Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Arrastão: Os suspeitos do costume.

Os três fatores que determinarão o nosso pós-troika: Bruxelas, Berlim e Helsínquia.

Daniel Oliveira, 21.11.13

Perante o regresso da Irlanda aos mercados, Maria Luís Albuquerque adoptou o seu discurso. Até então, dizia que a Irlanda era o nosso farol. E o seu programa cautelar, seguramente excelente, viria mais tarde a ser o nosso. Porque, como bramava Paulo Portas, nós somos mais celtas do que gregos. Agora, a ministra das finanças passou a dizer que estamos perante a prova de que os programas da troika funcionam. Basta olhar para os irlandeses, que respiram de novo ares de esperança. Para estragar a festa, o governo irlandês veio avisar que a austeridade está longe, muito longe, de ter os dias contados. Isto num país que, ao contrário do que muitos pensam, está longe de viver dias felizes. O desemprego está entre os 12% a 13% e chega a 30% entre os jovens. A emigração voltou aos níveis de 1980, com 7 mil a partir em cada mês.

 

Seja como for, a Irlanda vai aos mercados e, depois de tantos sacrifícios, Maria Luís Albuquerque não descarta a possibilidade de Portugal fazer o mesmo. Depois acordará e verificará que os juros da nossa dívida estão nos 6%, e os da Irlanda nos 3,5%. Não, nós não seguimos os passos da Irlanda. O nosso programa de "ajustamento" não está, nem nunca esteve, a correr como o deles. Basta dizer que os valores envolvidos no programas de austeridade na Irlanda foram muito marginalmente acima do previsto inicialmente. Já Portugal duplicou a austeridade prevista. Desde o princípio, o nosso "resgate" correu muitíssimo pior do que o irlandês. E, falhando em todos os resultados, obrigou a sucessivas doses de austeridade para lá do que estava planeado.

 

Mas os advogados do governo e os papagaios da opinião não desarmam: isso acontece porque não fomos tão vigorosos como os irlandeses na aplicação da austeridade. Passos Coelho até avisa: "quem exige o sucesso da Irlanda tem de suportar o ónus das medidas". Porque a Irlanda tem "cumprido uma série de decisões difíceis que envolveram reduções salariais, reduções nas pensões, do número de efetivos do Estado". Será que a vantagem da Irlanda foi ter sido ainda mais austeritária do que nós? Porque tem sindicatos e oposição mais compreensiva e dialogantes?

 

Não.  Nós aumentámos mais os impostos, sobretudo nos impostos sobre rendimentos, do que eles. Não. Nós cortámos mais nos salários e nas pensões do que eles.  Não. Nós reduzimos mais do que eles o peso dos salários da função pública, em relação ao PIB. A Irlanda passou de 12,8% para 11,2% (desceu 1,6 pontos percentuais), enquanto Portugal passou de 12,7% para 10,6% (desceu 2,1 pontos percentuais). Em resumo: se há alguma diferença, é que Portugal foi mais violento na austeridade e nos cortes na despesa pública do que os irlandeses. Não. As contas dos irlandeses não estão mais equilibradas do que as nossas. Estão muito menos. O défice orçamental da Irlanda está nos 8,2% (o nosso é de 5,7%) e a sua dívida pública é semelhante à nossa. No que toca às contas públicas, os bons alunos, que terão feito, sem crispação, tudo muitíssimo bem, não mostram grandes resultados. Piores do que os nossos, que já por si são pouco famosos, para dizer a verdade.

 

Tese seguinte, a ver se agora pega: apesar de terem cortado menos nos salários e pensões do que nós, começaram por aí e não pelos impostos. Essa é que foi a sua grande vantagem. Se a questão é cronológica, porque estão os gregos, que também começaram pelos cortes salariais e pelos despedimentos, ainda pior do que nós? Pelo menos a eles a inversão da ordem da asneira não beneficiou.

 

A diferença é outra. É que os problemas irlandeses, que levaram ao pedido de resgate (no caso, resgate a banqueiros por via do Estado), são diferentes. Mas, acima de tudo, a sua estrutura económica não tem nada a ver com a portuguesa. Basta dizer que, por razões de todos conhecidas, em que a língua e a relação cultural e económica com os EUA têm uma importância central, a Irlanda tem mais de 100% do seu PIB em exportações. A sua economia aguenta muitíssimo melhor esta austeridade. Até aguenta um crescimento medíocre, um défice alto e uma dívida pública próxima da nossa. E mesmo assim os juros não disparam como os nossos. Não é o Estado e as suas despesas que pesam na equação. É a economia. E, já agora, acesso facilitado ao mercado financeiro americano.

 

Não somos nem celtas, nem gregos. Mas somos europeus como eles. E essa é a parte que ignoramos sempre. É que o mais interessante é tentar perceber porque decidiu a Irlanda regressar aos mercados sem apoio, apesar da sua insegura situação financeira. A primeira resposta seria a evidente: tal opção significaria que as condições do programa cautelar corresponderiam a perigos ainda maiores. O que nos obrigaria a desconfiar das teses benignas sobre este programa para Portugal, que, tendo em conta a situação económica e financeira do País, seguramente teria condições ainda mais severas do que para os irlandeses.

 

No entanto, parece-me que esta leitura é precipitada. Tudo indica que não foi bem a Irlanda que decidiu regressar aos mercados. Nem sequer foi a troika - pelo contrário - que o aconselhou. Pode ter sido a Alemanha e a sua versão ultra, que é a Finlândia, que se mostraram indisponíveis para aprovar mais este programa. No que a inexistência de governo na Alemanha terá ajudado. O ministro das Finanças irlandês deu uma versão mais simpática: a Irlanda apercebeu-se que o debate seria longo e a decisão demorada e temeu as repercussões desta espera. Com juros a 3,5%, mais valia não correr o risco da incerteza. A ser assim, confirma-se o que tenho escrito nos últimos dois meses: os nossos segundo resgate, programa cautelar ou ida aos mercados dependem, antes de mais, de factores externos ao país. A começar pela vontade das instituições europeias, que não desejam ter uma segunda Grécia em Portugal. Mas também da vontade dos Estados do norte e da sua situação política interna, que nem sempre leva às decisões mais racionais.

 

Assim, os apelos do presidente para acordos entre partidos, as pressões sobre o Tribunal Constitucional e os pedidos de silêncio de Passos Coelho nas criticas ao programa de ajustamento são para consumo interno. Mais para culpar outros pelas falhas de quem nos governa do que para a defesa dos interesses do país. Nada têm a ver com os mercados, que, tendo em conta a insustentabilidade da nossa dívida, a debilidade estrutural da nossa economia e a camisa de forças do euro, têm os olhos postos em quem pode desbloquear os problemas europeus ou dar as garantias necessárias de que pagaremos até à nossa exaustão. Têm os olhos postos em Bruxelas e em Berlim. E também numa importante força de bloqueio que se fortalece como representante dos pequenos estados ricos: Helsínquia.

 

Publicado no Expresso Online

Comentar:

Comentar via SAPO Blogs

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.