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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Os ricos (com 2000 euros) que paguem a crise

Daniel Oliveira, 15.10.13

Quando Paulo Portas apareceu, às 20.30 de domingo, numa conferência de imprensa, ainda pensei que iria finalmente apresentar a famosa reforma do Estado prometida para 15 de Fevereiro deste ano. Ou que vinha dizer que, ao contrário do que anunciara uns dias antes, afinal ainda faltavam mais umas medidas de austeridade. Vinha, no entanto, pobre vítima, queixar-se, pesaroso, do alarme criado junto dos reformados pelas notícias saídas a propósito das pensões de sobrevivência. Não sei quem queria Portas fazer "engolir as palavras". Mas estaria seguramente dentro do Conselho de Ministros. Só de lá pode ser a fonte de toda a informação que circulou na semana passada. Podia poupar-nos, então, aos dramas domésticos com o seu parceiro de coligação.

 

E explicou Paulo Portas que a medida se dirigia apenas aos reformados que, com a sua pensão e a pensão de sobrevivência, somassem a milionária quantia de dois mil euros brutos. Ainda estou curioso para saber como é que os 25 mil reformados (números de Portas) afetados vão render cem milhões de euros. Dá uma média de quatro mil euros de corte anual por reformado o que, com os cortes anunciados, é basicamente impossível. Mas imagino que, tal como os 760 milhões que renderá a convergência entre os sistemas de pensões, o governo esteja a enganar a troika e ela a deixar-se enganar. Só assim pode continuar esta farsa que até permite ao governo, enquanto anuncia mais austeridade, falar de novo ciclo.

 

Como aqui disse e não me vou repetir, esta suposta condição de recurso (que é outra coisa, mas sigamos em frente) é um absurdo quando aplicada a uma prestação social que resulta de contribuições. No caso concreto, a 7% da TSU (2,4% do salário) para o risco de morte. Ela mina toda a confiança no sistema, pois muda radicalmente a natureza de um seguro social. E isso tanto acontece com 600 euros como com 2000 euros. O argumento inventado por Portas é que esses 7% de descontos e os gastos em pensões de sobrevivência têm um défice de mil e duzentos milhões (o porta-voz do CDS, João Almeida, tinha, na semana passada, falado de 800 milhões). Esta conta é absurda. Porque, para ser feita, teria de contemplar o ganho que o Estado tem (se me permitem a frieza da linguagem) quando um reformado morre e a sua reforma é reduzida para 60%. Seja como for, a mudança da natureza das pensões abre um precedente sem limitação possível. Da mesma forma que as gorduras do Estado, em 2008, se transformaram na TSU das viúvas, em 2013, as reformas passarão a estar ao sabor da vontade de cada governo, sem terem de manter qualquer relação com a carreira contributiva dos reformados. E com isto mina-se a relação de confiança de que a sustentabilidade da segurança social depende.

 

Claro que o limite de dois mil euros, em tempo de crise, passa bem. O governo tem sabido usar a desgraça para dividir os portugueses, tratando gente com dois mil euros como privilegiados, enquanto a redução do imposto sobre o lucro das empresas (quase todo de grandes empresas em boa situação) fará perder ao Estado mais do que se vai buscar aos viúvos e viúvas. Já expliquei aqui a insustentabilidade política e financeira de ir reduzindo os tectos das pensões até ser inaceitável não impor um plafonamento dos descontos. É em sede de IRS que o essencial da redistribuição fiscal se tem de fazer. Caso contrário ela é feita várias vezes em várias sedes até destruir a classe média.

 

Recordo que os mesmos que serão atingidos por esta medida terão de pagar a continuação da contribuição extraordinária de solidariedade, serão, muitos deles, afetados pelos cortes nas pensões por causa da convergência de sistemas, viram, em vários casos, aumentar o que pagam para a ADSE, tiveram o reescalonamento e a sobretaxa do IRS e ainda têm a nova lei das rendas. Bem sei que dois mil euros brutos é uma fortuna, mas até este rendimento multimilionário se perde com tanta austeridade "humanista" (socorrendo-me das palavras de Portas).

 

Dizem-me que a segurança social não é sustentável. Sim, com os níveis de emigração que hoje temos, o desemprego a aproximar-se preocupantemente dos 20 por cento, a redução dos salários promovida pelo governo, a crescente precariedade e a integração de fundos de pensões descapitalizados no sistema público (CTT, CGD, PT e banca), para ter receitas extraordinárias e empurrar o problema para o governo que vier depois, é difícil termos um sistema sustentável. Diria mesmo que é impossível. Perceberão nessa altura os que aplaudem esta medida como se tivesse alguma coisa a ver com justiça social, que eles virão na próxima razia. Os que têm algum dinheiro ainda poderão tentar fazer PPR. Para os mais pobres é que não vai sobrar nada.

 

Estes cortes vão ajudar a resolver alguma coisa? Pelo contrário. Como mostra um relatório recente do Banco de Portugal (e já mostrara um relatório do FMI), cortes nas prestações sociais, em tempo de crise, têm um efeito devastador na economia. Por cada euro que se poupa o PIB perde um euro e vinte cêntimos. Ou seja, não é apenas da sustentabilidade da segurança social que estamos a tratar. É da sustentabilidade do País. Sem ela, não haverá reformas para ninguém.

 

Guardo a provocação feita ao Tribunal Constitucional, através da inenarrável proposta de cortes nos salários dos funcionários públicos, para amanhã.

 

Publicado no Expresso Online

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