Indignidades liberais
A nossa seita liberal é dona de uma excentricidade muito própria, especial e com um pensamento transformista que se vai adaptando na perfeição às decisões tomadas pelos Governos de direita que vão passando pelo poder. Desde deputados do CDS-PP que dão palestras sobre liberalismo ao mesmo tempo que estão no Governo que impôe a mais pesada carga fiscal de sempre, até defensores da austeridade custe o que custar, para além de qualquer limiar razoável - e esse limiar deveria ser, para um liberal, o ponto em que a recessão destrói a economia livre e as pequenas e médias empresas em benefício dos monopólios e das empresas que vivem à conta do Estado. Há mesmo liberais que defendem impostos ainda mais elevados como forma de sairmos da crise, até a um ponto em que, imagino eu, todo o rendimento disponível passará a ser gerido por Gaspar, em função dos interesses dos nossos sacrossantos credores, que no fundo são o alfa e o ómega de toda a economia e, em última análise, de toda a existência. E claro, quase todos estes liberais são profundamente conservadores no que diz respeito a questões de direitos humanos - é vê-los a vociferar de tempos a tempos contra o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou a liberalização das drogas. João César das Neves e João Carlos Espada são os heróis desta facção "liberal" da nossa inteligentsia.
Rui Albuquerque, por exemplo, vem defender neste post que os patrões possam utilizar os ordenados dos seus trabalhadores para gerir as contas da empresa. Fenomenal proposta. E, evidentemente, perfeitamente liberal, apesar de em teoria o liberalismo económico ser bastante darwinista no que diz respeito ao funcionamento da economia - apenas as melhores empresas podem sobreviver. Se pensarmos bem nas coisas, como elas são, de facto uma empresa pode ter bastante maior liquidez para investir e crescer se simplesmente deixar de pagar aos seus trabalhadores. Vamos lá ver: os trabalhadores devem pensar no bem-estar da empresa que faz o favor de lhes "oferecer" trabalho (no fundo, uma maneira de verem o seu tempo ocupado, como em tempos sugeriu Fernando Ulrich). Podem muito bem abdicar dos seus ordenados para manter as máquinas em funcionamento. Apenas com tal sacrifício e abnegação da massa colaboradora poderão as empresas continuar a distribuir dividendos pelos seus accionistas no final do ano.
A proposta de Rui A. colhe, de resto, em bastantes empresários portugueses. Quando os trabalhadores da empresa onde eu estava decidiram fazer greve para protestar por dois meses de salário em atraso, foram acusados de traição. Com toda a razão, pois claro. Se tivéssemos continuado a trabalhar, resistindo à vil tentação de recebermos um ordenado pelo nosso trabalho, a empresa teria tido muito mais flexibilidade para manter uma frota de automóveis topo de gama ao serviço dos administradores e os accionistas teriam recebido mais pelo seu hercúleo esforço. Fomos, na realidade, gente mesquinha, que apenas queria a desgraça de quem nos emprega. Onde já se viu, exigirmos receber pelo trabalho que produziu a mais-valia para o patrão?
Não, Rui, indigna não é a entrevista na qual o inspector-geral do trabalho defende a criminalização do atraso no pagamento de salários. Indigno é haver patrões que acham que podem gerir as suas contas particulares e as dos accionistas com os salários dos trabalhadores. Até será admissível que pontualmente possam existir atrasos e que se utilize os salários alheios para equilibrar as contas da empresa. Mas quando o atraso é reiterado, sistemático e a empresa apresenta lucros que contradizem a falta de liquidez, é crime, sim, e se não está na lei, deveria estar. Indigno é também termos empresas que estão a aproveitar-se da crise para desrespeitarem sistematicamente as pessoas que empregam, a começar pela principal forma que estas têm de defender a sua dignidade: receber o salário devido pelo trabalho realizado.
Razão continua a ter Karl Marx, quando escreveu: "A economia política olha para o proletário... como um cavalo - ele tem de receber apenas o suficiente para que consiga trabalhar. Quando não está a trabalhar, o proletário não chega a ter o estatuto de ser humano."