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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Democracia

Sérgio Lavos, 22.05.12

 

A direita europeia tem passado as duas últimas semanas a chantagear o povo grego e a demonizar o líder do Syriza, Alexis Tsipras; e reafirmando um poder de soberania que manifestamente os gregos não admitem. Desde Merkel até Lagarde, passando pelo inefável José Manuel Barroso, todos parecem querer ter uma palavra a dizer sobre o destino da Grécia.

 

Não se pode negar que tenham. O que preferem querer esquecer é que ao destino de Grécia está intimamente unido o futuro do Euro e da União Europeia. Por isso não se percebe a posição de força desta direita que oscila entre a cegueira ideológica e a orgulhosa teimosia. Todos os dias se repetem as ameaças: as medidas de austeridade são para cumprir. Ignorando que foram essas medidas de austeridade que levaram ao descalabro económico da Grécia e, estranhamente, de acordo com as belas cabecinhas pensadoras desta gente, à ascensão dos partidos de protesto nas legislativas. É como se a Europa estivesse a seguir disparada em direcção ao abismo, ignorando todos os sinais alertando para o fim da linha.

 

Ao ouvirmos o discurso extremista, violento, xenófobo destes líderes europeus - os ministros dos Negócios Estrangeiros e das Finanças alemães conseguem ir mais longe do que Merkel, neste aspecto - quase que nos surpreendemos com a articulação e sensatez do líder da esquerda radical grega. Tsipras tem aproveitado o foco mediático para fazer passar a sua mensagem. Não só internamente - estando a conseguir convencer os gregos a votarem útil no Syriza - mas sobretudo no exterior. Fluente na língua inglesa, tem concedido várias entrevistas a jornais e televisões um pouco por todo o lado. E o que tem dito ele? O evidente. Que a crise na Grécia é também europeia e que uma eventual saída do Euro irá provocar um efeito dominó de imprevisíveis proporções; que a criminosa austeridade imposta aos gregos não leva a lado nenhum e está a provocar uma crise humanitaria no país; e que sem crescimento económico, a Grécia nunca conseguirá pagar a sua dívida. Reafirmando a sua condição de europeísta e de defensor da moeda única, recusando a via argentina da suspensão total do pagamento da dívida, Tsipras vai aplicando cirurgicamente bofetadas de luva branca nos líderes europeus que enchem hipocritamente a boca de "espírito europeu" mas fazem o contrário do que esse espírito significa.

 

As lições de Tsipras poderão não vir a ser aplicadas na Grécia - não é garantido que o Syriza venha a formar Governo - mas a verdade é que os gregos estão ensinar ao resto da Europa como deve funcionar a democracia, evocando a famosa frase de Abraham Lincoln, "a democracia deve ser o governo do povo, pelo povo, para o povo". Quando mais de 23% da população está desempregada, mais de metade na pobreza e deixa de haver esperança num futuro, que sentido fará para o povo grego continuar a votar em quem apenas consegue prometer a continuidade deste empobrecimento? Parece tão simples, não é?

Um sistema imoral

Sérgio Lavos, 11.05.12

 

Foram precisos dois referendos na Irlanda até esta ratificar o Tratado de Lisboa. Nos outros países da UE onde foi feito o referendo, as pressões dos organismos centrais europeus sobre os Governos soberanos foram extraordinárias. "A Europa não pode avançar a duas velocidades", diziam. A Grécia, para entrar no pelotão, contratou a Goldman Sachs para disfarçar as contas públicas através do investimento em produtos tóxicos; os mesmos que acabariam por levar à crise financeira de 2008. Portugal aprovou a moeda única e o Tratado sem consulta referendária - o centrão gosta de trabalhar nas costas de quem o elege e sobretudo rege-se por uma política de subserviência, pusilânime e anti-patriota, na relação com os países mais fortes.

 

A crise de 2008 pôs à vista as fragilidades da construção europeia. De um projecto europeu solidário e mais ou menos democrático passámos a viver sob uma oligarquia dos poderosos. Com a Alemanha à cabeça. Os países periféricos, mais expostos à crise financeira, viram a sua dívida pública e o défice crescerem de forma brutal. Por razões de fundo na Grécia - a engenharia financeira promovida pelos sucessivos Governos com o apoio da Goldman Sachs; para salvar os bancos na Irlanda e em Portugal; pelo rebentar da bolha imobiliária em Espanha. Em comum, estes países tinham uma dependência excessiva do sistema financeiro. A economia especulativa dominava, sobrepondo-se à economia real e política. Por todo o lado? Nem por isso. A Alemanha continua a planar sobre a crise muito por causa das suas exportações, cada vez menos dependentes dos outros países europeus.

 

Mas a crise da dívida trouxe um problema à Alemanha: a exposição dos seus bancos à crise grega. A Grécia não poderia ir ao fundo rapidamente, era necessário salvar as instituições financeiras. Nos últimos três anos, mais de metade dos fundos europeus para a recapitalização bancária foram absorvidos por bancos alemães. Para além disso, o pornográfico funcionamento do BCE - empréstimos a 1% aos bancos nacionais para estes reemprestarem aos Estados com juros à taxa variável que os "mercados" impõem - beneficiou sobretudo os bancos alemães.

 

Passados três anos, a Grécia pode finalmente cair. O resultado das últimas eleições - a rejeição das medidas de austeridade - é a janela de oportunidade para a Alemanha se "livrar" da indesejada Grécia. Mesmo que o Syriza queira continuar no Euro e tivesse vontade de liderar um Governo europeísta. Isso agora não interessa. Não poderiam ser mais claras, as declarações do ministro das Finanças alemão: "Zona Euro está em condições de suportar saída da Grécia".  De uma maneira ou outra, a Alemanha sairá sempre a ganhar. Continuará a crescer à custa dos países periféricos. Acabe ou não o Euro, destrua-se ou não o projecto europeu, a Alemanha ganha sempre.

 

Resta saber se, neste momento, não será melhor para a Grécia e Portugal sairem também do Euro, e deste modo poderem encetar políticas de recuperação económica independentes dos ditames do directório europeu e das vicissitudes da moeda única. Para a Alemanha, pelos vistos, é igual ao litro. E para nós?

It’s the Economy, Dummkopf!

Pedro Sales, 06.09.11

Islândia, Grécia, seguidamente a Irlanda. Michael Lewis tem escrito para a Vanity Fair as melhores reportagens sobre os países afectados pelo turbilhão da crise financeira e do euro. Quando seria de supor que nos visitasse neste cantinho, eis que resolve mudar o ângulo e deslocar-se ao epicentro onde o nosso futuro e o da Europa se decidem. Na Alemanha, claro.

 

"This is what makes the German case so peculiar. If they had been merely the only big, developed nation with decent financial morals, they would present one sort of picture, of simple rectitude. But they had done something far more peculiar: during the boom German bankers had gone out of their way to get dirty. They lent money to American subprime borrowers, to Irish real-estate barons, to Icelandic banking tycoons to do things that no German would ever do. The German losses are still being toted up, but at last count they stand at $21 billion in the Icelandic banks, $100 billion in Irish banks, $60 billion in various U.S. subprime-backed bonds, and some yet-to-be-determined amount in Greek bonds. The only financial disaster in the last decade German bankers appear to have missed was investing with Bernie Madoff. (Perhaps the only advantage to the German financial system of having no Jews.) In their own country, however, these seemingly crazed bankers behaved with restraint. The German people did not allow them to behave otherwise. It was another case of clean on the outside, dirty on the inside. The German banks that wanted to get a little dirty needed to go abroad to do it." 

Honestidade bizarra

Miguel Cardina, 10.05.11

 

O comissário europeu Olli Rehn acabou de anunciar a aprovação do programa de empréstimo a Portugal. É uma ajuda muito especial: só em juros, o país pagará 4 mil milhões de euros, sensivelmente o valor que anualmente é arrecadado em impostos às empresas, o valor correspondente ao buraco estimado do BPN ou o equivalente a 400 euros por cada português. A taxa de juro, que andará entre os 5,5% e os 6%, é considerada insustentável por muitos especialistas. E tem um evidente carácter punitivo que diz muito sobre a consistência da tal "solidariedade europeia". O próprio comissário europeu avisou que Portugal terá de fazer "esforços" mas fez questão de dizer que, dado o apoio ao programa evidenciado durante a campanha, não haverá dúvidas sobre a sua implementação após 5 de Junho. Ou seja, não só a Comissão Europeia nos veio elucidar do papel uniforme do PS-PSD-CDS neste argumento como acabou de entrar explicitamente na campanha eleitoral. Só falta destacar aqueles senhores da troika para acompanhar os comícios de cada um dos três partidos do arco da austeridade. Seria bizarro mas seria mais honesto.

Economias políticas há muitas

João Rodrigues, 14.01.11

 

O comissário europeu Almunia veio a Portugal dizer que ter baixos salários não é um tipo de competitividade própria de países desenvolvidos. Pois não. O problema é que a economia política da austeridade promovida pelo Consenso de Bruxelas-Frankfurt e aceite por governos submissos assenta na promoção da baixa dos salários baixos. A revista Economist, sempre menos hipócrita, faz eco da economia do medo nacional e das suas fraudes, várias vezes repetidas e várias vezes rebatidas, sobre o regabofe salarial português. A prescrição está de acordo com os seus pergaminhos neoliberais: transferir os custos do ajustamento da crise para os trabalhadores, sob a forma de salários mais baixos, generalização de condições de trabalho ainda mais precárias e mecanismos de negociação mais “descentralizados”, deixando o que resta da negociação colectiva à sorte do que se passa em cada empresa, o que fará aumentar ainda mais as desigualdades, um dos grandes bloqueios nacionais, e não ajudará a criar empregos decentes. Um capitalismo cada vez mais medíocre para uma periferia europeia funcionalmente dependente.

 

É claro que a Economist não deixa de referir a alteração do contexto global onde a economia portuguesa se inseriu e muito mal. Menos mal. Já só falta falar da abdicação de instrumentos de política económica sem que à escala da União tivessem sido criados instrumentos de compensação com a mesma relevância, da politica do escudo e do euro fortes, que minaram a nossa competitividade, das míopes privatizações de sectores fundamentais para os custos da economia produtiva, como a banca e a energia, da ausência de uma política industrial digna desse nome, das engenharias neoliberais do bloco central que dão pelo nome de parcerias público-privadas. Temas indigestos para uma publicação sempre favorável às forças de mercado ou aos instrumentos de politica que favoreçam a sua entrada nos espaços não-mercantis.

 

Entretanto, há alguma economia do medo no primeiro poste, algo equivocado, de Krugman sobre Portugal esta semana, que ecoou pelos jornais nacionais com impressionante eficácia. No entanto, Krugman, pelo menos, tem consciência do desastre em curso nas periferias graças às opções deflacionárias da austeridade em contextos de elevado endividamento, privado na maioria, opções que os catastrofistas só lamentam por terem sido "tardias", esquecendo-se que a tímida recuperação se deveu precisamente a esse atraso face à Grécia ou à Irlanda: de resto, os rendimentos baixarão, mas as dívidas permanecem e são cada vez mais onerosas. Krugman tem razão no segundo poste sobre o último leilão da dívida pública: mais sucessos políticos de curto-prazo destes, com estas taxas de juro, e a periferia será economicamente destruída. Periferia é mesmo a categoria a reter e a politizar, como temos defendido.

 

Deve reconhecer-se que este leilão permitiu distender temporariamente a situação, folga que tem de ser aproveitada para iniciativas políticas das periferias, em aliança com os federalistas do centro. É que as dinâmicas da insolvência e das dificuldades bancárias parecem imparáveis neste euro disfuncional, neste cemitério de economias periféricas. Reformá-lo é a boa ideia para 2011. Lá iremos.

Ciganos

Sérgio Lavos, 23.08.10

Por vezes, o passado parece reflectir-se no presente de forma tão evidente que as semelhanças não podem deixar de provocar alarme. Em França, o
processo de repatriação de ciganos romenos avança, e o que mais surpreende é o silêncio do resto da Europa perante uma acção que evoca um passado de perseguição étnica que não deveria repetir-se. Não nos podemos esquecer de que os roma, que chegaram à Europa na Idade Média, foram o outro alvo das políticas de limpeza étnica encetadas pelo Terceiro Reich, e no final da Segunda Guerra Mundial pelo menos 500 mil ciganos tinham morrido, em campos de concentração ou executados pelo exército nazi. Falar deste tenebroso passado de exclusão não é um exagero, até porque a "experiência"  sarkozyana também está a ser tentada na Itália de Berlusconi. Em tempos de crise, a Europa parece querer virar-se para o "outro", para o estrangeiro, e isso é o pior que nos pode acontecer - é sintomático que tal fenómeno tenha lugar no país do "caso Dreyfuss", a França que Sarkozy parece querer transformar no sonho totalitário de Jean-Marie le Pen. É preciso que não se torne norma, para que não se repita o passado.

(Sobre este tema, a crónica de Rui Tavares, hoje no Público, é exemplar - sem link, mas neste post Miguel Serra Pereira tem a gentileza de republicar alguns excertos. Assim como este texto de Rui Bebiano.)