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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Orelhas de burro

Sérgio Lavos, 28.03.12

 

Há uma espécie (não assim tão) rara de analfabetos funcionais que gosta de opinar sobre a sabedoria das novas gerações e de falar do que em geral não sabe e em concreto não consegue descortinar. Para além dessa distorção da realidade, ainda conseguem viver num mundo fora do mundo. São os saudosistas da escola salazarista. Note-se: não falo dos saudosistas de Salazar; são grupos diferenciados, apesar de por vezes se cruzarem. Os saudosistas da escola salazarista são muito especiais: tecem loas ao método tradicional daquele tempo, à memorização matraqueante de datas, nomes de rios até ao Ultramar e de serranias de Portugal e das colónias. Ah, e claro, as tabuadas. A criança chegava ao fim da 4.ª classe a saber maravilhas: como vivia o povo português, que era preciso cuidar dos pobrezinhos, e até o nome do ramal que servia a nossa querida e saudosa Nova Lisboa, onde os pretinhos generosamente trabalhavam para a riqueza e glória da pátria. Ah, belos tempos, esses. Os meninos sentadinhos nas carteiras, todos enfileiradinhos, recitando a tabuada. E os madraços, os que não queriam estudar, levavam com o pau de marmeleiro até aprenderem - sangrando das mãos, até enrijecia. Chegava-se ao fim da 4.ª classe, e os meninos faziam o exame nacional e saiam preparados para um ofício - que essa coisa de continuar os estudos era apenas para o filho dos doutores, os outros, aos dez anos, estavam mais do que preparados para se tornaram aprendizes de sapateiro, de torneiro, de marceneiro, enfim, ofícios dignos que encarreiravam logo as crianças na vida e evitavam que o Estado português gastasse dinheiro em inutilidades como o ensino Superior, bolsas ou carreiras científicas. Era um país feliz, aquele: doutores havia poucos e eram todos filhos de doutores, mas assim é que deveria ser, cada um no seu lugar que Nosso Senhor Jesus Cristo também era filho de um carpinteiro.

 

 

E depois, há os letrados desta espécie. O seu guru chama-se Nuno Crato. E, para azar de Portugal, é agora ministro da Educação. Isto equivaleria a nomear Al Capone responsável do Tesouro americano na altura em que o mafioso foi acusado de fuga ao fisco. Mas pouca coisa espanta neste país. E aí estão as primeiras medidas de estalo do ministro (se exceptuarmos o reforço dos subsídios estatais às escolas privadas): a reformulação dos currículos nacionais. Os analfabetos funcionais deste país exultam: regressaram os exames da 4. classe. Não interessa se somos o único país da OCDE onde a prova que existe no final do 1.º ciclo de estudos conta para a nota final. Modernices. Antigamente é que era, os meninos sabiam as tabuadas, e os rios, e as serras. Não interessa se está provado que os melhores sistemas de ensino do mundo resultam porque apostam na integração dos piores alunos no sistema de ensino, em vez de os guetizar, afastando-os da "boa moeda". Na cabeça de Crato e desta espécie, um aluno que reprova é um aluno "burro", é um aluno que não merece outra coisa que não resignar-se à sua condição "burra", sem esperança de alguma vez alcançar os seus colegas "inteligentes". Ideologia tramontana, da mais reaccionária que pode haver. 

 

Uma das grandes conquistas de Abril foi precisamente um acesso generalizado de todas as camadas da população a todos os níveis de ensino. Continuam a persistir desigualdades no acesso, mas a situação é incomparavelmente melhor agora do que era há trinta anos. E os últimos dez, desde que começou a ser norma o maldito "eduquês", foram os anos de maior subida nos rankings internacionais para a Educação. E isto incomoda? Pois claro que incomoda. Quando os últimos resultados de Pisa saíram - os que mostravam melhores resultados dos alunos portugueses a Matematica - a direita desvalorizou de um modo vergonhoso o que os alunos portugueses tinham conseguido. Pudera: os resultados manchavam a ideia martelada por estes arautos de um novo "velho" ensino. Afinal, a "pouca exigência" do eduquês até resultava.

 

Mas enfim, eles estão a ter o seu dia. Não interessa que seja uma mentira completa que os programas sejam menos exigentes. Quem tem filhos na escola sabe: do que conheço na primeira pessoa, posso dizer que o actual 1.ª ciclo, no ensino público, é muito mais exigente do que era há trinta anos. As crianças têm de saber mais coisas e são sobretudo ensinadas a pensar sobre o que sabem. Estamos longe do exército de infantes obedientes repetindo maquinalmente a ladainha da tabuada? Sem dúvida, e ainda bem. Dispenso de bom grado que o meu filho saiba a tabuada - mas, enfim, ele sabe, como a maior parte dos colegas do 4.º ano, até isso é uma ideia errada - se em troca tiver a possibilidade de desenvolver um pensamento crítico sobre o mundo que o rodeia. 

 

É incrível a quantidade de ideias feitas que esta gente tem sobre crianças e adolescentes. Todas erradas. Por exemplo: quem trabalha ou trabalhou em livrarias sabe que grande parte dos livros é vendida a crianças e adolescentes. O Plano Nacional de Leitura, implementado pela execrada Isabel Alçada, resultou. Não é perfeito, mas pôs milhões de crianças a ler obras integrais. E ganhou-se com certeza muitos leitores cujos pais não pegam num único livro ao longo do ano - mas ainda assim não deixam de se achar no direito de criticar a ignorância das actuais gerações. Qualquer adolescente sabe mais de computadores, ou da Internet, ou de gadgets, ou de línguas estrangeiras do que mil cinquentões marretas a comentar em blogues ou notícias do Correio do Manhã, dizendo mal da juventude de agora. E é esse o mundo actual - não é seguramente o mundo da ferrovia de Mombaça a Lourenço Marques.

 

Eu compreendo que a infância seja um território de sonho. E que quem cresceu na escola salazarista sinta saudades daqueles tempos. Mas esta ilusão não desculpa a arrogância da estupidez de quem não sabe minimamente do que está a falar. Nuno Crato saberá? Ele sabe, sabe muito bem. E isso é o mais perigoso. 

 

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