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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Deus veste Prada?

Daniel Oliveira, 28.02.13
Com a Europa mergulhada na crise e no desespero, as televisões falam dos sapatos do Papa, nas roupas que vai usar, no anel que vai ser destruído, no palácio onde vai viver nos próximos dois meses, no helicóptero onde foi transportado. Não sou católico. Se fosse, perguntar-me-ia: o que diria Jesus Cristo, se regressasse à terra, de tão interessantes temas ocuparem os espíritos dos seus fieis.

O País avalia a troika

Daniel Oliveira, 28.02.13



Quando a troika chega a Portugal para avaliar pela sétima vez o cumprimento do memorando de entendimento, o Congresso Democrático das Alternativas (CDA) promove uma outra avaliação.

Num contexto em que as previsões falham redondamente e nos ameaçam com mais cortes no Estado Social, é necessário um juízo crítico e rigoroso sobre as reais consequências para Portugal de dois anos de aplicação do memorando, nomeadamente no aumento da pobreza, das desigualdades e do desemprego, na fragilização das relações de trabalho, nos retrocessos na saúde e na educação, nas violações dos direitos sociais e constitucionais, na destruição da economia, no aumento da dívida, no estrangulamento orçamental, nos custos ambientais.

Recolhendo o contributo de especialistas e abrindo o debate à sociedade, o CDA convoca o sentido crítico e as alternativas para uma sessão pública aberta a todos e todas. É o momento de ser o País a avaliar a troika.

15h00 DOIS ANOS DE MEMORANDO COM A TROIKA: QUE CONSEQUÊNCIAS PARA O PAÍS?
JOSÉ REIS (professor da FEUC, CDA)
CARLOS PIMENTA (economista, professor da FEP)
JORGE LEITE (professor jubilado da FDUC, CDA)

16h00 INTERVENÇÕES DO PÚBLICO E DEBATE

17h30 ENCERRAMENTO
ANA LUISA AMARAL (poeta)
MANUEL CARVALHO DA SILVA (sociólogo e investigador do CES da UC, CDA)

Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, Rua Alfredo Allen (Metro Pólo Universitário). Localização aqui.

O bloqueio

Daniel Oliveira, 28.02.13

 

Não queria começar por falar dos agentes políticos, mas pela responsabilidade dos eleitores. Por isso, fiquei-me ontem, na análise dos resultados eleitorais italianos, por isso. Mas a verdade é que os eleitores, irritados, não se sentiram mobilizados por nenhuma alternativa real a Berlusconi e Monti. A crise é aguda e as condições para construir, em Itália, uma alternativa política existiam. No entanto, nem o Partido Democrata (ex-Partico Comunista), nem a esquerda anti-austeridade conseguiram mobilizar o eleitorado. Ele foi para o voto de protesto sem consequências políticas para o futuro. Os italianos não se abstiveram - pelo contrário. Mas optaram por uma espécie de abstenção ativa.

 

O Partido Democrata tinha tudo para conseguir um bom resultado. Tudo, entenda-se, que não dependesse dele.Uma revolta dos italianos, uma oposição maioritária à política da austeridade, uma descrença nas soluções que a Europa apresenta para a crise, um Monti impopular e um Berlusconi fora de prazo. Faltava o próprio Partido Democrata. O PD é a caricatura dos complexos ideológicos do centro-esquerda europeu. Abandonadas as suas raízes ideológicas - de um comunismo sempre heterodoxo -, vive na completa ausência de identidade política. Apoiou a brutal reestruturação da FIAT mas continua a falar como se fosse o representante dos interesses laborais, queria apresentar-se como alternativa a Monti mas ninguém consegue perceber no que realmente se distingue dele e é incapaz de esboçar um discurso compreensível sobre a política de austeridade e a Europa.

 

À esquerda do PD, alinhavam-se duas forças. Esquerda Ecologia e Liberdade (SEL), liderado por Nichi Vendola e que integrava a coligação Bem Comum, do democrata Pier Luigi Bersani, e a Revolução Cívica, liderada por Antonio Ingroia, que junta a Refundação Comunista com movimentos ambientalistas e anti-Mafia. A SEL, nascida da confluência de várias organizações, onde se inclui uma das muitas cisão da Refundação Comunista, e a RC, que tentou juntar os cacos de uma esquerda em desagregação, não conseguiram garantir uma mobilização social que permitisse serem vistos como uma verdadeira alternativa política. Uma teve 3,2% e a outra ficou fora do parlamento, com apenas 2,2%. Ou seja, quer a estratégia de aliança com o centro-esquerda, quer a estratégia do enfrentamento com ele, falharam. Assim como falhou a pastosa e incaracterística moderação de Bersani. Os italianos preferiram, para protestar, votar num comediante. A manifestação de descrença na esquerda tradicional - centrista, social-democrata de esquerda e radical - não podia ter sido mais esclarecedora.

 

As conclusões a tirar não fáceis para a esquerda. A questão não está na moderação ou na radicalidade. Mais moderado do que o PD é difícil e fica provado que a velha ideia de que "as eleições ganham-se ao centro" vive de uma cartografia eleitoral simplista. Mas a radicalidade da Revolução Cívica não produziu grandes efeitos. Nem deputados conseguiram eleger. A questão também não está na capacidade da esquerda anti-austeridade se conseguir entender com o centro-esquerda. A Esquerda Ecologia e Liberdade teve um resultado pouco melhor do que os que ficaram de fora e só elegeram muitos deputados porque o sistema eleitoral beneficia as coligações. A questão está na construção de uma alternativa mobilizadora e credível.

 

Não basta, mostra Itália, repetir o discurso do Syriza para ter os resultados do Syriza. Não basta, mostra Itália, juntar a esquerda para vencer eleições. Não basta, mostra Itália, que a alternativa à direita seja pior do que má. Não basta, mostra Itália, que o centro esquerda se ponha tão ao centro que já ninguém perceba o que ele defende. É preciso que as pessoas acreditem que há um caminho e que ele é alternativo ao que está a ser seguido. E é preciso, não desprezemos isso, que haja lideranças que protagonizem para esse caminho capazes de mobilizar as pessoas e de interpretar com eficácia o que elas sentem e querem.

 

Porque não somos italianos, é improvável que um qualquer Grillo consiga este resultado. Mas os bloqueios à esquerda têm muitas semelhanças com o que se passa em Itália: um centro-esquerda que não é capaz de balbuciar uma alternativa, uma esquerda mais radical que é incapaz de sair da sua zona de conforto para defender um programa credível protagonizado por gente um pouco mais arejada e heterodoxa do que os seus quadros mais fiéis.

 

Sair desta encruzilhada, num momento em que a esquerda tem tudo para reverter politicamente a situação que se está a viver no sul da Europa, não depende exclusivamente de cada um dos atores. Seria preciso que os socialistas se definissem, de uma vez por todas, em relação às razões estruturais desta crise, e que, nessa condição (e não a qualquer preço), os que estão à sua esquerda estivessem dispostos a mais do que defender o seu quintal. Seria necessário que uns e outros, em simultâneo, conseguissem perceber que, com esta crise, a política irá mudar radicalmente. E que isso implica fazer tudo de forma diferente.

 

É por isto tudo que, quando me perguntam se o que eu defendo é uma aliança entre o PS, o Bloco e o PCP, eu respondo sempre que a questão não é meramente aritmética. A questão não é apenas quem se junta com quem. É se há alguma coisa que seja suficientemente forte e mobilizadora para que cada um abandone o que sempre fez para se juntar a alguma coisa. A questão não é se se fazem alianças, é se é possível fazer alguma aliança em torno de propostas claras. Que incluem um discurso sobre as alternativas à austeridade, a forma de defender o Estado Social, um novo caminho para a União Europeia e a posição a ter em relação ao euro. Mas também o combate à corrupção e uma reforma do sistema político. E a questão é, igualmente, porque as pessoas contam, se há quem protagonize a liderança dessa alternativa.

 

Esta é a parte mais difícil de perceber por quem vive viciado na política como sempre se fez: a questão não é saber como se fazem os arranjos para ganhar eleições, a questão é saber se, nos atores políticos atuais, alguém quer realmente correr os riscos de construir uma alternativa.

Por mim, estou cada vez mais convencido que essa alternativa, ou pelo menos a pressão para que ela ganhe forma, nascerá fora dos partidos. Que, à esquerda, todos eles estão bloqueados nos seus próprios vícios, nos seus próprios medos e nas suas próprias lógicas internas. Esperemos, ou pelo menos espero eu, que o que vier de de fora deles seja mais construtivo do que um qualquer Grillo.

 

Publicado no Expresso Online

O traste

Sérgio Lavos, 27.02.13

 

O exercício já foi feito por mais pessoas, mas nunca é de mais recordar alguns dos tuítes com que Pedro Passos Coelho nos brindou antes de ir ao pote, um festival de encenação e má fé nunca antes visto em Portugal:

 

Se formos Governo, posso garantir que não será necessário despedir pessoas nem cortar mais salários para sanear o sistema português. - 2 de Maio de 2011.


Temos de apostar na economia, mas na economia que cria emprego, não na economia que cria rendas aos amigos do poder. - 2 de Maio de 2011.


Impostos e salários foram sacrificados para pagar juros demasiado altos. Quem assim procedeu não pensou no país mas em salvar a própria pele. - 2 de Maio de 2011.


Faremos diferente, trazendo para cima da mesa as contas verdadeiras e pondo o Estado a fazer os sacrifícios que andou a impor aos cidadãos. - 2 de Maio de 2011.


A médio e longo prazo, a consolidação orçamental não é suficiente: o crescimento económico é a única solução para reduzir a dívida. - 3 de Maio de 2011.


Para salvaguardar a coesão social prefiro onerar escalões mais elevados de IRS de modo a desonerar a classe média e baixa. - 10 de Maio de 2011.


Não vamos nomear os amigos. Nomearemos com transparência aqueles que por mérito e competência merecerem ser nomeados. - 25 de Maio de 2011.


Ficámos ontem a saber que há concursos públicos internacionais forjados: o Governo já sabe quem ganha antes de os lançar. - 27 de Maio de 2011.


Ninguém nos verá impor sacrifícios aos que mais precisam. Os que têm mais terão que ajudar os que têm menos. - 1 de Junho de 2011.


Não quero ser eleito para dar emprego aos amigos. Quero libertar o Estado e a sociedade civil dos poderes partidários. - 2 de Junho de 2011.


Prefiro ser criticado por alguma medida mais difícil que defendo do que ser acusado de ludibriar as pessoas. - 16 de Maio de 2011.

Foi você que pediu um primeiro-ministro mentiroso, aldrabão, ignorante, cínico e farsante? Ou quer repudiar e derrubar o maior traste que já passou pela cadeira de primeiro-ministro de Portugal? Informações aqui.

A birra italiana

Daniel Oliveira, 27.02.13

 

Muitos sociólogos e politólogos analisarão os resultados das eleições italianas e os mais de 25% conseguidos por Beppe Grillo. Um comediante abastado que se começa a levar a sério. Que defende um rendimento de cidadania de mil euros, a saída do euro, a diminuição dos salários dos políticos e a redução da semana de trabalho para 20 horas. Defende-o, esclareça-se, com a convicção de um stand up comedy.

 

Os estudiosos falarão do cansaço dos eleitores. Dos efeitos de um governo imposto pela Europa que, nas urnas, valia 10%. Da crise económica e dos seus efeitos. Da desagregação da vida política e das instituições italianas. Dainexistência de alternativas, em que à sucessão de nascimentos e mortes de partidos políticos não corresponde a renovação de políticos, sempre os mesmos, sempre velhos. De um centro e de uma direita que, durante décadas, associadas à Mafia e à Igreja, cumpriram a função de suster o comunismo e, quando se tornaram inúteis, se afundaram na lama em que viviam, desembocando no triste espetáculo do partido-empresa de Berlusconi. De um grande partido de esquerda que, de eleição para eleição ganha uma consistência cava vez mais gelatinosa e tonalidades cada vez mais cinzentas. De uma outra esquerda que vive em dissensão permanente.Ninguém consegue mobilizar ninguém e, tal como cá, já só se vota contra alguém. De um País que são dois e que nem na Europa se conseguiu unificar. Deum sistema eleitoral absurdo que promove o disparate. De uma televisão dominada por Berlusconi que tratou de embrutecer a vida pública italiana...

 

Tudo considerações importantes. Cada uma delas dava para um artigo. Mas deixem-me que trate o assunto de outro ponto de vista. Que não trate o povo e os eleitores como mero objeto de estudo, apenas reativo às suas circunstâncias, mas como ator político consciente. Mesmo que respeitemos os resultados de todas as eleições, como temos que respeitar, isso não quer dizer que eles não mereçam um debate que responsabiliza os eleitores pelas consequências das suas escolhas.

 

 

Já o escrevi várias vezes: a democracia não é um centro comercial, onde se escolhe, à última da hora, o produto que se quer comprar. Aqui o cliente não tem sempre razão. Porque o cidadão não é cliente e as escolhas políticas não são produtos. A democracia é dos cidadãos e é feita pelos cidadãos. Se funciona mal a culpa é nossa. Um povo que realmente se revolta e quer ser consequente com a sua revolta luta por alternativas. O discurso populista contra os "políticos" (como se não fossem eleitos por nós) e o voto inconsequente de mero protesto - como se o protesto pudesse ser resolvido em cinco minutos, numa mesa de voto - resulta de uma infantilização dos cidadãos. Que os próprios cidadãos alimentam para se desresponsabilizarem pelas suas escolhas.

 

Em vez de se comportarem como donos da sua vida e responsáveis pelas suas escolhas, os italianos fizeram uma birra. Julgará, quem assim se comporta, que assusta o "sistema", o "regime" e os "políticos". Não assusta ninguém. A inconsequência do protesto é a coisa mais fácil de assimilar. Beppe Grillo é um episódio. Daqui a poucos anos, depois da dura passagem pela política lhe retirar a graça e o brilho, será mais uma estória na história política italiana, sempre tão recheada de peripécias. Nem a banca, nem os burocratas, nem a Mafia, nem Bruxelas, nem Berlim, nem os "políticos do sistema" estão preocupados. Não muda nada. E é isso mesmo que o voto de um quarto dos italianos nos diz: estão zangados mas não querem correr o risco de mudar nada. Porque a mudança dá muito mais trabalho e menos vontade de rir do que o voto irrefletido num comediante. Exige ativismo, pensamento, confronto, risco.

 

Sim, o voto em Beppe Grillo é um sintoma de uma doença. Mas esse sintoma já era evidente nas repetidas eleições de Berlusconi. Um sintoma que deve fazer a comunicação social, que alimenta a inconsequência e tudo o que é gasoso, pensar. Que deve fazer os principais governantes europeus, que servem todos os interesses menos os interesses de quem os elege, pensar. Que deve fazer os burocratas europeus, transformados em novos engenheiros sociais e promotores da degradação das democracias da Europa, pensar. Mas, desculpem-me o mau feitio, também deve fazer pensar cada um de nós. A cidadania não é um like no facebook e uma graçola na urna de voto. É a nossa vida. A política pode ter-se transformado numa piada de mau gosto. Mas as únicas vítimas desta anedota serão os cidadãos comuns. "Eles", como se gosta de dizer, vivem bem com Beppe Grillo. Afinal de contas, toda a corte precisa do seu bobo.


Publicado no Expresso Online

A troika que se avalia

Daniel Oliveira, 26.02.13

troika está em Portugal para se avaliar a si mesma. É assim que as coisas devem ser ditas. É o seu programa e as suas previsões que estão em causa. E falharam. Numa matéria, o governo tem, em parte, razão: os números que agora conhecemos (e que ainda vão piorar), com um aumento muito acima do esperado pelo governo do desemprego, com uma derrapagem do défice e com uma recessão que será o dobro do prometido, também resultam do contexto externo. Como o aumento do endividamento público no tempo de Sócrates esteve ligado ao aumento dos juros da dívida depois de 2008, resultado de uma crise internacional. Como a ida aos mercados teve a ver com as novas regras do BCE. Ou o contexto externo é uma variável que tem sempre em conta, ou transforma-se num mero álibi quando interessa e que se ignora quando não dá jeito.

 

Sim, o contexto externo pesa (apesar de não ser tudo) nestes resultados. O que Gaspar e Passos não podem dizer é que isso era imprevisível. Tinham todos os dados que precisavam e foi por isso que toda a gente com algum tino disse que as previsões para o seu orçamento eram irrealistas. Porque o contexto externo era o que era e porque a realidade nacional, que está integrada nesse contexto, estava à vista.

 

Escrevi no "Expresso", quando o orçamento para este ano foi conhecido: "Vítor Gaspar garante que cumpriremos a meta de 4,5% de défice para 2013. Como chega Gaspar a este milagre? Com uma previsão de 1% de quebra no PIB, que corresponde a crescimento já no segundo semestre. E como será isso possível? Com uma queda do consumo privado de 2,2%, em vez dos 5,9% deste ano. Isto, quando os salários reais caíram 6,5%, o desemprego continuará a crescer e a taxa média de IRS aumentará 3,4%. O governo consegue que uma queda do rendimento disponível de 3,5% resulte numa queda de consumo de 2,2%. É magia. Será possível com uma queda do investimento de 4,2%, em vez dos 14,1% deste ano. É alquimia. Será possível com o aumento das exportações de 3,6%. Isto quando a Espanha, o principal destino dos nossos produtos, entra finalmente em crise acentuada. E será possível com uma queda do emprego de 1,7%, em vez dos 4,2% deste ano. Isto, sabendo-se que só o Estado será responsável, para o ano, por uma queda no total do emprego de 0,8%. Não, a recessão não será de 1%. Mesmo os 2% previstos pela Universidade Católica parecem-me optimistas." Não sou bruxo. Apenas escrevi evidências e tenho acesso a muito menos informação que Vítor Gaspar e Passos Coelho.

 

Separar o contexto europeu da realidade interna dá jeito a quem não quer debater opções difíceis. Quem se quer ficar por expressões vazias como "austeridade custe o que custar" ou "ser mais troikista que a troika" para uso em barganhas políticas nacionais pode satisfazer-se com este simplismo. Mas contexto nacional e contexto europeu não se desligam um do outro. O programa ideológico do memorando da troika e de Gaspar são, mesmo que em graus diferentes, o mesmo. E o falhanço de todas as previsões é imputável a ambos. Não será, por isso, de esperar, que, numa negociação entre os dois responsáveis por este desastre, nasça alguma coisa de bom.

 

Sozinho, dificilmente Portugal sairá desta situação. É no quadro europeu que a solução tem de ser encontrada. Mas não é indiferente se as negociações se fazem entre duas partes que acreditam na mesma asneira ou entre aqueles que cá vêm avaliar-se, repetindo a sua confiança numa receita que se mostrou tragicamente errada, e um governo que queira reverter este caminho. Que queira renegociar a dívida (e não apenas o tempo para a pagar) e renegociar profundamente o memorando. Que queira apenas mais tempo para destruir o Estado Social ou que se recuse a fazê-lo. Que apenas queira abrandar, por contingências do momento, o plano de "austeridade expansionista" (sem qualquer prova empírica de que ele resulte e com todos os dados para se saber que não passa de um delírio ideológico), ou se se bate por um investimento público reprodutivo em contraciclo, que sabemos, pela história, resultar.

 

troika não é, e tudo o que está a acontecer à nossa economia devia chegar para o saber, nossa aliada. Não está em Portugal para servir os interesses do nosso País. Logo, deve ser tratada, mesmo num processo negocial, como um problema. isso não quer dizer que não se tenha de negociar com ela. Negoceia-se com quem nos cria problemas. Com aliados é que se coordenam estratégias. Mas isto significa que as negociações devem ser feitas em moldes completamente diferentes. E para que isso aconteça é fundamental que quem governa tenha a convicção de que só o caminho inverso a este nos serve. O problema não é se a culpa é do governo ou da troika. É que governo e troikaestão a remar para o mesmo lado e o barco está a ir para o destino errado. Enquanto não tivermos ideias claras sobre o erro que é este memorando continuaremos a fazer os debates errado, convencidos que se cairmos ao slowmotion nos estatelaremos com menor dor.

 

Este governo deve cair porque tem uma fé inabalável numa receita errada. Uma fé maior do que a própria troika mostra ter em si mesma. Mas se não queremos, daqui a uns anos, estar a discutir a queda do próximo governo, temos de ir muito mais longe: renegociar profundamente a dívida, recusar a aplicação de um programa ideológico que ninguém na Europa sufragou, procurar aliados europeus contra a destruição da União e pela criação de instrumentos que defendam os países mais frágeis e juntar todas as nossas energias para uma renegociação profundíssima do memorando, que resulte na inversão de quase todos os seus pressupostos. Menos do que isto, são manobras de diversão.

 

Publicado no Expresso Online

A novela das 8

Daniel Oliveira, 26.02.13

Assisti há pouco a uma trabalho "jornalístico" na TVI que me deixou arrepiado. O caso Giselle, que tanto tem dado que falar (dramas com crianças valorizam os intervalos publicitários dos noticiários), serviu para um momento "Casa dos Segredos". O pai da criança, que deveria ter estado com ela no fim de semana, bate à porta da escola e pergunta pela filha. Os donos da escola dizem que ela não está. Chama a polícia e ali mesmo faz a sua queixa. Tenta ligar para a filha, que tem o telemóvel desligado. E ali, em frente às câmaras, que registaram estes momentos "espontâneos", se vai lavando a roupa suja. A vida de uma criança exposta a um País inteiro. Para mais tarde ela recordar. Sobre o caso em si, nado tenho, obviamente, para dizer. Não conheço nem o pai, nem a mãe, nem a criança e não me parece que a arena mediática seja o melhor lugar para defender o superior interesse da criança. Mas sobre a reportagem há muito para dizer. 


As disputas em torno da guarda dos filhos são, infelizmente muito comuns. Geralmente feias, não é raro que as crianças se transformem em joguetes nas guerras entre os adultos. Mas, com a preciosa ajuda de jornalistas, passa-se agora para uma nova fase: a exibição destas guerras em horário nobre, para gáudio da coscuvilhice pública, transformando crianças em atores involuntários da novela das 8. Que pais tomados pela raiva, pelo desespero ou pelo despeito, tanto faz, percam a noção do que realmente é melhor para os seus próprios filhos ainda se pode fazer um esforço para compreender. O que é indecoroso é que quem está de fora e livre de emoções aproveite a falta de bom-senso dos outros para alimentar novelas à custa de crianças. Que haja tanta gente disponível para vender a sua privacidade em troca de 5 minutos de fama (e tanta gente disponível para a comprar) não me choca. Cada um, sendo adulto, fará da sua vida o que melhor entender. Mas dá para deixar as crianças de fora deste pornográfico circo?

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