Afinal é complicado (actualizado)
Se bem percebo, julgam discordar comigo porque se distanciam de certo feminismo conservador que abjura os usos do corpo, da nudez e do desejo erótico na cultura mediática contemporânea. Pensei que o post da Laetitia - caros leitores, tenho um longo historial de posts da Laetitia que me ilibam destas atrozes acusações - fosse suficiente para explicar que não vou por aí, como não vai muito do feminismo da nova vaga. Pelos vistos, foi escusado.
O que eu crítico no anúncio da Stout, e só, é a sua extrema boçalidade; delira - colegas arrastões propensos a delírio, tomo nota - quem imagina que me revolto cada vez que vejo ser uma mulher representada como objecto de desejo, nada mais longínquo, enganam-se, pois, se pensam que critico o anúncio da Stout como metonímia dos usos patriarcais que sexualizam e coisificam a mulher na paisagem contemporânea; não, o anúncio da stout é apenas anúncio que, usando uma modalidade amplamente praticada - vide os anúncios da Martini -, brilha por um raro mau gosto.
Longe da sofisticação de algum erotismo publicitário, seja o que corteja as várias versões da dominação sexual e simbólica, seja o que capitaliza estereótipos como fantasias numa linguagem que a nossa libido percebe desde a creche, o anúncio da Stout seduz o seu público alvo - homens - esquecendo que um pouco mais de subtileza seria suficiente para não perder de vista o público feminino e, já agora, o público masculino mais sensível à cristalização caricatural de papeis. Sim, a mulher servil e fácil de abrir surge ali como uma caricatura vagamente grotesca - nem naquelas mamas eu me revejo. Mas avante, porque até parece que concordamos quanto à especial boçalidade da publicidade em causa.
Mais problemático, e porventura surpreendente, foi ver tanta gente embarcar na ingenuidade do mito da simetria, algo que um pouco de sensibilidade sócio-histórica deveria ser capaz de exorcizar.
Em vários momentos da discussão política, muita gente saca da fácil arma da simetria, tão depressa como do anúncio da Coca-Light (o facto de ser um marco por todos recordado deveria ter feito feito tocar as sinetas, mas não), como se não houvesse uma história de menorização, opressão e coisificação das mulheres enquanto serviçais do homem, objectos passivos de desejo, seres destituídos de autonomia e de auto-determinação. Como se não houvesse diferença na leitura que fazemos de anúncios que (como o da Coca-Cola Light) parodiam, invertem e subvertem valores hegemónicos, por oposição aos anúncios que reificam os valores hegemónicos - no caso do da Stout, não porque queira estetizar o erotismo da dominação, mas apenas porque se julga sofisticado na sua óbvia boçalidade.
O mito da simetria é uma lógica insidiosa com que o reacionarismo se compraz amiúde e, como alguns de vós devem saber melhor do que eu, dá cabo de qualquer discussão que se queira informada, informada, claro está, sobre o modo como a história das relações de poder permanece connosco. Celebrai a igualdade conquistada, sim, mas não sejais ingénuos.
Um último apelo às pessoas de bem, façam lá o favor de não me confundirem com a Isilda Pegado.
P.s. Escrevi este post à pressa e incapaz de dar conta de algumas reacções que foram surgindo por aí, reacções a que, com mais vagar, tentarei dar justa réplica.