De derrota em derrota
O desconforto breve trazido pela cimeira da Nato tornou-se passado em dois dias, e o que acabou por sair mais prejudicado foi uma certa ideia de esquerda solidária e unida em torno de causas essenciais e indubitáveis. Nem valerá muito a pena discorrer sobre a sucessão de textos e comentários em blogues de esquerda sobre o aconteceu no dia da manifestação da Avenida da Liberdade, a tal que, por vontade dos organizadores - o movimento Paz Sim, Nato Não - decidiu reservar o direito de admissão apenas a militantes e simpatizantes do PCP, com uma certa incompreensível conivência de quem vinha logo atrás, o Bloco de Esquerda. Não é especulação, o cruzamento de relatos confirma o sucedido, e a força policial que esteve presente para isolar quem não estava incluído nestes dois grupos (diga-se, numa relação de forças de três polícias para cada um dos activistas segregados) acabou por confirmar, para as televisões, que houve uma vontade expressa por parte dos organizadores de separar a frente da manifestação da cauda. Este ponto não será discutível; parece que, depois da manifestação de Julho e da longa espera para uma greve geral a dois dias da votação do Orçamento, o braço sindical do PCP, a CGTP, se tornou a central sindical do regime, institucionalizada e pronta a pegar em armas de forma controlada e ordeira, quais cordeiros arrebanhados pela força das circunstâncias. A presença de dezenas de bandeiras de Portugal na manifestação de sábado confirma a institucionalização da luta do PCP: uma esquerda ideologicamente ortodoxa, sim, mas esclerosadamente patriótica e pronta a fazer o jogo dos partidos do centro, mantendo a ordem nestas situações, respeitando sem demasiado estrépito o discurso de responsabilidade que tem sido imposto, com a ajuda de uma máquina de propaganda mediática imbatível, ao povo que cala e consente.
Marcar território, de pernas abertas e empurrando todos em volta: eis o único e exclusivo objectivo da organização que convocou a manifestação de sábado. Desde aí, tem-se confirmado a opção, em caixas de comentários de blogues ou actualizações do Facebook, e quem marcou o território tem vindo a reforçar a ideia de que, daqui para a frente, existe apenas uma luta pura, fragilizando o movimento de contestação às medidas de austeridade. Luta de galos, no fundo, e um vergonhoso espectáculo para quem está de fora, sobretudo a direita, que bem pode rir a bom rir. Não se compreende como, num momento tão grave e importante como este, a atitude de grande parte da esquerda se funda num sectarismo cada vez mais radical, e portanto cada vez mais afastado da luta dos trabalhadores e de quem tem vindo a ficar realmente excluído do sistema. O momento aconselhava, exigia, um esforço de união e uma só voz. Em vez disso, questões laterais, rasgar de vestes, absurdos. Depois venham-se queixar quando tudo estiver terminado. Ou serei ingénuo a ponto de não achar que estes retrocessos serão necessários para poderem vir a acontecer avanços? A dialéctica marxista pode ser uma espada de dois gumes.
Adenda: Ler o relato dos acontecimentos feito pelo Ricardo Noronha. Esclarecedor.