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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Portas queria um consenso para o seu PREC

Daniel Oliveira, 31.10.13

 

Paulo Portas apresentou, com um atraso de nove meses, o seu guião para a reforma do Estado usando expressões doces como "gradualismo", "prudência", "negociação" e "moderação". Expressões interessantes quando se propõe um programa ideológico. Que, diga-se em abono da verdade, não passa disso mesmo: um programa ideológico. Um programa que, se tivesse um conteúdo mais sólido, seria mais radical do que qualquer um que tenha sido apresentado a votos nos últimos 40 anos. Há boas intenções consensuais, há frases ocas, há repetições do que já foi proposto. Mas porque não quero que se trate como inócuo o que tem um conteúdo ideológico bem preciso e radical, que pelo menos nos diz para onde iria, se o deixassem, este governo, concentro-me em alguns princípios gerais apresentados para a segurança social, educação, saúde e constitucionalização de políticas orçamentais.

 

Sobre a Segurança Social, Paulo Portas propõe o plafonamento das pensões, o que só poderá corresponder à saída de uma parte significativa dos maiores rendimentos do financiamento da segurança social. O que, a prazo, levaria a uma maior insustentabilidade dos sistema. A proposta agradará, seguramente, a quem se tem dedicado à demagogia sobre as pensões mais altas. Cá têm a razão pela qual esse populismo foi sendo alimentado: garantir menores descontos para os maiores rendimentos, libertando esse dinheiro para o sector privado. Depois do plafonamento, falaremos de como se pagarão as reformas mais baixas. Agradecem as instituições financeiras, que verão disponível um mercado interessante que até agora era gerido pelo Estado. 

 

Sobre a Educação, Paulo Portas dá mais um passo na defesa do cheque ensino (água mole em pedra dura...), que recentemente mereceu um debate profundo e que, no fim, teria como resultado dois sistemas, um com capacidade de seleção dos estudantes e outro a lidar com todos os problemas pedagógicos e sociais. Portas ainda acrescentou a extraordinária proposta de fazer dos professores proprietários de escolas e do Estado mero comprador de serviços. Na Saúde, segue uma linha semelhante: continuação da privatização da gestão dos hospitais, com os desastrosos resultados que se têm conhecido para os cofres do Estado.

 

Por fim, Portas propõe a constitucionalização da regra de ouro, o que se traduz na constitucionalização da política orçamental. Para quem se tem queixado de uma Constituição demasiado ideológica e programática, temos aqui o ponto máximo da ideologia (proibido o keynesianismo) e do programa (o Orçamento é o instrumento fundamental de todos os governos). Constitucionalizando o absurdo Tratado Orçamental aprovado pela maioria e, coisa estranha, pelo PS, tornam-se definitivamente impossíveis as políticas em contraciclo. As únicas que realmente resultaram em crises de grandes dimensões noutros períodos históricos. Ou seja, Portas quer inscrever na Constituição o ponto de vista, que, neste momento, domina a ortodoxia política da direita e do pensamento económico em que ela se baseia.

 

Sobre as propostas fiscais de Paulo Portas, lamento não ligar uma pevide. Quem começa por apoiar a descida do IRC e a subida do IRS e do IVA, não pode dizer, sem corar, que pretende deixar de penalizar o trabalho e as famílias. Continuo a achar que os atos ainda valem mais do que as palavras. E os atos são os que conhecemos. Fazer estas promessas no mesmo momento em que se prepara a votação dum orçamento de Estado que se traduz num assalto sem precedentes ao trabalho e às famílias ultrapassa todos os limites da desfaçatez. Mas a data escolhida para esta apresentação serve para isso mesmo: ignorar o que se está a passar agora. Portas até fez propostas para quando Portugal tiver um crescimento de 2%.

 

Conclusão: Portas propõe a privatização de partes importantes de funções fundamentais do Estado - saúde, educação e segurança social -; defende uma lógica de contratação a privados de serviços públicos, garantindo o aumento do financiamento público a negócios privados; e quer constitucionalizar os cortes brutais no Estado. E pede, em torno disto e da profundíssima revisão constitucional que este processo revolucionário exigiria, um consenso político alargado. No fim, ainda quer que levem a sério este seu documento.

 

Haverá seguramente quem concorde com esta agenda política. Assim é a democracia. Mas pensar que ela poderia ser uma base séria para o início de um debate alargado sobre a reforma do Estado é achar que o pluralismo político é coisa do passado. O guião que Portas apresentou é, apesar de tosco, o de todas as clivagens fundamentais no debate político de hoje. Da explicação que dá para esta crise até à radicalidade do modelo social (e não apenas de Estado) que nos propõe. A clivagem entre a direita ultraliberal, em que ele agora alinhou o sempre adaptável CDS, e as correntes construíram o Estado Social. É que, apesar do PS ver nesta declaração escancarada uma "agenda escondida" (é preciso fazer um desenho?), não falta lá quase nenhum tema. Moderação? Gradualismo? Prudência? Estamos, definitivamente, no domínio da novilíngua.

 

Felizmente, e apenas nisso tem razão quem desvalorizou este documento, ele teve como única função desembaraçar Paulo Portas do vexame de andar há nove meses a alinhavar umas ideias sobre este assunto. Hoje, começa a debater-se o orçamento de Estado. Aí sim, está espelhado o verdadeiro estado de desnorte deste governo.

 

Publicado no Expresso Online

Vodka com laranja e outras aberrações

Daniel Oliveira, 30.10.13

 

Em Loures o Partido Comunista ofereceu cargos a todos os partidos (diz-se que com condições diferenciadas conforme os convidados, mais não conheço os pormenores). Como se fosse indiferente a posição que se tenha sobre uma política integrada para o concelho e como se dirigir um município pudesse resultar duma manta de retalhos programáticos. O PS, que perdeu as eleições depois de anos de péssimo governo, recusou. Não acho mal. Os eleitores julgaram o seu trabalho, o PS perdeu e vai para a oposição pensar no assunto. O PSD aceitou. E assim temos mais uma câmara "vodka com laranja". Que, talvez não saibam, é uma das coligações pós-eleitorais mais habituais nas autarquias. Geralmente ao contrário: PSD preside e a CDU, muitas vezes a terceira força, junta-se à coisa.

 

Extraordinariamente, a mesma CDU não aceitou integrar uma solução executiva no Funchal, onde estão todos os restantes partidos de esquerda, assim como não integrara a coligação eleitoral. Haverá razões para isso. Será é difícil casa-las com os argumentos apresentados pelo antigo líder parlamentar do PCP para Loures, baseados, entre outras coisas, na "estabilidade" do executivo. As voltas que a política dá.

 

Apesar de um pouco diferente, por se tratar apenas da eleição do presidente da Assembleia Municipal, os eleitos do Bloco de Esquerda em Olhão juntaram-se ao PCP e ao PSD para eleger um social-democrata. Diz que o primeiro candidato apresentado pelo PS, que ganhou as eleições, era pouco recomendável e que assim se garantia uma melhor fiscalização. Mas não deixa de ser difícil explicar esta decisão aos eleitores de um partido que fez campanha autárquica usando argumentos relacionados com a política nacional. 

 

Sabe-se também que a direção nacional do Bloco de Esquerda inviabilizou uma coligação pré-eleitoral com o PS, em Caminha, porque o PCP não quis participar. E que isso corresponde a uma diretiva nacional, que proíbe entendimentos com o PS se não incluírem o PCP (com exceção do Funchal). E esta interdição também se aplica se a exclusão dos comunistas resultar da sua própria vontade. Ou seja, o BE esconde o seu próprio sectarismo atrás do sectarismo do PCP, numa atitude ainda mais grave, porque cobarde e sonsa.

 

Na Área Metropolitana de Lisboa, o Partido Socialista e o PCP mantêm um braço de ferro mesquinho e inútil, aos olhos de todo o País, porque o PS se recusa a dividir poder com os comunistas no mesmo momento que, no Porto, se alia a Rui Moreira sem grandes dramas. Nas autarquias como no País, co PS fala mais facilmente com o PSD do que com os que estão á sua esquerda. Na realidade, uma das razões porque estamos politicamente bloqueados é por causa deste ódio furioso que PS, PCP e BE têm entre si. Já o PSD e o CDS, como se sabe, no país e nas autarquias, entendem-se sem qualquer problema.

 

Tenho sido muito adjetivo em relação a este governo. E quero deixar claro que não o sou apenas para, como alguns, picar o ponto do protesto. Quando digo que este governo é o pior de sempre, quando escrevo que está a destruir o país, quando me refiro aos seus líderes como traidores à pátria não estou a usar recursos de retórica. Estou mesmo a falar a sério. E ajo em conformidade. Assim, não voto, para nenhuma eleição, nos partidos que sustentam o governo de Pedro Passos Coelho. Acho que a convicção de que o governo do PSD e do CDS está a trair e a destruir o meu país é suficiente para esta atitude mais drástica. E não voto em nenhum partido que, de alguma forma, lhe dê a mão e poder. Pelo menos até este primeiro-ministro ir à sua vida. A radicalidade da minha revolta não deve ser um estado de alma, mas uma atitude consequente. Atitude que não teria, pelo menos de forma tão incisiva, noutros momentos da nossa história recente. A única coisa que espero é que pessoas com responsabilidades políticas também sejam consequentes. E se o PCP e o Bloco (o PS nunca sei bem o que pensa) acham mesmo o que dizem que acham sobre este governo e os partidos que o apoiam, tão violentos sentimentos de repulsa não podem desaparecer quando se chega aos Paços do Concelho. Passos Coelho não pode ser um "inimigo do povo" enquanto o principal animador dos seus congressos, agora paraquedista em Loures, é um aliado no governo local. A radicalidade da situação deve corresponder à radicalidade da oposição. Mas a radicalidade da oposição tem de ter credibilidade junto das pessoas. O que exige coerência.

 

Mas o caso de Loures e de Olhão (e Sintra, onde a coligação é entre o PS, o PSD e o PCP, sendo dirigida por um ex-CDS) leva-me a outra reflexão, para além das doentias relações à esquerda: a forma de governo das autarquias, que favorece a promiscuidade e a falta de clareza política. O atual sistema, em que o executivo não corresponde, de facto, a um governo, favorece a distribuição de pastas por partidos sem qualquer ligação programática. Para conseguir maiorias, mas não só. Para calar oposições. Para muitos cidadãos que não valorizam a existência de alternativas claras em democracia isto parecerá excelente. Eu considero péssimo. Porque qualquer governo precisa de oposição. E porque se espera de um governo um programa que faça sentido.

 

A alternativa a isto não é o monolitismo político. São assembleias municipais com muitíssimo mais poder do que hoje, onde a oposição possa exercer a sua função e onde se constituam as maiorias que suportam o executivo, dirigido pelo presidente eleito. Com algumas diferenças, deveria ser como acontece no governo do País. Há governo e oposição e eles não se confundem. O sistema atual promove a traficância de cargos, o silenciamento de divergências, a diluição de responsabilidades políticas, a inexistência de controlo democrático e, porque não dizê-lo, a promoção da mais desbragada prostituição política.

 

Ao contrário do que se diz e pensa, a política não acaba quando chegamos ao poder local. Não passa a ser apenas "uma questão de pessoas". Quando a câmara não é uma mera distribuidora de empregos e de empreitadas e quando já ultrapassou a fase do saneamento básico e do pavilhão multiusos, há diferenças programáticas nas políticas de desenvolvimento, de habitação, de planeamento do território ou fiscal. Diferenças não são menos acentuadas do que as de um governo nacional. A única razão pela qual as pessoas não o sentem é porque a maioria das nossas autarquias ainda anda a tratar quase só de betão. E, de facto, o betão é apenas betão. Pouco interessa quem o manda pôr.

 

Se não fosse assim, notaríamos uma diferença entre Amadora (há anos dirigida pelo PS), Sintra (que balança entre o PS e o PSD) e Almada (desde sempre dirigida pelo PCP). Notam alguma diferença na política imobiliária, fiscal, de planeamento do território ou mesmo social destas três câmaras dos arredores de Lisboa? Eu não. Em todas elas os negócios imobiliários venceram os interesses dos cidadãos. Em todas elas os realojamentos seguiram a mesma lógica. Em todas elas não há uma estratégia económica de longo prazo que permita que estes concelhos deixem de ser dormitórios. Em todas elas as relações com a sociedade civil e com a cultura seguem a mesma lógica clientelar.

 

As diferenças políticas fundamentais só se notam quando há programas, e não apenas conjuntos de medidas e obras. Quando chegarmos a essa fase do poder local, não vejo como pode Bernardino Soares governar com Fernando Rocha, um fervoroso apoiante Pedro Passos Coelho. Nem como podem as câmaras continuar a viver sem uma verdadeira oposição. Até lá, temos apenas a compra e a venda de pelouros. Que prejudica a credibilidade do que os partidos dizem na política nacional e impede a transparência no funcionamento do poder local.

 

Publicado no Expresso Online

Um desafio ao princípio de Peter

Daniel Oliveira, 29.10.13

 

Francisco Almeida Leite, um ex-jornalista sobre o qual falei aqui há uns meses , foi nomeado, em Junho de 2012, para o Instituto Camões. Tirando os monumentais fretes jornalísticos que fez a Passos Coelho na corrida para a liderança do PSD, primeiro, e do país, depois, e um grande puxão de orelhas do provedor do leitor do "Diário de Notícias" pela falta de decoro nos serviços políticos prestados ao atual governo, ninguém lhe conhecia nada no currículo que o levasse para o lugar.

 

Francisco Almeida Leite foi escolhido, em Abril de 2013, para secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, lugar que no passado foi ocupado por Luís Amado e Durão Barroso. Tirando os fretes que fez no "Diário de Notícias" e a sua curta passagem pelo Instituto Camões, onde ninguém sabe muito bem o que andou a fazer, ninguém lhe conhecia nada no currículo que o levasse para o lugar.

 

Em Julho de 2013, Francisco Almeida Leite foi retirado de secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros- Agora, foi proposto pelo governo como presidente da Sofid (Sociedade para o Financiamento do Desenvolvimento), 60% detida pelo Estado. Tirando os fretes que fez no "Diário de Notícias", a sua curta passagem pelo Instituto Camões e o seu brevíssimo mandato como secretário de Estado, ninguém lhe conhecia nada no currículo que o levasse para o lugar.

 

Porque tudo tem limites, a CRESAP (Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública), com poderes meramente consultivos, chumbou o seu nome. Parece que o rapaz, sendo especialista em fretes, sabe pouco de finanças. Mas o governo, que não desiste facilmente e não se incomoda com o vexame público, propôs o seu nome para vogal, que também é capaz de dar um rendimento confortável que não obrigue Franciso Almeida Leite a voltar a trabalhar "Guia TV Cabo". A CRESAP permitiu, desde que não toque em questões financeiras e se dedique apenas às relações públicas. Um boy-porteiro, portanto.

 

Francisco Almeida Leite desafia o princípio de Peter, segundo o qual todo o funcionário tende a ser promovido até ao nível da sua incompetência. Ele será promovido até parecer que é competente. Porque de tantas nomeações, o seu currículo acabará por se assemelhar ao de quem esteja adequado para o lugar.

 

Para o PSD o Estado é um cachorro quente. Cachorro que, como sentenciava o mesmíssimo autor do principio de Peter, é o mais fiel de todos: alimenta quem o morde. E, neste caso, alimenta quem tanto maldiz o seu peso, a sua ineficiência e todas as suas desvantagens em relação ao privado para onde, curiosamente, esta gente não quer ou não consegue regressar.

 

Os apoiantes de Passos enchem a boca com a reforma de Estado. O próprio primeiro-ministro, sempre severo com os outros e amigo do seu amigo com o nosso dinheiro, há muito que espera que Portas lhe apresente o guião da dita. Para começar, tenho um guião muito simples, que ocupa menos do que uma linha: não usar o Estado para pagar favores. Uma coisa simples, que depende do topo do governo, que aumentaria exponencialmente a eficácia do Estado e que reduziria, através de gestores competentes, drasticamente o desperdício de dinheiro público.

 

Publicado no Expresso Online

Lou Reed (1942-2013)

Sérgio Lavos, 28.10.13

 

Como aconteceu com quase todas as bandas que lançaram álbuns marcantes antes dos anos 90, cheguei aos Velvet Underground através de referências de músicos que admiravam essas bandas e que faziam parte do meu esquema das coisas. Quem me ensinou a gostar dos Velvet Underground foram os Nirvana. Passava na XFM uma cover de "Here She Comes Now", do álbum "White Light/White Heat", incluída num álbum de homenagem aos Velvet, "Heaven & Hell", o 1.º volume de uma série lançada em 1991. Acabei por comprar este álbum (mas agora não sei por onde anda) e ouvi incessantemente as músicas tocadas por bandas como os Ride, Chapterhouse ou Screaming Trees. Pouco tempo depois, comprei "Velvet Underground & Nico" e "Transformer", incluídos num top de melhores álbuns de sempre da XFM. A cover dos Nirvana, sendo mais pesada do que o original, mostrava o que os Velvet têm de melhor: as melodias urbanas cobertas por camadas de ruído, de feedback, até à saturação. As letras de Lou Reed completavam o efeito, criando uma atmosfera que, na minha imaginação, representa a Nova Iorque de Andy Warhol, entre o excesso e a depressão, um negrume distante do flower power e do psicadelismo, da pop colorida que parte do mundo ouvia na altura. Os álbuns europeus de Lou Reed foram, de certo modo, a mesma descoberta das cidades e de um submundo frequentado por prostitutas, chulos e traficantes - o brilhantismo das letras de Reed passa por uma atenção ao pormenor que transforma cada canção numa pequena história de fracasso, perda ou melancólica euforia -, uma descoberta partilhada durante algum tempo com David Bowie, também ele perdido (ou reencontrando-se) na Europa de onde tinha saído a determinada altura da sua carreira. Nunca tendo visitado Nova Iorque, sei bem que não a encontrarei como era nos anos 60, quando Lou Reed e John Cale, Bob Dylan e Andy Warhol, por lá inventavam o futuro da música. E se Dylan sempre se equilibrou entre o pretensiosismo dos artistas nova-iorquinos e um certo pendor evangélico de raiz rural, Lou Reed nunca saiu de Nova Iorque, mesmo quando andou pela Europa. Entre o minimalismo das guitarras noise - sim, milhares de bandas construíram carreiras à sombra dos caminhos desbravados pelos Velvet - e a poesia das ruas, Lou Reed foi provando que, com recursos mínimos (vocais, técnicos), se podem escrever grandes canções. É esse, no fundo, o espírito da música pop. Mesmo quando o abismo espreita em cada verso.

 

(Publicado inicialmente no Auto-retrato.)

O altar para o Santo Álvaro

Daniel Oliveira, 28.10.13

 

Este fim de semana o PCP organizou um congresso para celebrar o centenário do nascimento de Álvaro Cunhal. Chamar congresso será provavelmente excessivo. A ausência de qualquer académico que se tenha dedicado ao estudo do percurso político de Álvaro Cunhal ou à história do PCP e do movimento comunista que, sendo ou não sendo do partido, não esteja completamente alinhado com o discurso oficial (lembro-me de José Neves, Pacheco Pereira ou João Arsénio Nunes - lealíssimo militante comunista) deixa claro que este congresso não teve como preocupação o rigor científico. Até aqui, nada de errado. O PCP não é um centro de estudos. E celebra, com todo o direito, o legado dos seus líderes históricos.

 

Todas as celebrações do passado têm como única função justificar uma posição perante o presente. E é deste ponto de vista que esta celebração, como todas as outras, deve ser vista. A atual direção do PCP, a quem deve ser dado o mérito de ter revertido o declínio do Partido Comunista, vive com uma confrangedora e talvez inédita falta de quadros intelectuais (restam umas poucas sobras de um passado glorioso), sem os quais um partido comunista dificilmente cumpre a sua função vanguardista ou pode bater-se por uma hegemonia ideológica. E isso, mais do que a sua maior ou menor ortodoxia ou fechamento, é o que o distingue do seu próprio passado. Se havia partido onde se pensava (com todas as limitações que se conhecem nos partidos com "centralismo democrático") era no PCP. Hoje, esse pensamento dificilmente ultrapassa a demonstração de que o presente deu razão às suas posições do passado. E, temos de conceder, se nos concentrarmos no beco sem saída em que o euro nos enfiou e ignorarmos o beco sem saída em que a experiência do socialismo real enfiou os comunistas, até têm legitimidade para assim pensarem. Mas é muito pouco para quem sonha liderar um movimento revolucionário. Sobretudo quando a sua criatividade ideológica e política é, em todas as dimensões possíveis, nula. 

 

Mais do que o seu carisma ou a sua capacidade de liderança de massas (e ele tinha as duas coisas), são as capacidades intelectuais de Cunhal que se celebram hoje. É do artista e do pensador que o PCP precisa. Porque é isso, e não o líder de rua, que hoje lhe falta. É essa capacidade de liderança intelectual que falta a Jerónimo de Sousa (a léguas de um Bento Gonçalves, de um Pavel ou de um Cunhal) e à generalidade dos funcionários que o rodeiam  Terão outras qualidades, como demonstram os resultados eleitorais do PCP. E é por isso mesmo se organiza um "congresso" e não apenas um comício. Onde Cunhal é transformado num ideólogo com uma dimensão que, convenhamos, apesar da sua extraordinária inteligência e capacidade de liderança, nunca teve. Pelo menos se tivermos como pontos de referência outros líderes comunistas históricos autores de um pensamento marxista original, como Gramsci, Rosa Luxemburgo, Lukács, Trotsky, Lenin e tantos outros. Contra a ideia instituída, Cunhal foi muito mais um táctico (brilhante) do que um teórico (limitado pelas suas dependências externas e constrangimentos internos).

 

Mas, mesmo como processo de legitimação ideológica, pouco de interessante poderia nascer da celebração deste centenário, pelo menos nestes moldes. Basta ler este texto de um tal de José Manuel Jara, na revista "Militante"  (publicação de organização interna do PCP) sobre o livro "Os sete fôlegos de Álvaro Cunhal", de Carlos Brito, para perceber como as divergências passadas com o líder são tratadas como confissão de oportunismo e a convicção de que se teve razão contra a posição do então secretário-geral do PCP como mera sede de protagonismo. E para perceber que não estamos perante uma celebração da vida e da obra de um líder histórico, natural em todas as famílias políticas, mas perante um processo de canonização, mais comum a instituições religiosas. Isto, independentemente da opinião que se tenha sobre Carlos Brito (que não sei exatamente com base em quê é tratado como um "oportunista") e do livro em causa (que considero limitado por uma necessidade excessiva de autojustificação do seu próprio papel na história do PCP).

 

Por outro lado, Álvaro Cunhal morreu. E aconteceu-lhe o que acontece a quase todos os políticos carismáticos quando morrem: as suas qualidades são agigantadas e os seus defeitos desaparecem. Ainda hoje ouvimos as mais banais e vazias frases de Sá Carneiro citadas como se se tatassem de excertos de discursos de Winston Churchill. Cunhal passou a ser, da direita à esquerda, consensual. E é pena. Como profundo admirador da sua personalidade e do seu talento político, gostaria que ele saísse do mundo dos santos e pudesse ser debatido em todas as suas contradições. Do político extraordinário, ao artista plástico e escritor apenas, e com alguma simpatia, mediano, passando pelo antifascista corajoso, o teórico de arte medíocre, o tribuno cauteloso e hábil e o homem misterioso, sedutor e manipulador.

 

Carlos Brito (de quem, enquanto militante da Juventude Comunista, nunca tive especial proximidade política, mas que respeito pela sua história como antifascista de primeira linha e pela sua dissidência digna) recorda, no seu livro, uma frase de Cunhal: "Se se é contra a deificação dos vivos, também se justifica ser contra a deificação dos mortos." É verdade que o ex-eurodeputado Sérgio Ribeiro esclareceu, no referido congresso, depois de dois dias de elogios sem mácula, que Cunhal não era Deus porque "Deus é dogma". Mas era mestre, porque era "o ensinamento da verdade na vida". Estamos, portanto, perante um processo de deificação, mas à luz do materialismo dialético.

 

Vale a pena dizer que também não é verdadeiro outro dos mitos sobre Álvaro Cunhal: o de que, por humildade, se opunha a qualquer culto da personalidade. Nem Cunhal era dotado de tão rara característica num líder político (a humildade), nem estou seguro que a estratégia de construir o mistério à sua volta resultasse duma sentida convicção em relação aos malefícios do culto da personalidade. Como, aliás, ficou evidente na forma como usou, com bastante eficácia, o seu poder pessoal para pôr em causa o caminho inicial da direção que lhe sucedeu, violando as regras estatutárias que sempre defendeu com firmeza para os outros. Mas, ainda assim, vale a pena recordar como termina aquela citação de Cunhal, para explicar, de forma lapidar, a função destas homenagens e congressos: "A deificação dos mortos ou é uma desencorajadora subestimação do papel dos vivos ou uma tentação à sua igual deificação." Neste caso, arrisco-me a dizer que, mesmo que pretendesse ser a segunda, ter-se-ia de ficar, por falta de candidatos, pela evidência da primeira.

 

Publicado no Expresso Online

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