles não são os barões da indústria. É a banca que, aos poucos, suga os recursos toda a atividade produtiva das Nações. Entre a ética do capitalista tradicional e a ética do especulador apenas a legitimidade do lucro lhes é comum. Tudo o resto os afasta.

 

Os sindicatos terão de reaprender quase tudo. Adaptar-se a uma nova realidade laboral, onde a maioria da população ativa ou está desempregada ou tem vínculos laborais ultra-precários. Isto não significa abandonar a defesa dos direitos dos que ainda têm contrato. Cada direito que aí se perde não é um direito que os precários e os desempregados ganham. Pelo contrário, é uma vitória de quem quer que o trabalho volte a ser tratado como uma mera mercadoria. Conseguir representar dois mundos - o das relações laborais que a democracia social nos garantiu e o da semi-escravatura em que a esmagadora maioria dos jovens vive - não é nada fácil. Mas é a única forma de impedir que se alimente um confronto geracional que apenas serve a quem quer dividir para reinar. Em Portugal, o primeiro desafio ao movimento sindical - o único movimento social realmente estruturado no País - é mais prosaico: libertar-se das tutelas partidárias que limitam a sua força e a sua representatividade.

 

Os pequenos movimentos sociais dispersos têm de ultrapassar a fase mais ou menos espontânea ou de tribo em que vivem e saber dar conteúdo político à manifestação da indignação e frustração das pessoas. Têm de ambicionar ganhar representação maioritária e, para isso, abandonar as tradicionais formas de participação, que apenas podem incluir os mesmos de sempre. Isto, sem embarcar na ingenuidade de pensarem que estão, a cada momento, a inventar a roda. Não desprezado os movimentos sociais e políticos tradicionais, como os sindicatos e os partidos. Na história, nunca se começa do zero.

 

Termino como acabei: vivemos tempos únicos. Quase tudo tem de ser reaprendido. Mas nada começa sem um passado. Os atores políticos e sociais que existem, e é com o que existe que se faz política, terão de se adaptar para combater o saque deste País. Começando por repensar a sua política de alianças, que podem ter de ser bem mais amplas do que alguma vez imaginaram. Quem não perceba que vivemos um momento de emergência nacional, e continue a tratar de si próprio, estará condenado à inutilidade.

 

Claro que aqui quase só disse o que não pode continuar a ser. Não sou diferente, nos meus vícios e defeitos, dos que critico. Também eu não sei bem o que nos espera. Também eu aprendi a fazer política num tempo diferente deste. Também estou, como todos os que querem travar a destruição do Estado Social, confuso e a tatear caminhos. Massaber da urgência é um bom ponto de partida para querer mudar de vida.

 


Publicado no Expresso Online

Entregava o seu património a Miguel Relvas?

Daniel Oliveira, 27.07.12

 

Miguel Relvas é, mesmo que muitos acreditem que tudo passará, um ministro a prazo. Já todos os jornalistas, todos os políticos da oposição e até todos os humoristas perceberam que a sua vida é um poço sem fundo de escândalos.Mas ele tem uma função: privatizar a RTP. E privatizar com uma agenda. Mudando o panorama mediático português e, com ele, o panorama político. Dando, provavelmente, espaço mediático a uma direita trauliteira e radical. E, no meio, tratando, da forma expedita que já lhe conhecemos, de negócios.

 

Acontece que Miguel Relvas, o político mais desprezado pelos portugueses, não tem legitimidade moral para vender nada que seja do Estado. Que seja património nosso. Com um outro ministro, eu, como cidadão, discutirei o disparate que é esta privatização. O disparate para o Serviço Público de Televisão e o disparate para o mercado publicitário e, por efeito, para televisões, rádios e jornais, levando a falências em catadupa e diminuindo, em vez de aumentar, o pluralismo da informação no nosso País. Valor que, já se percebeu, preocupa pouco este governo e os que o antecederam. Mas não é nada disto que se discute com Relvas. Com Relvas estamos sempre à espera de esquemas e negociatas. Nenhum negócio que tenha Miguel Relvas como ministro da tutela pode estar fora de suspeitas. Seria como pôr Dias Loureiro a tratar da privatização de parte da Caixa Geral de Depósitos.

 

Muitos têm dito que os ataques a Miguel Relvas resultam do processo de privatização da RTP. As teorias da conspiração valem o que valem. Mas aceitando que seja verdade, ficam as perguntas: não é importante sabermos da honestidade de quem vai tratar da venda do nosso património? Não é o respeito pela liberdade de imprensa fundamental num ministro que trata de assunto tão sensível para a saúde da nossa comunicação social? Serei, até ao último segundo, contra a privatização de um canal da RTP. Sempre foi e sempre será esta a minha posição. Mas neste momento é uma coisa mais comezinha que me faz escrever: serei contra a venda de um lápis que seja se o vendedor do que é meu for Miguel Relvas. E nem preciso de explicar porquê. Todos sabem o que lhe falta. Até ele.

 

Publicado no Expresso Online

Vá para fora dentro de casa

Daniel Oliveira, 26.07.12

 

Mais de metade dos portugueses não vai gozar férias este Verão. E da minoria que vai fazer férias, metade ficará em casa. Ou seja, só um quarto dos portugueses é que vai realmente de férias. Os números são do Instituto de Planeamento e Desenvolvimento do Turismo (IPDT). Comparado com 2011, são menos 22% a passar férias fora de casa. E menos 33% do que em 2010. Curiosamente, há mais portugueses a tirar férias neste Verão do que no anterior. Mas muito mais a ficar em casa durante essas mesmas férias.

 

Durante uns anos as nossas elites fantasiaram um País nas suas cabeças: os portugueses iam de férias para Cancun e gastavam à tripa-forra. Confesso que nunca me deixei de espantar com esta possibilidade de viver no meio dos outros e não saber nada sobre eles. Mas isto explica porque tantas vezes se comenta e se governa um País imaginário. Estes números mostram o que qualquer pessoa minimamente atenta sabe: que uma parte razoável dos portugueses já estava, antes da crise, excluída da qualidade de vida que muitos julgavam ser generalizada. E que a crise alargou a muitos outros a impossibilidade de fazer o que devia ser natural.

 

Ir de férias não é um luxo. Sair de casa e da cidade onde se vive, estar com a família e recarregar baterias é, na sociedade que julgávamos estar a construir, um direito. Sim, repito: ir de férias, e não apenas as ter, é um direito. E saber que apenas um em cada quatro portugueses usará desse direito é razão para nos indignarmos.

 

Quando se diz que estamos a viver um recuo civilizacional não é apenas uma frase. Esse recuo mede-se na vida das pessoas. Na impossibilidade de terem filhos e saberem que lhes podem garantir o mínimo de conforto. Na incerteza de que haverá um Serviço Nacional de Saúde que garanta apoio médico a todos. Na lenta destruição de uma Escola Pública que garanta que os filhos dos mais pobres não estão condenados a herdar a condição social dos pais. Numa precariedade que impossibilita o mínimo de planeamento de vida e que torna certa a inexistência de uma reforma que garanta dignidade na velhice. E no regresso da ideia de que as pessoas não são mais do que máquinas de produção, peças de um mercado-de-trabalho, e que o descanso, os fins-de-semana e as férias são coisas de privilegiados.

 

Não me digam que não há dinheiro porque isso é falso. Quando se diz que Portugal é o País mais desigual da Europa diz-se que o dinheiro, mais do que ser pouco, está mal distribuído. Fosse outra a nossa organização social e, este Verão, a maioria dos portugueses poderia sair de casa para descansar e divertir-se com as suas famílias. Como é direito seu.

 

Publicado no Expresso Online

Pensamento único

Sérgio Lavos, 26.07.12

 

Em filosofia, apenas é considerado filósofo quem produz pensamento original, quem cria conceitos, quem tem um sistema. Todos os que não se enquadram neste modelo ou são considerados comentadores - na melhor da hipóteses - ou simples professores ou investigadores.

 

Aqui há umas semanas, um professor de filosofia convidado no Prós e Contras foi apresentado como "filósofo" - como o programa tratava de assuntos profundamente metafísicos - as consequências da descoberta da "partícula de Deus", e tal - a pensadora Fátima Campos Ferreira promoveu esse convidado para debater com os cientistas que estavam do outro lado da barricada. Tudo muito simplista, claro, mas compreensível na sociedade do espectáculo alimentada pela televisão em que vivemos. Curiosamente, dos cientistas presentes apenas um poderia ser considerado como tal - o investigador que trabalha no CERN. Os outros dois são professores de Física; e Carlos Fiolhais é também divulgador*. 

 

As palavras são importantes. No Negócios da Semana de ontem, apareceu lá um "economista", João Ermida. Não conheço bem o trabalho dele, mas julgo ter um ou outro livro publicado. Será mesmo economista? Pesquisei, e percebi que o percurso profissional foi feito sempre no sector financeiro. Ao começar a falar, corrigiu a apresentação feita por José Gomes Ferreira e disse que já não trabalhava no BPP - o que se compreende, ninguém gosta de se ver associado a tal instituição - a reputação é importante. 

 

João Ermida, economista porque se licenciou em economia. Tudo bem. Todos os dias aparecem economistas a falar na televisão, especialistas em que acreditamos mas que, se fossem escrutinados, veríamos que não acertam uma previsão. Especialistas da treta que se limitam a repetir a cassete da inevitabilidade das actuais políticas. E alguns, algumas vezes, simplesmente mentem. Ermida, por exemplo, afirmou em directo que a culpa das dificuldades financeiras de Espanha é da existência de regiões autónomas. Esquecendo-se do recente resgate directo a um sector bancário que andou anos a brincar com produtos financeiros pouco saudáveis. Mas claro, quem passou pelo BPP tenderá a omitir que a crise começou em 2008, e por culpa do sector financeiro. O remédio? Prosseguir o caminho, para ficar tudo na mesma, como Ermida defendeu. 

 

As palavras são realmente importantes.

 

*Terei sido injusto para Carlos Fiolhais e Gaspar Barreira. A carreira científica de ambos é incontestável. Mesmo que neste momento tenham ocupações mais burocráticas, sem dúvida que poderão ser considerados cientistas. Obrigado ao comentador que corrigiu esta percepção errada que eu tinha.

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