O pior ainda está para vir
Fui perdendo o hábito de ver telejornais ao longo do tempo. E nos últimos anos, a sua obsolescência foi-se tornando cada vez mais evidente. Os jornais on-line actualizam a informação ao longo do dia e os canais noticiosos de hora a hora. Se pretendo informação, é melhor nem esperar pelos principais blocos noticiosos, repletos de informação que não é nova, reportagens sensacionalistas e "casos da vida" para o grande público. Mas o pior é que os telejornais servem de caixa de ressonância das opiniões mainstream sobre a realidade e de veículo de propaganda dos partidos do arco governativo, o PSD, PS e CDS. Se isso é claro na RTP (sempre com uma tendência para os partidos que ocupam o poder), acaba por ser mais ou menos evidente nos canais privados.
Um dos exemplos deste via única do pensamento são os directos dos discursos políticos. Os assessores trabalham no terreno os jornalistas e editores dos telejornais, dão a cacha e, à hora prevista, lá está a propaganda servida em prime time. José Sócrates terá aprimorado o modelo, mas Pedro Passos Coelho (com a ajuda do inefável Relvas) é um bom seguidor do antigo primeiro-ministro.
Quando passo pelos telejornais, confirma-se a ideia. Ontem, a partir das 20h30, lá teve Passos Coelho o seu tempo de antena em pleno Telejornal da RTP. O motivo? A festa da JSD - que, muito significativamente, foi organizada no Algarve. As banalidades barítonas do costume, e um ou outro chavão para animar a juventude partidária, entre eles uma esotérica referência à "proletarização dos recibos verdes" - parte-se do princípio que ele estaria a referir-se à precarização, mas não convinha utilizar o termo, com uma carga pejorativa para a sociedade.
A cereja em cima do bolo foi o primeiro sinal do que aí vem, um apalpar do terreno que já começa a tornar-se comum neste Governo. Vai-se testando uma ideia na opinião pública até que o que à partida é inadmissível ou impraticável se torna inevitável. E onde pensa Passos Coelho ir buscar o dinheiro que o fim da suspensão do pagamento dos subsídios à Função Pública obriga? Ao Estado Social, como não poderia deixar de ser. Cada corte feito é uma oportunidade para este Governo. Uma oportunidade de aplicar no terreno a sua agenda ideológica. Não interessa que até aqui esta destruição não só tenha piorado a vida dos portugueses como não tenha trazido quaisquer resultados práticos em termos de redução do défice e da dívida pública. Isso é secundário. O mais importante é acabar com o Estado Social, cumprindo o sonho molhado neoliberal de Passos Coelho. De preferência, mantendo intocada a rede de interesses que suga o Estado dos recursos básicos para a população. Não esqueçamos: Passos Coelho poderia apontar às PPP's, à banca que paga muito menos impostos do que o resto da economia ou aos rendimentos e património dos mais ricos (como fez Hollande em França). Mas não o fez. O Governo não é forçado a cortar na Saúde e na Educação; escolhe-o fazer para não atacar o sistema que alimenta os interesses das corporações que parasitam o Estado. Uma escolha política, nunca uma inevitabilidade. E cada revés (como o da decisão do Tribunal Constitucional) é visto como uma oportunidade para avançar mais neste desígnio neoliberal: mudar para ficar tudo na mesma. Ou melhor, para reforçar o poder das corporações, das empresas de amigos, do capitalismo predatório que suga os recursos do país aproveitando-se da mão de obra cada vez mais barata dos trabalhadores portugueses. A China da Europa, como é o desejo, recentemente verbalizado, de Angela Merkel.
Falar de Miguel Relvas - um morto-vivo político com a resistência de uma carraça e a flexibilidade de uma lesma - até acaba por funcionar como cortina de fumo para as medidas governamentais que estão a destruir o país. É preciso ver para além deste nevoeiro e perceber qual o objectivo do Governo. E o pior ainda está para vir.