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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Branco no branco

Sérgio Lavos, 27.04.10

(Ilustração de Henri Cartoon)

Os obrigatórios discursos nas datas que o regime comemora são sempre tratados pela generalidade de imprensa como aquilo que não são, como processos de intenção ou indicações sobre o rumo que o futuro tomará. Não é à toa que as figuras que discursam sejam marginais ao poder executivo. Falo, claro está, do Presidente da República ou do Presidente da Assembleia da República, a que se pode juntar os líderes dos grupos parlamentares em dias como o 25 de Abril. O que acabamos sempre por ouvir, nestas ocasiões, é uma oratória mais ou menos inspirada que se centra nas grandes questões sem nada aprofundar - as decisões são quase sempre tomadas nos gabinetes dos ministros, e não precisam de retórica para avançar.

Sabendo isto, é fácil de perceber a euforia instalada na direita depois da intervenção de Aguiar-Branco no parlamento. Bem, é ponto assente que terá sido o melhor discurso que ele alguma vez proferiu, mas a esta questão não será alheia a recente derrota nas eleições internas do seu partido. Vamos lá ver as coisas como elas são: a verve irónica demonstrada por Aguiar-Branco não passa de mais um fenómeno circunstancial; o discurso é uma boutade inofensiva que, apesar do que muitos querem fazer crer, nada mostra de diferente na atitude do PSD em relação ao 25 de Abril, e acaba por ser apenas uma provocação infantil à esquerda e aos seus valores - um bobo fica sempre bem em qualquer corte. Mais, a verdade é que todas aquelas citações (parece que o name dropping informal está a fazer escola no PSD, depois daquela célebre entrevista de Passos Coelho) serviram apenas um propósito politiqueiro e obviamente dirigido: a defesa de uma revisão constitucional que torne a lei fundamental do país mais de acordo com o espírito da direita. Os cravos na lapela, que tinham deixado de ser exibidos pelos parlamentares do PSD no tempo de Cavaco Silva primeiro-ministro, regressaram ao partido, desta vez espalhando em redor o distinto fedor da hipocrisia. Não se trata aqui de achar que os valores da Revolução são exclusivo da esquerda - mas aquela referência vagamente subtil à tal nova Constituição, supomos que liberta da canga ideológica que tanta comichão provoca na direita, esvazia de qualquer seriedade o discurso de Aguiar-Branco.

Ao pé de tanta virtude de casta donzela, até poderia soar menos cínico o discurso do Presidente da República, instigando o Governo a apostar nas "indústrias culturais" - o palavreado tecnocrata até provoca arrepios - e no Mar enquanto destino - à moda de Camões e Pessoa. Poderia, escrevi, mas não soa: continua tão cínico como todos os discursos solenes anteriores de Cavaco. O homem que pôs Santana Lopes à frente da Secretaria de Estado da Cultura e acabou com a frota pesqueira nacional não deve ser o mesmo que, sorriso estampado no rosto, incita o país à inovação cultural e a um investimento na nossa mais importante matéria-prima, o mar. Esta ligeireza que parece esquecer o passado é mais um sintoma do vazio instalado na política. Que regularmente regresse, nas datas importantes do regime, é a confirmação da doença - o vazio galga terreno, e ninguém parece preocupado com isso.

(Actualizado)

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