O discurso do abutre
O ministro dos Negócios Estrangeiros avisou que a situação nos países muçulmanos é explosiva. Demos por isso. Mais explosiva do que a quando da queda do Muro de Berlim. Talvez. Que pode vir aí o fundamentalismo que apoia terroristas. Seria talvez mais sábio saudar o facto de, ao contrário de todas as previsões dos cínicos, as revoltas terem sido dirigidas por democratas laicos. Se dependesse da forma como a Europa lidou com a região, nada teria mudado.
Mas Luís Amado fez mais do que dizer o obvio: explicou que aquelas ditaduras fizeram muito pela segurança europeia. Agradece-se a franqueza, mas, quando vemos um banho de sangue num país onde um louco varrido governa há quarenta anos ao sabor dos seus caprichos delirantes, só me ocorre uma palavra para qualificar estas declarações: nojo.
Não está sozinho, o senhor. Na televisão, o secretario de Estado do Turismo não cabe em si de contente. A instabilidade, as mortes e os motins no Egito e na Tunísia são excelentes para o turismo português. De novo, sinto asco.
Tenho a certeza que a muitos portugueses acham tudo isto normal. O egoísmo é instintivo e as lágrimas pelos outros ficam para filmes num serão bem passado e campanhas de solidariedade com data marcada. Sou dos que acha que a política não se pode limitar à pura gestão de interesses, mesmo que os interesses sejam os nossos. Que ela tem uma dimensão moral. E que os países e os povos também se distinguem pela elevação moral do seu comportamento.
Não espero nem quero que Portugal lamente os turistas que decidem mudar de destino e compreendo que em tempos de crise os que vivem do setor fiquem satisfeitos com o facto. Não espero nem quero que a Europa prefira a insegurança destes momentos à segurança do que é previsível. Mas espero que os dirigentes políticos não se esqueçam da dimensão moral da sua função. E que saibam que a desgraça de um povo não se festeja e a liberdade de um povo não se lamenta. Que não há camas ocupadas em hotéis que paguem as vidas que se perderam nem segurança que valha décadas de loucura de meia dúzia de déspotas. Que não há discurso cínico aceitável quando a força aérea de Kadhafi bombardeia manifestantes.
Uma funerária enterra os mortos mas não festeja uma catástrofe. Um médico trata de um doente mas não lamenta a saúde. Um militar vive da guerra mas deve esperar a paz. E se até os que tratam dos seus negócios têm a obrigação de não esquecer a sua primeira condição - a de humanos -, esperava-se que políticos não a esquecessem. A imagem que, nestas declarações, estes governantes dão do país é a de uma Nação de abutres e de gente sem espingarda dorsal. E isso envergonha-me.
Publicado no Expresso Online