Entre a Google e Depardieu, os parvos somos nós
O presidente executivo da Google, Eric Schmidt, diz que se orgulha de ter poupado milhares de milhões de euros à sua empresa na fuga aos impostos. Não cometeu nenhum ilícito. Apenas usou os paraísos fiscais. "Estou muito orgulhoso da estrutura que montámos. Fizemo-lo com base nos incentivos que governos nos ofereceram", disse. A empresa sediada na Califórnia colocou de cerca de 7,7 mil milhões de euros das receitas de 2011 nas Bermudas, o que garantiu uma poupança de cerca de 1,5 mil milhões em impostos. As declarações de Schmidt provocaram indignação no Reino Unido, após a recente revelação de que, apesar de ter registado 3 mil milhões de euros de receitas no País, em 2011, apenas pagou 7,5 milhões em impostos. "Chama-se capitalismo. Nós somos orgulhosamente capitalistas." Explicou o senhor.
Gérard Depardieu sentiu-se "insultado" com as críticas sobre a sua decisão de ir viver para a Bélgica por causa dos impostos que o governo francês criou para os mais ricos. Tão ofendido que a anunciou que vai renunciar ao passaporte francês.
Confesso que também não compreendo a ira contra Schmidt e Depardieu. Não são eles que governam. Não foi a Google que permitiu a existência de paraísos fiscais que acabariam no dia em que as principais potências do Mundo os considerassem um problema. Não foi Depardieu que impediu uma harmonização fiscal da Europa. Foram as autoridades europeias.
O primeiro-ministro francês acusou Depardieu de falta de patriotismo. Fiquei curioso: o que fez o governo francês pela harmonização fiscal no espaço da União? É que se, para fugir aos impostos, Depardieu tivesse de deixar de ser cidadão do espaço comunitário talvez pensasse duas vezes. E o que fez a Europa e o Reino Unido para impedir que empresas que operam no espaço da União usassem paraísos fiscais? É que não sei se a Google terá grande mercado nas Bermudas. E o que fez a União Europeia, no contexto internacional, para pôr fim aos offshores que permitem a pequenos Estados viverem à custa das economias dos outros? Ou para impedir que empresas que fogem ao fisco possam operar no seu País?
Nada do que os governos, britânico e francês incluídos, deixaram de fazer resulta de qualquer esquecimento. A ideia é mesmo alimentar a concorrência fiscal na Europa e fora dela e permitir que o sistema fiscal dos países desenvolvidos seja um autêntico queijo suíço para que dele beneficiem apenas os que mais têm. Porque os governos que elegemos não governam para nós.
A situação em que vivemos resume-se a isto: as grandes empresas e os cidadãos mais ricos usam as infraestruturas e apoios públicos dos países mais desenvolvidos, pagos quase exclusivamente por trabalhadores por conta de outrem com menores recursos do que eles. Como apenas os que menos têm pagam impostos, os recursos vão minguando. Como eles faltam, corta-se no fundamental. O fundamental que até agora permitiu que sobre dinheiro a alguém para ver os filmes do senhor Depardieu e que permite ao senhor Eric Schmidt viver com alguma segurança num País civilizado. Mas se falta para o fundamental, nunca falta para gastar o nosso dinheiro em resgates bancários. Até porque, à medida que o Estado mais nos vai faltando, mais dependemos da banca para coisas tão simples como ter casa, escola, saúde e reformas. Ficam todos a ganhar. Todos menos nós, que somos a maioria.
A concorrência fiscal, sobretudo na Europa, é insustentável. É até insustentável para as empresas que precisam do mercado europeu, onde as que contratam Depardieu e a Google estão seguramente incluídas. Mas o mundo não gira por imperativos éticos individuais. Não gira sequer por nenhum desígnio racional. O que o faz girar são os interesses individuais e coletivos em conflito. Não espero que um dia a Google e outras empresas distribuam menos dinheiro aos seus acionistas porque resolveram pagar voluntariamente os impostos onde deviam. Se a lei lhes permite fazer de forma diferente, de forma diferente farão. Não espero que o senhor Depardieu decida viver numa mansão mais pequena porque quer continuar a ser francês. Espero que sejam os governos a defender o interesse da maioria e a obrigá-los, como nos obriga a nós, a pagarem tudo o que devem pagar. E isso só acontecerá quando a maioria pensar como Eric Schmidt e Gérard Depardieu: de acordo com os seus interesses.
Se a maioria paga impostos e não pode fugir a eles, se a maioria precisa que o Estado continue a garantir o que apenas os impostos podem pagar, se a maioria não quer viver do crédito quando os impostos que paga lhe devia garantir o fundamental, a maioria deve eleger quem obrigue quem mais tem a pagar tudo o que deve até ao último cêntimo. Os que podem fugir aos impostos não elegem governos. Somos nós que os elegemos. Podemos acusar estes cidadãos de falta de sentido ético ou de patriotismo. Mas os culpados somos nós, que votamos em quem não defende os nossos próprios interesses. Eric Schmidt diz-se "orgulhosamente capitalista". Até quando seremos nós "orgulhosamente parvos"?
Publicado no Expresso Online