Depois de serem públicas as acusações ao vice-reitor do Seminário do Fundão, Catalina Pestana falou à comunicação social da existência de pelo menos cinco padres em Lisboa responsáveis por abusos sexuais de menores. Disse que há muito tinha denunciado os casos à hierarquia da Igreja. Ela e o psiquiatra Álvaro de Carvalho teriam dirigido, em 2010, uma carta a José Policarpo e a Jorge Ortiga. Terão proposto aos dois "uma conversa discreta".
José Policarpo negou que alguma vez tenha sido informado e o bispo de Braga apenas confirmou que a ex-provedora da Casa Pia lhe falara genericamente da existência de "pedofilia" na Igreja, sem especificar qualquer caso. "Disse-lhe claramente que, se tivesse casos concretos, os denunciasse, os apresentasse aos bispos locais", garantiu Jorge Ortiga. E concluiu: "Tive oportunidade de lhes dizer que a Igreja cuidou e cuidará deste caso com a serenidade e com a responsabilidade que a gravidade dos problemas em si exige". Numa das denúncias apresentadas, apenas na semana passada, por Catalina Pestana ao DIAP, em que está envolvido um padre no ativo, sabe-se que a família terá chegado a transmitir o caso ao Patriarcado sem nunca chegar a saber o que a Igreja fez.
Não tenho razões para pensar que haja mais casos de abusos sexuais de menores no interior da Igreja Católica do que em qualquer outra estrutura da sociedade. A Igreja, enquanto tal, não abusa de menores. E não me parece que promova tais abusos. A culpa de Igreja tem sido outra, um pouco por todo o Mundo: o encobrimento dos casos, permitindo que os responsáveis por um crime grave não sejam punidos.
Basta olhar para o comportamento de Catalina Pestana, de Álvaro de Carvalho e de muitas famílias para saber queeste encobrimento tem uma origem cultural profunda. Todos, a não ser às famílias das alegadas vítimas no Seminário do Fundão, acharam que estariam a cumprir a sua obrigação apenas comunicando à hierarquia eclesiástica, e não à justiça da República, a existência destes crimes. Como se os católicos aceitassem a ideia de que a Igreja é um Estado dentro do Estado e cabe a ela, e não à justiça, tratar destes casos.
A cultura de encobrimento, que tantos dissabores tem dado à Igreja, é aceite pelos fiéis. Que, sem o saberem, se tornaram, durante décadas, cúmplices da impunidade. Essa cultura, e não qualquer generalização da "pedofilia" entre os padres, é verdadeiro problema da Igreja. E está longe de se resumir à pedofilia. É profunda e resulta de uma dificuldade mais geral, que acompanha parte da comunidade católica: a de aceitar que vivemos num Estado laico. E que os crimes comuns não estão nem têm de estar na alçada dos poderes eclesiásticos. A dificuldade em aceitar queum padre, antes de ser padre, é um cidadão, é o que levou milhares de crianças que estavam ao seu cuidado a terem de esperar muitos anos até verem a justiça feita. Foi o tempo que demorou para que os seus segredos fossem conhecidos fora da Igreja.
Lição: se souber de um crime de um padre é com um polícia ou um magistrado, e não com um bispo, que deve falar. Os bispos tratam da fé. Da lei trata o Estado.
Publicado no Expresso Online