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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Turquia e Curdistão: o quebra-cabeças americano

Daniel Oliveira, 04.11.07
align=center>align=center>Curdistão. Clique para ampliar mapa
Começa amanhã, em Washington, com o encontro entre George Bush e Recep Tayyip Erdogan, uma das maiores dores de cabeça para os EUA no Iraque.

O primeiro-ministro turco tem sabido, como nenhum dos seus antecessores, dar passos para resolver a questão curda. Aumentou em muito o investimento na zona curda, mudou o discurso belicoso e xenófobo das autoridades turcas em relação aos curdos e conseguiu, nas últimas eleições, o milagre de conquistar a maioria do voto das províncias curdas para o seu partido, o AKP. Se é verdade que a aliança entre os curdos e a esquerda turca deu uma vitória assinalável ao DTP, com fortes relações com o PKK, Erdogan e o seu partido pós-islamista têm as condições ideais para seduzir os curdos (a que os turcos chamam eufemisticamente de “turcos da montanha”). Sendo a identidade islâmica mais importante para o AKP do que a identidade nacional ou étnica, a religião acaba por criar as pontes necessárias para uma unidade nacional e para o combate, no terreno, à linha marxista e laica do PKK.

No entanto, a pressão interna sobre Erdogan tem aumentado. Como os nacionalistas laicos turcos perderam a derradeira batalha (impedir a eleição do presidente Abdullah Gül), resta-lhes, a eles e aos seus indefectíveis aliados militares, em acentuada perda de poder, obrigar a um ataque mais feroz aos curdos. E essa, mais do que o anti-islamismo, é uma causa popular entre a maioria do povo turco.

Mas, mesmo sem esta pressão, Erdogan tem um problema. E não é o PKK. O ataque ao PKK no Curdistão iraquiano é o pretexto, não é a razão desta ofensiva. A razão é mesmo a autonomia já muito próxima da independência do Curdistão Iraquiano. Sendo a única zona pacificada e bastante próspera do Iraque, a Turquia teme o peso económico e político de um Curdistão semi-independente. Massud Barzany, presidente da região Curda do Norte do Iraque, assinou recentemente quatro contratos petrolíferos ainda antes da aprovação da nova Lei do Petróleo, num claro desafio às autoridades iraquianas. Apesar do Presidente do Iraque (Jalal Talabani) ser curdo, o Curdistão está a jogar todas as cartadas para uma Autonomia próxima do separatismo.

Ao mesmo tempo, expulsam árabes da cidade de Kirkuk, a sul do Curdistão, pagando indemnizações com o objectivo de vir a vencer o referendo local próximo com vista à integração desta capital petrolífera do Iraque na região curda. Se o conseguirem passarão a ser uma potência petrolífera incontornável na zona. De tal forma este objectivo é importante que as autoridades curdas do Iraque ofereceram-se para colaborar com os turcos no combate ao PKK se em troca a Turquia aceitasse a integração de Kirkuk na região. A Turquia não o poderia aceitar. E, para dizer a verdade, não seria politicamente fácil para as autoridades curdas atacar os seus irmãos do lado turco.

Para os Estados Unidos tudo isto é um quebra-cabeças. Por três razões:

É um confronto entre dois aliados fundamentais. A Turquia é a porta de entrada para a região e um dos mais importantes aliados americanos na Europa e no Médio Oriente. Os curdos são os únicos aliados no território, a combater ao lado dos americanos não apenas no Curdistão, mas em Bagdad.

A fronteira entre a Turquia e o Iraque é a mais importante rota de abastecimento militar norte-americano. Por ali entra 70% da carga militar, 70% do combustível e 90% dos veículos para o exército. Se aquela fronteira é bloqueada por um conflito os americanos não sabem o que fazer.

Mesmo que nenhum destes problemas existisse, ao dizer que sim à Turquia não haveria como dizer que não ao Irão. O PJAK, organização congénere do PKK no Irão, a actuar também a partir do território iraquiano contra território iraniano, não é, ao contrário do PKK, considerada pelos EUA e Europa uma organização terrorista. Mas faz exactamente o mesmo que o PKK. As suas bases estão, aliás, muito próximas. Para embaraçar os EUA, o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano já disse que queria participar no ataque turco. Um pesadelo para os EUA que querem tudo menos mais Irão no Iraque.

É este o novelo: uma país aliado fundamental quer atacar o único aliado no Iraque e um inimigo quer participar na festa, bloqueando a principal fronteira de abastecimento militar americano.

Apesar do objectivo turco ser o de domesticar e arrefecer os entusiasmos independentistas curdos, impedindo a todo o custo a integração do Kirkuk na região curda (estão também a ser expulsos turquemenos da cidade), não é provável, mesmo sabendo-se o enorme aparato militar que está montado na fronteira, que a Turquia arrase ou invada o Curdistão. O recado a dar é simples: o Curdistão pode ser próspero mas é bom que se lembre que não tem poder militar.

A Turquia é o maior investidor na promissora província, tem por lá centenas de empresas e é seu maior exportador. Entre o travão ao independentismo e a racionalidade dos negócios, a Turquia encontrará uma solução intermédia com acções militares cirúrgicas um pouco mais intensas daquelas que já hoje leva a cabo. Os EUA mais não poderão fazer do que tentar, com promessas de cooperação no combate ao PKK, que esse equilíbrio penda mais para a salvaguarda dos seus interesses: não permitir que a escalada militar destabilize a região, continuar a contar com o apoio curdo no Iraque, manter a rota de abastecimento militar aberta e impedir que o Irão aproveite a sua oportunidade.

Muita gente avisou que a ocupação do Iraque iria reactivar vários conflitos latentes. O do Curdistão era o que faltava e envolve dois adversários dos EUA (Irão e Síria), dois aliados (Turquia e Curdistão Iraquiano) e todo o frágil equilíbrio de poderes no Iraque. Veremos como Bush descalça mais esta bota.

O que escrevi aqui disse-o
na TV Net, num debate que tive com Ângelo Correia a propósito do Curdistão e da Turquia e onde ainda houve algum tempo para falar da vinda de Mugabe a Portugal e do Líbano e em que, sem grande surpresa, estivemos no fundamental de acordo.