Vencer a dividocracia
Estive na Islândia a preparar uma reportagem para o "Expresso", que será publicada brevemente na revista. Se olharmos para os números, a Islândia nem está mal. Antes de mais, foi um exemplo de coragem. Através de dois referendos, recusou-se a pagar, com o dinheiro dos contribuintes, os desvarios dos seus bancos. Prometeram-lhes o dilúvio e o dilúvio não aconteceu. Julgou-se um ex-primeiro-ministro, que ouviu, esta semana, o verdito: inocente em três das quatro acusações. Na verdade, os próprios islandeses viam este julgamento como um processo político inconsequente. Mas prepara-se outro, inatacável e credível, para vários responsáveis por instituições financeiras.
A Islândia é hoje um exemplo de recuperação económica. Tem um desemprego de 7%, muito superior ao que está habituada, mas muito abaixo dos países em crise. Teve, o ano passado, um crescimento de 3%. Acima da maioria dos países europeus. Vários sectores da economia estão a saber aproveitar a queda da coroa. Tudo isto, três anos depois de ter vivido o 11º maior colapso financeiro da história mundial. Se olharmos para dimensão do País, a maior de sempre no Mundo Ocidental. Basta pensar nisto: os três bancos falidos correspondiam a oito vezes o PIB da Islândia.
E, no entanto, os islandeses estão furibundos. Com os banqueiros, claro. Com o anterior governo, evidente. Mas também com o atual. Com tudo o que cheire a política. Estão, pode dizer-se, depois de toda a esperança, perdidos. A principal razão é esta: as suas dívidas aos bancos. Não me alongo mais, porque as razões profundas, as contradições, a justiça e a injustiça desta revolta, poderão ler na reportagem, contadas pelos próprios. Apesar de terem visto, graças a decisões do governo e da justiça, impensáveis noutro país, as suas dívidas por empréstimo para a compra de casa reduzidas - depois do colapso tinham aumentado entre 40% e o triplo - continua a ser incomportável pagá-las. E é a dívida, e não a crise económica - que ali se sente muitíssimo menos do que aqui - que está a corroer a confiança dos islandeses nas suas instituições democráticas. Mesmo para os que, e são muitos, não as pagam há dois anos.
Só senti vontade de vos contar um pouco - muito pouco - da complexa situação islandesa - quase incompreensível para nós - quando li este título: "Deco recebe 15 pedidos de famílias aflitas com dívidas". O exemplo extremo da Islândia, onde as coisas atingiram, graças à deriva ultraliberal do anterior governo, proporções dantescas, e as feridas profundas que isso deixou na pacata sociedade islandesa, são uma excelente lição. A dívida tem uma natureza absolutamente diferente de todos os problemas sociais. Até em países que há muito não conhecem a pobreza e que, sejamos francos, continuam a nem a cheirar. Ela cria um ambiente de ansiedade insuportável. Mesmo quando não está a ser paga. E, mais importante do ponto de vista da saúde democrática, criam uma asfixiante sensação - a maioria das vezes é mais do que uma sensação - de perda de liberdade. É como viver com um cutelo sobre o pescoço. E ninguém é autónomo nas suas escolhas se passar uma vida à beira da morte.
A dívida e o desemprego são as duas mais eficazes armas sociais de destruição de uma democracia. Provocam, como a violência arbitrária e incontrolável, uma constante sensação de insegurança. Por uma questão de auto-preservação, têm de ser as duas principais prioridades de uma democracia.
O endividamento das famílias, das empresas e dos Estados tem servido para discursos simplistas, que ignoram a mutação que se operou no capitalismo desde os anos 80. Hoje, toda a economia e toda a sociedade vive para financiar a banca e os mercados financeiros em vez de acontecer o oposto. O que tem de acontecer para voltar a pôr as instituições financeiras no lugar que lhes tem de caber é global e exige uma extraordinária coragem política - aquela que nem aos islandeses está a chegar.
A dividocracia - socorro-me do título de um documentário sobre a Grécia - é, depois das ideologias totalitárias dos anos 30, o mais poderoso instrumento de subjugação dos cidadãos e dos Estados a poderes não eleitos. Vencer a chantagem do poder financeiro - que alimenta a dívida e se alimenta da dívida - é, neste momento, a primeira de todas as batalhas de quem se considere democrata. É aqui que se fará a trincheira de todos os combates políticos deste início de século.
Publicado no Expresso Online
Imagem minha de Reiquiavique