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Arrastão: Os suspeitos do costume.

O pior ainda está para vir

Sérgio Lavos, 31.08.13

Aqui está a jogada de Pedro Passos Coelho, em todo o seu esplendor: tentou fazer passar uma lei claramente inconstitucional (a requalificação dos funcionários públicos), para, depois de chumbada, vir pôr as culpas do segundo resgate - que está a ser preparado desde o início do ano, recorde-se - na lei e no Tribunal Constitucional. De uma penada, alivia as claras culpas do Governo e das políticas de austeridade neste segundo resgate e ameaça e amedronta os portugueses: "se não aceitarem as minhas condições - distorcendo a lei - vêm aí coisas ainda muito piores." Pedro Passos Coelho (com a ajuda preciosa de Cavaco Silva) é, neste momento, o maior perigo que a democracia conquistada no 25 de Abril já enfrentou.

Melhorar piorando

Miguel Cardina, 30.08.13
A taxa de desemprego baixou pelo terceiro mês consecutivo, estando agora (dados do Eurostat) nos 16,5%. Passos Coelho comenta dizendo que os números mostram a possibilidade de "recuperação económica do país", ainda que faça notar a pouca probabilidade de uma descida constante, todos os meses, da taxa de desemprego. Óbvio: toda a gente sabe os fortes efeitos da sazonalidade (e da emigração) nesses números. A este respeito, importa sobretudo compará-los com os períodos homólogos: em Julho de 2012, a taxa de desemprego estava em 16%; em Julho de 2011, em 12,5%; em Julho de 2010, em 10,8%. Será que em Julho de 2014 teremos a taxa de desemprego em 18% e Passos Coelho a explicar ao país, com voz colocada, a esperança que esses números indiciam?

O melhor povo do mundo

Sérgio Lavos, 29.08.13

Conheço várias pessoas que exultaram com o aumento do horário na função pública e com o corte nos subsídios. Pessoas que trabalham no privado, até estão contra o Governo, mas acham os funcionários públicos uns privilegiados. Essas pessoas (e todos os outros trabalhadores do privado) já sofreram vários cortes no seu rendimento. Directamente via aumento de impostos e corte de subsídios e indirectamente por causa das consequências da crise - pessoas com salários em atraso ou que viram os seus salários cortados ou congelados pela empresa, numa falsa negociação com o patrão, sob ameaça de desemprego. E vão continuar a sofrer. O Governo começa a lançar a sua propaganda, preparando a opinião pública para mais cortes nos direitos e no rendimento dos trabalhadores. Ainda não está em vigor a última alteração que reduziu a compensação por despedimento para 12 dias e já vemos notícias que falam em pressões do FMI para que os salários do privado sejam ainda mais reduzidos. O FMI pede um corte no salário mínimo e propõe cortes nos salários (abaixo do salário mínimo) dos jovens até 24 anos ou em alternativa nos três primeiros anos de contrato. A exigência de redução de salários tem como fundamento um relatório com dados viciados, que oculta os cortes que em dois anos já foram feitos (27% dos trabalhadores no privado já sofreram cortes no seu vencimento). O plano do FMI é o que sempre foi, e se for necessário martelar números para confirmar a sua visão ideológica, fazem-no.

 

As pessoas que trabalham no privado e que neste momento estão satisfeitas com os cortes brutais que estão a ser feitos na função pública não perdem pela demora. Na Grécia, também tem sido assim. A cada corte no rendimento dos trabalhadores da função pública segue-se um corte no rendimento dos trabalhadores do privado. E assim sucessivamente. No final, todos ficarão a perder, é assim que funciona a desvalorização salarial que o programa de ajustamento pressupõe. Todos, menos os que estão no topo da pirâmide. Os mais ricos não estão a sofrer com crise e têm visto o seu rendimento a crescer. A transferência de rendimentos do factor trabalho para o factor capital é essencial nesta verdadeira revolução neoliberal. Quem se rirá por último não serão nem os trabalhadores do privado nem a função pública. Será quem acumula fortuna com o trabalho dos outros. E a desunião entre trabalhadores é um bem valioso para esta gente. Quando Vítor Gaspar afirmou que os portugueses eram "o melhor povo do mundo", sabia o que estava a dizer. 

A mentira como modo de vida

Sérgio Lavos, 28.08.13

Quando este Governo for varrido do país, serão descobertas as mentiras, manipulações e desvios que diariamente são escondidos dos portugueses. Algumas mentiras vão sendo conhecidas. Ontem, mais uma apareceu. Os números enviados pelo Governo para o FMI sobre cortes salariais foram falsificados. Com base nesses dados, o FMI elaborou gráficos e um relatório no qual defende que Portugal precisa de ajustar ainda mais os salários do privado. Os dados enviados ignoram milhares de casos presentes na amostra que serviu de base para a elaboração do relatório. Milhares de casos de salários que foram cortados, tanto no privado como no público. Até agora, o FMI não corrigiu o seu relatório nem a conclusão que retira. Desde que o relatório foi conhecido, por várias vezes Pedro Passos Coelho se pronunciou a favor da moderação salarial. Logo após o relatório ter sido conhecido, António Borges afirmou: "é urgente a baixa de salários". Só há duas razões para que os números passados ao FMI - em princípio, pelo ministro da Segurança Social, Pedro Mota Soares - sejam errados: por negligência, e nesse caso é grave porque evidencia uma incompetência que se tornou marca do Governo; ou pior, a omissão foi deliberada, e portanto houve dolo, um crime à luz da lei. Pelo historial de Pedro Passos Coelho e do Governo que o acompanha, inclino-me para a segunda. A distorção dos números serve na perfeição o programa ideológico do Governo. Pedro Passos Coelho não olha a meios para chegar aos fins. Se for preciso mentir, ele mente. Se for preciso manipular números, ele autoriza. A canalha que nos governa é assim. 

O mesmo trampolineiro de sempre

Sérgio Lavos, 27.08.13

Pedro Passos Coelho sobre os incêndios num ano especialmente gravoso, sobretudo pelas quatro mortes, mas também pelo invulgar número de ocorrências:

 

"Não me parece que exista responsabilidade directa a imputar a alguém."

 

Pode até ter razão - apesar do persistente problema  das matas por limpar antes da época de incêndios e da sucessivas queixas dos bombeiros sobre o subfinanciamento das corporações e da protecção civil -, mas a verdade é que, quando o PSD e o CDS eram oposição, nunca se abstiveram de criticar o Governo de Sócrates. Se juntarmos a isto a ausência do primeiro-ministro do terreno - mas com certeza que ir a banhos na Manta Rota será uma prioridade maior do que visitar os quartéis dos bombeiros ou até fazer uma declaração sobre os mortos e os feridos - e vemos de que fibra este primeiro-ministro é feito. Ele e Cavaco Silva estão bem um para o outro. 

Discurso moral e mentira

Sérgio Lavos, 27.08.13

 

A ideologia que defende salários baixos e que produziu a segunda maior quebra no emprego entre os países sob resgate vai dando os seus frutos. Esta notícia de hoje dá conta de um estudo da Moody's sobre produtividade nos países resgatados. A produtividade é um dos indicadores de que os ideólogos da depradação actual falam quando pretendem justificar as suas políticas. Este indicador é medido dividindo o PIB pelo número de empregados de um país. É-nos dito há anos que Portugal tem das mais baixas taxas de produtitividade da UE, e este facto é quase sempre imputado ao factor trabalho. O discurso moral dos ideólogos da direita passa sempre pelo enfoque no peso elevado dos custos do trabalho e sobretudo no próprio trabalhador, dando-se a entender que a baixa produtividade resulta do pouco empenho ou reduzido profissionalismo deste - com especial insistência no desempenho dos funcionários públicos. A mentira repetida muitas vezes costuma entrar no discurso quotidiano e a culpa é assimilada facilmente, sobretudo quando a propaganda não dá tréguas nesta luta ideológica. A verdade é que não só os portugueses são os que trabalham mais horas na Europa, como a baixa produtividade é explicada por factores que estão a ser agravados pelas políticas de direita: a baixa competitividade das empresas, a pouca formação dos trabalhadores, a deficiente formação dos empresários e os custos de contexto (em especial combustíveis e energia, mas também burocracia). As próprias especificidades da economia portuguesa, excessivamente dependente das PME's e dos sectores não-transacionáveis (serviços e construção), também explicam esta produtividade. 

 

A conclusão do estudo da Moody's será evidente: ""as melhorias na produtividade de Espanha e Portugal foram largamente ditadas pelas fortes quedas no emprego". Não tardará muito até que um governante qualquer venha gabar-se destas melhorias na produtividade. Quando isso acontecer, sabemos o que está implícito nessas melhorias. "Portugal não está a ser realmente mais produtivo, até porque a recessão acumulada é a terceira mais acentuada da periferia. É o facto da destruição de emprego ser a segunda pior deste grupo de países (12% desde o ponto mais elevado) que explica a melhoria no indicador e não a existência de um fenómeno de revitalização da economia. A segunda destruição de emprego mais pesada ocorreu na Grécia, com quase 19%." É assim, o nosso bonito ajustamento.

Porcos

Sérgio Lavos, 24.08.13

 

O PSD é um partido de tradições, fiel aos seus princípios, um partido que preza o seu passado e acarinha quem se acoita na sua asa. Os seus antigos líderes são donos de estações televisivas, comentaristas de sucesso ou anões para entreter a malta com prestidigitações que desviam a atenção dos crimes que o seu Governo está a cometer. Luís Filipe Menezes teve uma breve passagem pela cadeira do poder laranja, mas cedo regressou à sua toca em Gaia, empurrado pelos barões do partido e por cavaquistas que queriam experimentar com a Manuela Ferreira Leite que tinham à mão. A sua vigência antecipou o reinado de Passos Coelho em populismo, mentira e demagogia (e seguiu à letra as lições do seu mentor Pedro Santana Lopes). De volta à terrinha, continuou a endividar a autarquia de Vila Nova de Gaia, criando no povo um estado de permanente exaltação amorosa pelo líder, um feito a que apenas grandes estadistas - como Isaltino Morais, Moita Flores ou Fátima Felgueiras - podem aspirar. Este sublime estado de elevação espiritual leva a que todas malfeitorias associadas à podridão do poder autárquico - negociatas com empreiteiros, favorecimentos familiares, caciquismo - sejam não só perdoadas pelo povo como olhadas como o firme pilar do exercício do mandato autárquico. O povo vota em criminosos condenados e em populistas suspeitos precisamente porque confia na sua capacidade de ceder a todos os interesses - mais cedo ou mais tarde, o votante de Oeiras ou de Vila Nova de Gaia espera a autorizaçãozinha camarária para o acrescento à vivenda e é mais fáci esperar distorções à lei se o executivo camarário for naturalmente corrupto. No fundo, o povão vota em corruptos porque a corrupção é a sua verdadeira natureza - num país onde o Estado não funciona e não dá o exemplo, quem não o imita ou é anjo ou é parvo. Ou as duas coisas.

 

Ora, regressado Menezes ao remanso do lar, lá cumpriu o resto do mandato a que tinha direito. Mas o poder não é eterno, e com a lei de limitação dos mandatos o reinado de Menezes corria o risco de chegar definitivamente ao fim. Corria, mas acabou por não correr. O PSD, imbuído de grande sentido democrático, decidiu interpretar a lei à sua maneira, contradizendo o seu espírito, tal como ele é entendido pelo seu autor, por sinal um membro da família laranja, Paulo Rangel. Adiante, até porque quase todos os outros partidos dedidiram ler na lei o que muito bem entenderam, do PSD ao PCP, passando pelo CDS e pelo PS (a excepção é o BE). Empurrado por esta leitura elástica da legislação, Menezes dá um saltinho para o Porto. Abandona uma câmara depenada, das mais endividadas do país, mas nem por isso deixa de ter o apoio do seu partido - o PSD que no Governo está tão empenhado em lutar contra o despesismo. A pré-campanha tem sido um festival de promessas: desde um Porto capital do Norte de Portugal e da Galiza até um Oscar honorário para Manoel de Oliveira, Menezes tem-se desdobrado, tocando a todas as portas, visitando todas as capelinhas do populismo demagógico. Nada o pode parar - nem sequer a lei autárquica. Entre dois despachos na câmara de Vila Nova de Gaia, tem vindo a receber habitantes da cidade do Porto em dificuldades, a quem tem pago contas, facturas, rendas e o que aparecer. Diz-se mesmo que nas festas que tem dado já foram mortos mais de vinte porcos. Uma originalidade, que ultrapassa em muito os cheques passados pelo seu companheiro de partido Fernando Ruas ou os frigoríficos oferecidos em tempos por Valentim Loureiro. É fartar vilanagem. Só há um problema: é um crime comprar votos. E mesmo que os votos sejam comprados com porcos, não deixa de ser crime. Por isso, a Comissão Nacional de Eleições já veio enunciar claramente as ilegalidades que anda a praticar Menezes.

 

Sabemos que nada de sério ou relevante sairá daqui. A partir do momento em que um autarca continua a presidir à sua câmara a partir da prisão, tudo é possível. Sem ondas nem sobressaltos, ouviremos as desculpas de Menezes. O assunto trazer-lhe-á ainda mais visibilidade no Porto, e como o povão gosta de caciques, irá com certeza votar maioritariamente nele. Depois admiram-se do país ter chegado a este ponto. Os políticos são sempre, mas sempre, o espelho claro das pessoas que os elegem. Tão cedo não vamos sair da lama onde chafurdamos.

A política e a lei do espírito

Sérgio Lavos, 23.08.13

 

Crónica de António Guerreiro sobre os briefings de Pedro Lomba, no Ipsilon de hoje: 

 

"Sobre os briefings de Pedro Lomba recaiu uma espécie de opróbrio público que já o obrigou a colocar-se numa posição de reserva em relação a essa função acidental e quase o compeliu a declarar, à maneira do Mr. Teste, de Paul Valéry: “La bêtise [a idiotia, a estupidez] n’est pas mon fort.” De repente, e de maneira inesperada, Pedro Lomba tinha emergido como uma figura muito parecida com as figuras literárias da história da bêtise, tais como o Simplicius Simplicissimus e o Schlemiel. Estava a imagem em processo de reparação, eis que Pedro Lomba publica, enquanto secretário de Estado adjunto do ministro adjunto e do Desenvolvimento Regional, um artigo no PÚBLICO do passado domingo intitulado Uma agenda para a imigração. O artigo é mais ou menos anódino — é um briefing por outros meios, sem acidentes — e sem mancha. O problema começa na foto do autor, o secretário de Estado, que é a mesma foto que aparecia nos artigos de opinião de Pedro Lomba quando este era colunista deste jornal. E esta “citação” de um outro tempo é de uma crueldade insuportável, muito pior do que os malfadados briefings. A foto remete-nos para um homem de espírito e de ideias (não um ensaísta, não um escritor, mas um cronista com alguma força); mas o texto é, em toda a sua extensão, um exemplo típico do “idiotismo” (e leia-se esta palavra na sua afinidade semântica com “idioma”) da profissão política: um jargão profissional específico, onde nada a que possamos chamar “ideia” consegue irromper porque os meios de que dispõe estão completamente cristalizados numa langue de bois, como dizem os franceses, num repertório lexical e de fórmulas que fazem surgir o seu actor como alguém que se desloca, feliz, à superfície das coisas, induzido por um entusiasmo que pertence àquele domínio das ilusões a que Kant chamava “ilusão interior”, interna à razão e radicalmente diferente do domínio extrínseco do erro. Temos aqui um sinal eloquente da idiotia, essa “coisa” da qual Rilke, no seu Lied des Idioten (canção do idiota), diz: “Como é bom/ Nada se pode passar”. E, acrescentemos, nada de anormal se passa no texto em questão. Ele é um exemplo típico da produção intelectual de um ministro ou de um secretário de Estado, seja ele adjunto em primeiro grau ou em segundo grau (isto é, adjunto de adjunto), e visto nessa perspectiva “nada se passa”. Mas interpõe-se a memória do cronista Lomba, crítico e combativo, trazida pela fotografia, o que nos leva a reflectir sobre a variante linguística da lei de Gresham: a má linguagem expulsa a boa. Mas esta não é a única lição que este caso pessoal encerra. Há uma questão geral que deve ser formulada sob a forma de uma interrogação: como é que a política prescreve as sua leis mais miseráveis ao espírito (leia-se esta palavra, com todas as cautelas, como um despudorado anacronismo)? Como é que ela acaba sempre por nos confrontar com um inevitável desafio, tão lucidamente observado por Musil, de pensar a conjunção existente entre a política e a idiotia — a estupidez —, que nas suas versões francesa e alemã, a bêtise e a Dummheit, por via de Flaubert e de Robert Musil, se tornaram quase-categorias conceptuais. Será mesmo inevitável que o intelecto se subordine sem reserva ao idioma e ao idiotismo da profissão política e da organização de grupo? A verdade é que o mundo ficou cheio de políticos apóstatas, que mais tarde ou mais cedo sentem a necessidade de proclamar: eu estive lá, mas, acreditem, “la bêtise n’est pas mon fort”."

Tudo está a correr de acordo com o esperado

Sérgio Lavos, 22.08.13

 

Se há indicador económico que continua a crescer a um impressionate ritmo, é o da dívida pública. No final de 2011, alguns meses depois do Governo entrar em funções, estava nos 107,2%. Quem tem memória das coisas, lembra-se do clamor constante da direita contra o Governo de José Sócrates por causa do crescimento da dívida. Ainda hoje, quando se sentem acossada, a matilha saca do endividamento do país e da bancarrota para justificar a destruição que está a levar a cabo. Na verdade, em dois anos a dívida cresceu até aos 131,4% (de acordo com dados tornados públicos hoje pelo Banco de Portugal). Pior: não só cresceu em termos relativos (ao PIB) como em termos absolutos. O seu ritmo de crescimento agravou-se drasticamente, e cada vez se torna mais difícil a Portugal pagar o que deve. Neste momento - e apesar da propaganda neoliberal europeia e nacional nos afiançar o contrário - estamos mais próximos da bancarrota e de um segundo resgate do que estávamos há dois anos. Este segundo resgate, a acontecer durante o próximo ano, junta-se ao terceiro da Grécia, anunciado por Schaüble há uns dias. 

 

E assim será, até não se sabe muito bem onde. As políticas austeritárias diminuem o PIB dos países onde estão a ser aplicadas. Como menos recursos, o Estado, para que consiga atingir as metas a que se propõe (definidas pelo pacto orçamental europeu), precisa de os ir buscar onde é mais fácil: aos mais pobres, aos trabalhadores por conta de outrem, à vasta classe média agora empobrecida. Os cortes no Estado Social são, no limite, a maneira que os Governos austeritários têm de tapar buracos orçamentais provocados por quebras no PIB devido à austeridade. Esta criminosa pescadinha de rabo na boca - corta-se primeiro, provocando a recessão e uma descida no PIB, e que por sua vez apenas poderá ser atenuada para efeitos de défice cortando ainda mais - tem como objectivo, e terá como resultado mais visível, o fim das políticas inclusivas e sociais que trouxeram paz à Europa durante sessenta anos. Outro resultado expectável será uma maior desigualdade social e uma mobilidade social com tendência a desaparecer. Os mecanismos de redistribuição dos rendimentos vão sendo substituídos por mecanismos de transferência de rendimentos do trabalho para o capital - as mexidas na TSU foram uma primeira tentativa falhada, a descida no IRC será o segundo assalto em larga escala tentado de forma directa. Enquanto não chegamos lá, a compressão salarial provocada por um brutal aumento do desemprego está já a permitir essa transferência de rendimento para o capital: pagando salários mais baixos aos trabalhadores, as empresas poderão ter mais lucro e distribuir dividendos por accionistas - no caso do PSI-20, fugindo aos impostos portugueses - em maior escala.

 

Nesta fase do capitalismo de rapina, o capital viaja do Sul para o Norte da Europa, dos países em resgate para a Alemanha e para os seus aliados mais ricos, e do bolso da classe média e dos mais pobres para o poder financeiro e os grandes capitalistas. Os cinquenta anos de prosperidade europeia - e norte-americana - aconteceram não só como consequência do crescimento económico constante, pela criação de riqueza, mas sobretudo por políticas sociais que diminuíram bastante o fosso entre ricos e pobres no mundo ocidental, através da implementação de políticas de redistribuição de riqueza assertivas e solidárias. O que se assiste neste momento vai deixar um rasto de desigualdade e aprofundar medos e rancores nacionalistas. No fundo, o crescimento da dívida não é problema para quem manda na Europa e em Portugal. Um programa ideológico possibilitado por um conjunto de factores excepcional - uma maioria de governos de direita na Europa, a crise de 2008 - está a tomar conta de um espaço que em tempos se dizia fraterno, justo e igualitário. Tudo vai mudar; mas não vai ficar tudo na mesma. 

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