O escurinho do FMI
Usando a metáfora dos reis magos para se referir à troika, Arménio Carlos referiu-se, no seu discurso no final da manifestação dos professores, a Abebe Selassie como "o mais escurinho, o do FMI". Esta forma de falar do etíope representante do Fundo Monetário Internacional na troika causou natural incómodo a muita gente. A mim também. E por isso escrevi que "esta crise anda a fazer quase toda a gente perder o norte e o sul e coisas extraordinárias vêm de quem menos se espera". Outros foram os que, com mais ou menos veemência, se indignaram.
Em defesa de Arménio Carlos vieram muitas outras pessoas, mais e menos anónimas. Com argumentos variados. Uns, que nem deveriam merecer grandes comentários:criticar Arménio Carlos para defender o representante do FMI, nas circunstâncias em que o País vive, é dividir a oposição à troika e ajudar o inimigo. A ver se nos entendemos: considero a troika inimiga dos interesses do País e da justiça social. Mas isso não permite tudo. E não me permitirá a mim, com toda a certeza, esquecer outros valores e outros combates tão essenciais como os que agora se travam. O facto de ser dito pelo líder da CGTP, organização em que muitas vezes me revejo, torna a coisa mais grave para mim. Se não criticamos os nossos nunca teremos autoridade para criticar os outros.
Outro argumento foi um pouco mais sonso: então ele não é mesmo mais escurinho? Qual é o problema? A não ser que passe a ser normal responsáveis políticos referirem-se a adversários desta forma, tudo bem. Será, assim, natural ouvir em intervenções públicas falar do ministro das finanças alemão como o "aleijadinho" (ele, de facto, anda de cadeira de rodas, não anda?), a António Costa como o "monhé" (ele, de facto, tem origem indiana, não tem?), a Jaime Gama como o "badocha" (ele, de facto, tem uns quilos a mais, não tem?), a Ana Drago como a "pequenota" (ela, de facto, é baixa, não é?), a Mário Soares como o "velhadas" (ele, de facto, já não é jovem, pois não?), a Miguel Vale de Almeida como "larilas" (ele, de facto, assume publicamente a sua homossexualidade e faz da luta pelos direitos LGBT uma parte fundamental do seu combate político, não faz?). Espera-se, no entanto, que o debate público mantenha algumas regras de civilidade. E, sobretudo, que não alimente alguns preconceitos importantes. Arménio Carlos não disse o que disse num café, onde a conversa se pode aligeirar sem problemas. Disse o que disse numa intervenção pública oficial.
Por fim, porque não há oportunidade em que a expressão não seja usada a propósito ou a despropósito, veio a costumeira acusação do "politicamente correto". A ver se nos entendemos: o politicamente correto tem um sentido. E esse sentido resume-se assim: as palavras não são neutras e carregam consigo história, cultura e política. Por isso, devemos usá-las com correção. Não quer isto dizer que devemos ser bem comportados ou que devamos fazer de cada frase um manifesto político. Quer dizer que não devemos usar as palavras ao calhas. Pelo menos quando estamos a falar ou a escrever na arena pública e não conhecemos as convicções mais profundas dos nossos interlocutores. Há, claro, excessos de purismo no politicamente correto. Que me irritam, como me irritam todos os purismos. Mas o princípio está certo e não é preciso ser especialmente adepto dele para não gostar de ouvir falar de um responsável público como "escurinho".
Portugal é um país racista. Tem uma longa história de racismo. E uma longa história de negação desse racismo. É um racismo suave, sorrateiro, com diminuitivo (como "escurinho"), que não se exibe de forma descarada na praça pública. É, talvez, das formas mais insidiosas de racismo. E um homem que se enquadra numa corrente política com provas na luta contra o racismo e a discriminação, como Arménio Carlos, tem obrigação de saber isto. É por isso que o incómodo com esta afirmação deve ser maior por vir da sua boca. Não duvido, no entanto, que se a expressão tivesse sido dita por um homem de direita a indignação seria muito mais violenta. E mal. A direita tem, nesta matéria, menos responsabilidades. Não porque a direita seja, em geral, racista, mas porque acredita, em geral, que os portugueses não o são. É, por isso, menos vigilante consigo própria.
Se repararmos, Abebe Selassie é o primeiro negro com algum poder real em Portugal. Ou seja, num país razoavelmente multiétnico, o primeiro negro com algum poder só o consegue ter porque esse poder não resultou da vontade dos portugueses. Há, que me lembre, apenas um deputado negro no parlamento - e é do CDS. Não há nenhum presidente de Câmara, nenhum ministro, nenhum secretário de Estado. Isto tem de querer dizer qualquer coisa. Ou quer dizer que os portugueses não votam em negros ou quer dizer que a generalidade dos negros não consegue ascender socialmente no nosso país para chegar a cargos públicos relevantes. Porque são geralmente discriminados ainda antes de chegarem à fase de poder ascender a estes cargos. São discriminados na distribuição do rendimento, dos empregos, das oportunidades. E é neste contexto, e não numa sociedade que dá a todos, independentemente da sua etnia, as mesmas oportunidades, que Arménio Carlos falou de um "escurinho".
Arménio Carlos não se referiu aos outros dois representantes da troika como "o carequinha" e o "loirinho". E é normal. Carecas e loiros há em muitos cargos semelhantes. Não chega a ser um elemento distintivo. "Escurinhos" é que há poucos. Ou melhor, não há nenhum. Só que essa característica física não é comparável a outras que aqui referi. Ela é causa de uma discriminação muitíssimo mais profunda. E foi isso que Arménio Carlos, sem o querer, acentuou: em vez do nome e do cargo, sobrou a Selassie (que eu aqui já critiquei violentamente sem me ocorrer falar da sua cor de pele) o facto de ser "escurinho".
Selassie não foi identificado como etíope, que é, como técnico do FMI, que também é, como alguém que usa óculos, que usa, que é careca, que também é, ou que é politicamente incompetente, que parece ser. É negro. Não pretendo que sejamos cegos perante a negritude. O que fica claro é que, mal surge um pessoa com algum poder no nosso país que seja negra passa a ser essa a forma mais evidente de a identificar. Com direito a dimunitivo. Que isso aconteça num café ou entre amigos não me choca. Que seja essa a forma como o secretário-geral da CGTP se refere a um adversário político - e o facto de ser um adversário político e da frase ter sido dita no contexto de um ataque político só torna a coisa mais grave - numa iniciativa pública é relevante.
Arménio Carlos é racista? Não me parece. Mas a indignação não resulta de uma qualquer avaliação do carácter ou das características políticas de Arménio Carlos. Resulta do que a frase que proferiu num contexto oficial acrescenta ao discurso político em Portugal. Mais grave: o que ela acrescenta ao combate a uma intervenção externa que está a deixar as pessoas desesperadas. A intervenção externa é condenável, mas nunca se pode passar a ideia que ela é condenável porque envolve um "boche" ou um "escurinho". Porque, mesmo que não seja essa a intenção de quem assim falou, isso transforma uma resistência em defesa da soberania democrática num ataque xenófobo. Repito: mesmo que não seja, e estou seguro de que não era, a vontade de Arménio Carlos. É que o sentido das palavras ditas na arena pública não depende da vontade de quem as diz. Dirigindo-se indistintamente a todos - e também a quem seja, e são muitos, racista -, é apropriável por todos. Por isso somos obrigados a especiais cuidados quando as dizemos no espaço público.
Arménio Carlos já veio dizer que não sabe de ninguém que tenha ficado pessoalmente incomodado. E que se alguém ficou, transmite as suas desculpas. Arménio Carlos é um político e tem obrigação de saber que a questão não é o incómodo pessoal de cada um. O confronto político permite o incómodo dos outros. Ele até poderia insultar Selassie. Mas deve pensar bem se o insulto que escolhe corresponde aos valores políticos que defende. A questão é o que a expressão, ainda mais com o diminutivo paternalista, revela. E se há coisa que um político tem de saber é que as palavras, sendo parte fundamental do seu ofício, são importantes. Um trabalhador pode ser um "colaborador"? Pode. Um despedimento colectivo pode ser uma "reestruturação" de uma empresa? Pode. E, como tão bem sabe Arménio Carlos, não é indiferente se usa umas ou outras expressões. Mesmo que ninguém fique pessoalmente incomodado por ser chamado de "colaborador". Porque, como gritava Nanni Moretti, "as palavras são importantes". E em política elas são muito importantes. Mesmo quando não se quer ofender ninguém.
Publicado no Expresso Online