A constituição que faz de Passos Coelho primeiro-ministro
Nem toda a direita é estúpida, e nem toda a direita tem na sua essência uma aversão ao funcionamento da democracia. Este texto do João Luís Pinto, no Insurgente, coloca as coisas como elas deveriam ser colocadas por quem respeita as instituições e a Constituição, mesmo quando delas discorda:
"A Epístola de Passos Coelho aos Jotinhas com que foi ontem encerrada a Universidade de Verão do PSD trouxe-nos alguns fragmentos interessantes da sua perspectiva em relação ao exercício do poder e ao papel das instituições e da constituição num Estado de Direito. Trouxe-nos também uma revelação surpreendente, que não terá deixado de desiludir muitos dos que tomam as dores de defender aqui e ali o actual governo.
Essa revelação foi de que Passos Coelho não vê nenhum problema ou entrave à “reforma do estado” na actual constituição, e que a sua crítica se circunscreve à interpretação “subjectiva” que dela é feita pelo Tribunal Constitucional. Ora sendo o papel de qualquer tribunal o da interpretação subjectiva da lei, fica-nos em primeiro lugar a dúvida sobre qual será o modelo de fiscalização da constitucionalidade que terá em mente como alternativa.
Mais: a constituição na qual não vê entraves é a mesma constituição que conhecia e que estabelece as regras e os limites sob os quais que se candidatou e exerce o cargo de primeiro-ministro. Boa ou má, é esta constituição, interpretada pelo Tribunal Constitucional (e não outra, porventura redigida na sua cabeça ou tutelada pelo seu “bom senso”), que estabelece as regras e legitima o mandato do primeiro-ministro, e foi para a cumprir que escolheu candidatar-se e foi eleito.
É também assim natural que o primeiro ministro e os partidos que suportam o governo tenham que compreender que, assim como criticam a interpretação subjectiva do Tribunal Constitucional, também a sua crítica é subjectiva mas, hélas, tem de submeter-se por força das regras à força da primeira.
Mas a confissão de Passos Coelho de que a constituição não é um problema acaba por não ser mais do que um tardio reconhecimento pessoal do papel histórico do seu partido, e de como esta constituição é muito um legado da sua intervenção política. Afinal, temos no PSD um dos subscritores originários dessa constituição e das suas diversas revisões. Temos um PSD que há décadas, em conjunto com os outros partidos do “arco da governação” (eufemismo comum para os partidos que são titulares em rotatividade do poder desde o 25 de Abril), tem nomeado os sucessivos elementos do Tribunal Constitucional, bem ciente e alerta para o seu carácter político. Carácter político que está expresso na constituição e que foi a natural consequência da vontade do legislador constituinte, aprovada por estes partidos, de se ter uma “república de juízes”.
Foi aliás essa vontade que culminou, por exemplo, em aberrações como o número 4 do artigo 282, disposição que até deu tanto jeito a este mesmo governo em tempos recentes, e de cuja notável latitude de subjectividade o mesmo Passos Coelho na altura não se queixou.
As decisões que têm sido tomadas são naturais em relação ao teor da constituição que temos.
Espanta-me um pouco a perspectiva daqueles que acham que a leitura de uma constituição deve ser feita de acordo com as circunstâncias. Que as regras que limitam a acção dos governos ou as liberdades consagradas (na generalidade) numa qualquer constituição, devem ser interpretadas à luz dos condicionalismos dos tempos. De que valeria então uma constituição, se todos fossem livres de a interpretar, com “bom sensos” e “subjectividades”, devido uma qualquer conjuntura ou num exercício de navegação-à-vista?
Aliás, a generalidade das constituições assume mecanismos tutelados e bem definidos de circunstâncias de excepção, como o estado de emergência, e os limites que são admitidos nessas circunstâncias. É, independentemente de todo o resto que a popula, o caso da nossa. Se os tempos o merecem e necessitam, demonstre-se que assim é e cumpram-se as suas regras.
Uma má constituição – como a nossa o é, e não tenho problemas em dizê-lo, contrariamente ao primeiro-ministro – muda-se, não se transforma na vontade ad hoc de governos e de partidos políticos. Na sua vigência, quem reiteradamente demonstra que não consegue seguir as regras com que se comprometeu (mas com as quais até continua a afirmar concordar) tem um bom remédio: demite-se.
É que se assim não for, todos estes sucessivos problemas de constitucionalidade das iniciativas do governo começam a parecer mais a produção da desculpa possível de quem não tem coragem para tomar as medidas que tem ao seu alcance. Ou para assumir de uma vez por todas o que não consegue fazer, não tendo também a coragem de propor uma profunda revisão constitucional ou a vontade em iniciar e participar no processo de elaboração de uma nova constituição.
Fica a parecer ser alguém que tem muito ao seu alcance para fazer e decidir de forma duradoira, mas prefere escudar-se num discurso de vitimização, já mais preocupado em arranjar expedientes para a sua incapacidade e para os seus erros do que em verdadeiramente fazer algo."