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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Um Dó Li Tá

Sérgio Lavos, 07.11.13

Uma grande crónica de António Lobo Antunes, na Visão:

 

"Perguntam-me muitas vezes por que motivo nunca falo do governo nestas crónicas e a pergunta surpreende-me sempre. Qual governo? É que não existe governo nenhum. Existe um bando de meninos, a quem os pais vestiram casaco como para um baptizado ou um casamento. Claro que as crianças lhes acrescentaram um pin na lapela, porque é giro

 

- Eh pá embora usar um pin?

 

que representa a bandeira nacional como podia representar o Rato Mickey

 

- Embora pôr o Rato Mickey?

 

mas um deles lembrou-se do Senhor Scolari que convenceu os portugueses a encherem tudo de bandeiras, sugeriu

 

- Mete-se antes a bandeira como o Obama

 

e, por estarem a brincar às pessoas crescidas e as play-stations virem da América, resolveram-se pela bandeirinha e aí andam, todos contentes, que engraçado, a mandarem na gente

 

- Agora mandamos em vocês durante quatro anos, está bem?

 

depois de prometerem que, no fim dos quatro anos, comem a sopa toda e estudam um bocadinho em lugar de verem os Simpsons. No meio dos meninos há um tio idoso, manifestamente diminuído, que as famílias dos meninos pediram que levassem com eles, a fim de não passar o tempo a maçar as pessoas nos bancos, de modo que o tio idoso, também de pin

 

- Ponha que é curtido, tio

 

para ali anda a fazer patetices e a dizer asneiras acerca de Angola, que os meninos acham divertidas e os adultos, os tontos, idiotas. Que mal faz? Isto é tudo a fazer de conta.

 

Esta criançada é curiosa. Ensinaram-me que as pessoas não devem ser criticadas pelos nomes ou pelo aspecto físico mas os meninos exageram, e eu não sei se os nomes que usam são verdadeiros: existe um Aguiar Branco e um Poiares Maduro. Porque não juntar-lhes um Colares Tinto ou um Mateus Rosé? É que tenho a impressão de estar num jogo de índios e menos vinho não lhes fazia mal. No lugar deles arranjava outros pseudónimos: Touro Sentado, Nuvem Vermelha, Cavalo Louco. Também é giro, também é americano, pá, e, sinceramente, tanto álcool no jardim escola preocupa-me. A ASAE devia andar de olho na venda de espirituosas a menores. Outra coisa que me preocupa é a ignorância da língua portuguesa nos colégios. Desconhecem o significado de palavras como irrevogável. Irrevogável até compreendo, uma coisa torcida, e a gente conhece o amor dos pequerruchos pelos termos difíceis, coitadinhos, não têm culpa, mas quando, na Assembleia, um deles declarou

 

- Não pretendo esconder nem ocultar

 

apesar da palermice me enternecer alarmou-me um nadita, mau grado compreender que o termo sinónimo seja complicado para alminhas tão tenras. Espíritos tortuosos ou manifestamente mal formados insinuam, por pura maldade, que os garotos mentem muito, o que é injusto e cruel. Eles, por inevitável ingenuidade, não mentem nem faltam às promessas que fazem: temos de levar em conta a idade e o facto da estrutura mental não estar ainda formada, e entender que mudar constantemente de discurso, desdizer-se, aldrabar, não possui, na infância, um significado grave. A irrealidade faz parte dos cérebros em evolução e, com o tempo, hão-de tornar-se pessoas responsáveis: não podemos exigir-lhes que o sejam já, é necessário ser tolerante com os pequerruchos, afagá-los, perdoar-lhes. Merecem carinho, não crítica, uma festa na cabecinha do garoto que faz de primeiro-ministro, outra na menina que eles escolheram para as Finanças e por aí fora. Não é com dureza desnecessária e espírito exageradamente rígido que os educamos. No fundo limitam-se a obedecer a uns senhores estrangeiros, no fundo, tão amorosos, que mal fazem eles para além de empobrecerem a gente, tirarem-nos o emprego, estrangularem-nos, desrespeitarem-nos, trazerem-nos fominha, destruírem-nos? São miúdos queridos, cheios de boa vontade, qual o motivo de os não deixarmos estragar tudo à martelada? Somos demasiado severos com a infância, enervam-nos os impetuosos que correm no meio das mesas dos restaurantes, aos gritos, achamos que incomodam os clientes, a nossa impaciência é deslocada. Por trás deles há pessoas crescidas a orientarem-nos, a quem tentam agradar como podem à custa daqueles que não podem. Os portugueses, e é com mágoa que escrevo isto, têm sido injustos com a infância. Deixem-nos estragar, deixem-nos multiplicar argoladas, deixem-nos não falar verdade: faz parte da aprendizagem das mulheres e homens de amanhã. Sigam o exemplo do Senhor Presidente da República que paternalmente os protege, não do senhor Ex-Presidente da República, Mário Soares, que de forma tão violenta os ataca e, se vos sobrar algum dinheiro, carreguem-lhes os telemóveis para eles falarem uns com os outros acerca da melhor forma de nos deixarem de tanga. Qual o problema se há tanto sol neste País, mesmo que não esteja lá muito certo de o não haverem oferecido aos alemães? E, de pin no casaco que nos fanaram, isto é, de pin cravado na pele

 

(ao princípio dói um bocadinho, a seguir passa)

 

encorajemos estes minúsculos heróis com um beijinho, cheio de ternura, nas testazitas inocentes."

O pior dos tempos

Sérgio Lavos, 06.11.13

 

Através de meias palavras, ocultações e muita propaganda, o Governo vem dizendo ao que vem, ao que desde sempre veio: a destruição do Estado Social e a substituição deste modelo por uma sociedade, um novo Homem (à maneira das grandes revoluções totalitárias do passado), regido por valores como o materialismo, o individualismo e a caridade. Toda esta transformação beneficia uns poucos - a reforma do IRC, por exemplo, vai ajudar sobretudo as grandes empresas, deixando de fora e em desvantagem concorrencial as PME's - e perpetua clientelismos, amiguismos e a cultura do tacho, sobretudo em caso de posse do cartão dos dois partidos do Governo. Só assim se compreende que as despesas com os gabinetes ministeriais tenham aumentado, que o boys do PSD e do CDS neste momento ocupem a maioria dos cargos de nomeação política da administração pública, que milhares de assessores e adjuntos tenham sido arregimentados, vindos directamente da universidade de verão do PSD e dos meninos do Caldas, que várias figuras que diariamente regurgitam nas televisões a propaganda governamental estejam a ser recompensadas com cargos em empresas amigas - Arnaut, Catroga, etc. -, que na Saúde e na Educação se tenha vindo a cortar verbas para escolas, hospitais e centros de saúde públicos ao mesmo tempo que aumentam as transferências para hospitais em PPP e escolas com contrato de associação, e que se estejam a transferir recursos e a delegar competências nas IPSS's, reduzindo e estrangulando o financiamento à Segurança Social.

 

Os novos beneficiários deste Estado paralelo - como alguém já lhe chamou - aguardam pacientemente o que lhes vai calhar do pote. Basta ver a reportagem que a TVI24 passou anteontem à noite sobre as escolas particulares para percebermos como funciona o esquema. Nuno Crato em dois anos retirou às escolas públicas mais de 2 000 milhões de euros. Contudo, o orçamento de 2014 prevê um aumento no valor das transferências para escolas com contratos de associação, depois do mesmo ter acontecido nos dois anos anteriores. Como a reportagem mostra - e como toda a gente sabe -, estas escolas, na maior parte dos casos, recebem dinheiro indevidamente do Estado - a lei estipula que apenas deverão ser subsidiadas escolas em locais onde a rede nacional de escolas públicas não chegue. Na realidade, a maioria destas escolas tem ao lado oferta pública a funcionar muito abaixo das capacidades máximas e continuam a receber dinheiro. Não há melhor exemplo de mau gasto de dinheiro do Estado, com a duplicação de investimento na mesma área geográfica. Numa altura de "emergência nacional", como a direita não se cansa de repetir, há sempre dinheiro para ajudar o lucro privado. Nuno Crato ainda leva mais longe, e de forma despurada, o benefício de interesses privados, ao deixar cair, no novo estatuto das escolas com contrato de associação, a oferta de um serviço que o Estado não pode oferecer como condição para a atribuição dos subsídios. Enquanto as escolas públicas entram em declínio por falta de investimento e a qualidade de ensino cai drasticamente, todos nós, contribuintes, estamos a pagar às escolas privadas para que estas mantenham os seus lucros. Quando chegamos a um ponto em que o Estado transfere recursos dos impostos e corta em todo o tipo de prestações sociais e salários para que alguns possam continuar a manter o seu nível de vida, sabemos que este já não é um país democraticamente viável, é uma república das bananas governada como se fosse uma família de mafiosos, onde o Governo se limita a distribuir recursos por quem tem mais poder. E, ao mesmo tempo, são demonizadas as franjas da população mais desfavorecidas - os desempregados são parasitas, os pobres não querem trabalhar e a classe média é empobrecida sem dó nem piedade.

 

Mas todos os dias o pior que julgamos ter visto é ultrapassado por novos acontecimentos. Hoje, o ministro da Defesa, José Pedro Aguiar Branco, fala da "tentação de estado totalitário". Estará a falar do Estado criado pelo Governo a que pertence? É que ele refere-se a um estado que cria "dependências", "clientelas" e "promiscuidade". Ora, ainda há dias saiu uma notícia que demonstrava isto mesmo: este Governo bateu o recorde de gastos com escritórios de advogados, 33,3 milhões desde 2011, mais do que qualquer outro Governo antes. Depois de Pedro Passos Coelho ter prometido durante a campanha que o levou ao poder que iria preferencialmente recorrer à administração pública para este tipo de serviços, é obra. E mais obra é quando sabemos que o escritório a que Aguiar Branco pertence é dos mais favorecidos por este outsourcing criminoso. Não há limites para a falta de pudor destes governantes. Quando alguém que pertence a uma rede clientelar das mais favorecidas pelo Estado vem alertar para "promiscuidades", referindo-se ao Estado Social, atingimos níveis nunca antes vistos de pura canalhice. Esta gente vai ficar para a História do país, isso é certo. 

 

Adenda: sobre o factor cunha, leia-se este post, que relata a oferta de uma cunha a uma pessoa conhecida de Mário Crespo, feita em directo no Jornal da SIC-N pelo secretário de Estado do Emprego, Octávio Oliveira. Perderam mesmo toda a vergonha. E nós a vermos passar navios.

A mentira como modo de vida

Sérgio Lavos, 25.10.13

 

Sendo a mentira uma segunda pele para quem anda na política, a verdade é que, com este Governo, esse miserável defeito foi elevado à categoria de arte. Para quem tiver oportunidade, aconselho a ler o artigo hoje escrito por António Guerreiro para o Ipsilon, no qual ele distingue entre a normal mentira do político, comum a todos os que enveredam por tal ofício das trevas, e aquela que é a verdadeira natureza deste Governo, uma forma de estar na vida que inverte completamente os valores pelos quais se rege qualquer ser humano decente, uma mentira que vive da reapropriação da linguagem, recorrendo a uma novilíngua que pretende normalizar o discurso quotidiano e que acaba por ser assimilada pelos media que a propagam.

 

Com Passos Coelho, Maria Luís Albuquerque, Miguel Relvas ou Paulo Portas, ultrapassámos a ténue barreira que distingue a realidade da ficção. Respirar para eles será tão natural como mentir, e por isso muitas vezes são apanhados a mentir sobre as mentiras que disseram antes, pateticamente assumindo que quem assiste a tal espectáculo não está a entender o que vê. O mecanismo não só multiplica as mentiras ad nauseam como ofusca e confunde, resultado directo da mediatização da vida pública e da encenação a que essa mediatização obriga.

 

Como toda a gente já percebeu, se há matéria em que o desempenho do Governo ultrapassa largamente o mínimo expectável é na manipulação da opinião pública. E não é de agora. Passos Coelho conseguiu subir dentro do seu partido urdindo na sombra uma campanha contra Manuela Ferreira Leite (com a prestimosa ajuda de Miguel Relvas), plantando ao longo dos anos apoiantes por tudo quanto era espaço mediático. Jornais (os famosos dez jornalistas do DN que saíram para o executivo), televisões (os Catrogas e os Arnauts deste mundo) e blogosfera (31 da Armada, Blasfémias) foram alcatifando o caminho até ao pote poder, pacientemente apostando em duas vertentes: desgastar Sócrates, através da produção de boatos mentirosos, notícias falsas e ataques directos ao homem; e plantar na opinião pública a ideia de que Manuela Ferreira Leite, representante de uma social-democracia em vias de extinção, teria de ser substituída pelo homem novo, produto directo das jotas e redentor da nossa bela pátria.

 

O guião de um péssimo filme

Sérgio Lavos, 24.10.13

Se for preciso encontrar, no meio de tantos e tantos episódios caricatos, lamentáveis, vergonhosos, criminosos ou simplesmente inacreditáveis, algo que defina na perfeição de que matéria é feita a trupe que nos governa, terá de ser, acima de qualquer outra coisa, o fabuloso caso do guião para a reforma do Estado.

 

Perdemos a conta às vezes que já foi anunciado. Prometido tantas vezes, tornou-se de tal modo mirífico que tudo leva a crer que habite o mesmo plano dos unicórnios ou dos gambuzinos. Passos Coelho por mais de uma vez encarregou o irrevogável de apresentar esse guião. Este várias vezes ameaçou, anunciou, procrastinou, adiou, jurou. E nada. O mais próximo que o dissimulado esteve de mostrar serviço foi há uns meses, num conselho de ministros, quando apresentou a Passos Coelho um documento de quatro páginas que, rezam as crónicas, terá sido do desagrado do primeiro-ministro.

 

Aqui chegados, foi-nos dito que hoje seria o dia. No conselho de ministros regular, de quinta-feira, finalmente seria parido o guião, com pompa e circunstância. Hélas, ainda não foi desta. Foi adiada para a semana a aprovação do documento e há quem diga que, no mesmo dia, do nevoeiro emergirá Dom Sebastião, montado no seu cavalo branco. Veremos. O que sabemos é que, caso Paulo Portas trabalhasse numa empresa privada e se atrasasse deste modo numa tarefa que lhe foi delegada, há muito teria sido despedido. Ainda bem que a meritocracia que supostamente o Governo gostaria de ver vingar no novo Portugal que está a ser construído apenas se aplica aos trabalhadores sujeitos à nova legislação laboral, que prevê o despedimento por incumprimento de tarefas. Portas, o irrevogável dissimulado, é de outra estirpe, mais nobre e antiga. Um inimputável. Está em boa companhia, no Governo.

 

(Ver este resumo feito pela RTP. Vale a pena.)

Novo ciclo

Sérgio Lavos, 15.10.13

 

Nós somos mesmo o melhor povo do mundo. Andamos desde 2010 a levar com cortes impostos por um poder externo - a União Europeia - com o argumento de que estes cortes são para o nosso bem, servem para equilibrar as contas públicas e transportar o país para uma fase de prosperidade e riqueza. Nestes três anos, vimos o desemprego crescer de 12% para mais de 17%, a desigualdade aumentar de forma brutal, a qualidade dos serviços públicos piorar de forma incomensurável, a pobreza generalizar-se a uma classe média que ainda por cima foi acusada pelos governantes e por alguns dos seus sabujos de ter andado a viver acima das suas possibilidades, as prestações sociais que deveriam servir para acudir a quem passa mal em alturas de crise serem drasticamente reduzidas; vimos o nosso nível geral de vida degradar-se de forma substantiva, levando à emigração de centenas de milhar de portugueses jovens e menos jovens; vimos os nossos filhos a terem um ensino público muito pior, os nossos pais e avós a verem as suas reformas retalhadas sem piedade, deixando de poder ajudar os filhos e netos desempregados e a si próprios; vimos as nossas vidas serem viradas do avesso por causa de uma troika que transformou a Europa no único continente onde neste momento a pobreza aumenta - e bastante - e de um Governo que quis ir, desde o primeiro momento, além da troika, um Governo de mentirosos, de delinquentes com passagem pelo BPN, de irrevogáveis carraças do poder que andam a sugar-nos há décadas, de incompetentes alucinados que não acertam uma previsão, uma meta, um objectivo, de deslumbrados com complexos de messianismo cujo destino pretendem que seja indestinguível do do país que transitoriamente governam, uma soma de nulidades políticas que, por obra de manobras politiqueiras de quinta categoria, se viram alçados ao poder e ao pote num dos piores momentos da nossa História. Assistimos a tudo isto de forma mais ou menos passiva, com um ou outro assomo de dignidade rapidamente substituída por uma generalizada anomia. Quando depositamos o destino das nossas vidas nas mãos de medíocres perigosos - e temos a certeza de que eles são as duas coisas, mesmo quem votou no PSD e no CDS sabe muito bem que gente é esta que nos governa -, abdicando do poder que lhes delegámos, desistimos do nosso país e de nós próprios. Somos o melhor povo do mundo porque às mãos de sádicos submetemos a nossa possibilidade de escolha, de mudança. Se tudo piorar - e vai piorar -, não poderemos ficar surpreendidos - teremos o resultado daquilo que abdicámos de escolher, teremos um país pior, mais desigual, um país onde os ricos ficam mais ricos, a classe média empobrece e os pobres tornam-se miseráveis. Está a acontecer, neste momento, as notícias saem diariamente. Merecemos isto?

A violência e o escárnio

Sérgio Lavos, 02.10.13

 

A interminável agonia do moribundo Governo teve este fim-de-semana mais um capítulo, com a liminar derrota nas autárquicas e a confirmação de que perdeu toda a legitimidade para governar, incluindo a legitimidade formal conferida pelas eleições - mais de oitenta por cento dos portugueses não votou nos partidos que o constituem. Contudo, chegámos a um ponto em que, apesar das sucessivas medidas legislativas que continuam a ser produzidas, penalizando as pessoas e levando à ruína do país, só nos resta trocar a indignação pelo escárnio e a raiva pela ironia. 

 

No dia que se seguiu ao descalabro, os comentadores afectos à trupe de comediantes que por vezes também se chama Governo bem tentaram remediar as coisas, colocando pensos rápidos sobre a ferida aberta por uma eleição que fez desaparecer o PSD de todos os centros urbanos - os locais onde se decide o voto nacional -, mas a sangria desatada, estranhamente, não foi cauterizada. O conselho nacional de ontem foi um perfeito retrato da anedota em que se tornou o PSD sob as ordens do destemido comandante Passos Coelho. Enquanto este afirmava não ter vocação para mártir e não ceder a depressões - declaração que deixaria qualquer pessoa de bem verdadeiramente temente da condição do primeiro, tendo em conta que o louco caracteriza-se sobretudo por nunca assumir a sua loucura -, a gritaria dentro do conselho alastrava como fogo em mato seco e os "insultos, apupos e ataques" tomavam conta da reunião. Marco António Costa, a meio do circo, ainda veio dizer - sem se rir - aos jornalistas que o PSD estava "em ambiente de coesão interna total e absoluta" - homenageando o antigo ministro da propaganda iraquiano que proclamava em directo na televisão a vitória das forças armadas iraquianas quando o exército norte-americano já se encontrava às portas de Bagdad -, o que serviu para confirmar a sua ascensão dentro do partido como porta-voz da patética palhaçada em que aquilo se tornou. Os barões espreitam na sombra do fracasso de Passos Coelho e Rui Rio espera a oportunidade de tomar o seu lugar divinamente inspirado, apesar das ameaças do antigo candidato Aguiar Branco de uma purga ao velho estilo estalinista. Coesão interna total e absoluta deve ser isto.

 

Mas o pior não são as tricas internas do PSD. É o Governo que emana deste partido de oportunistas e saqueadores continuar a conduzir o navio (de loucos, como o caracterizou Pacheco Pereira) a águas cada vez mais turvas e agitadas. Tudo sob a batuta distante de Cavaco Silva, que um dia antes das eleições veio logo avisar que o seu Governo não cairia. E o Governo inclui também o irrevogável Portas, que cantou a vitória de Rui Moreira contra o candidato do PSD, o Portas que em Fevereiro devia ter apresentado um qualquer guião para a reforma do Estado - e cujo prazo para apresentação tinha sido adiado, sem falta, para o passado dia 30 de Setembro. Portas, se trabalhasse numa empresa privada, já teria sido despedido há muito tempo, por incompetência pura e por incapacidade de entregar um documento a tempo e horas. De resto, a maioria dos membros deste Governo não resistiria muito tempo no privado - lá se vai a defesa da meritocracia enquanto novo modelo de sociedade. Desde reformas que são esquecidas - a das autarquias, a do Estado - até metas sucessivamente falhadas, passando pelos atrasos consecutivos que levaram por exemplo ao caos no início do ano escolar - e logo Crato, o ministro do rigor e da exigência -, cumulando na apresentação de leis com inconstitucionalidades evidentes, tem sido demonstrado, à saciedade, que nunca tinha havido um conjunto de pessoas tão impreparado como este a governar o país. E já lá vão muitos séculos de Portugal. Pensar que esta inacreditável trupe de comediantes involuntários possa ter ascendido ao poder precisamente num dos momentos mais graves do país, quando seria necessário que os melhores da nossa geração tomassem conta disto, é de deixar qualquer um com uma intensa dor de cabeça.

 

Vamos a caminho de um segundo resgate e de uma austeridade perpétua. A podridão do Governo já é sentida à distância - os investidores cada vez têm mais dúvidas sobre a capacidade do país pagar as suas dívidas. Mas ainda assim, Cavaco porfia. Portugal transformou-se numa anedota sem piada, uma ruína de país sem salvação. Talvez só nos reste rirmo-nos disto tudo. Ou fugir.

Que se lixem as eleições

Sérgio Lavos, 26.09.13

A campanha para as autárquicas vai decorrendo sem sobressalto, Passos Coelho num dia diz que Portugal vai a caminho do segundo resgate e no outro afirma que está a dar a volta, Paulo Portas deixou de visitar praças e mercados mas acha que o país já bateu no fundo e está a subir uma escada (para o paraíso), e as eleições, afinal, não é assunto para o qual o Coelho se esteja a lixar. Quem se está a lixar somos nós, portugueses. Uma das heranças deixadas por Vítor Gaspar foi a possibilidade do fundo de reserva da pensões ser usado para comprar dívida pública. A provisão do fundo, que serviria para dois anos de pensões, já foi reduzida para valores que permitem apenas o pagamento durante oito meses. Se, como tudo indica, não houver possibilidade de Portugal atrair investidores para a sua dívida, o fundo servirá para manter a ilusão de um regresso aos mercados que já se tornou uma miragem há muito tempo. Aquilo que foi descontado ao longo de uma vida de trabalho pelos portugueses servirá para pagar aos vampiros da banca nacional e internacional. O princípio da confiança será traído pelo Governo e ainda ouviremos - já ouvimos - governantes a dizerem que o sistema de pensões não é sustentável - não será com certeza se os fundos forem usados para pagar a credores, como estão a ser. No fim de tudo, Portugal ficará insolvente, com uma dívida pública imparável e impagável e sem haver sequer a possibilidade de garantir o pagamento das reformas aos nossos pais e avós durante algum tempo. E quando chegar a inevitável reestruturação da dívida pública, o dinheiro investido pela segurança social nessa dívida será perdido. É este o Governo de salvação nacional, não duvidemos. 

A mentira como modo de vida (6)

Sérgio Lavos, 16.09.13

Miss Swaps, a nossa querida ministra das Finanças, parece ser um poço sem fundo de mentiras, contradições e lapsos de memória. Mas, ao contrário dos artistas Crato e Passos Coelho, parece ter algumas dificuldades no domínio dessa arcana arte da mentira. Digamos que o que lhe sobra em despudor falta-lhe em talento para esse sujo ofício. Apenas resiste impune no cargo porque em Portugal todas as regras da democracia, da decência política e do estado de direito parecem estar suspensas. E pensar que em tempos um ministro foi afastado por contar uma piada em público...

 

"Ministra das Finanças apanhada em novas contradições.

 

"Hoje, o antigo presidente da Estradas de Portugal, Almerindo Marques, declarou no parlamento que Maria Luís Albuquerque, enquanto técnica do IGCP, deu um parecer favorável a um swap da EP. Porém, há dois meses, a ministra garantiu que nunca tocou no assunto dos swaps quandop trabalho no Instituto de Gestão do Crédito Público. 


Para além das declarações de Almerindo Marques, o DN teve acesso a um parecer do IGCP, de Julho de 2009 (ver ficheiro em anexo) sobre um swap da CP proposto pelo Citigroup. Ora, a autora desse parecer foi, precisamente, Maria Luís Albuquerque enquanto técnica do IGCP. (...)


As contradições entre as declarações e o documento revelado pelo DN com as palavras da ministra são bem evidentes. Ouvida a 25 de Junho, ainda como secretária de Estado das Finanças, Maria Luís Albuquerque declarou (ver ficheiro em anexo): "Gostaria apenas de esclarecer - e não é que tenha particular relevância para esta conversa - que no IGCP as minhas funções nunca passaram por esta matéria mas pelas emissões de dívida. Portanto, enquanto estive no IGCP não tive qualquer contacto com swaps, nem do IGCP nem de natureza nenhuma".


Posteriormente, a 30 de Julho, já como ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque insistiu: "Estive afastada desse tema em concreto durante os anos em que estive no IGCP, porque enquanto estive no IGCP não era minha responsabilidade tratar de temas relacionados com swaps, nem do IGCP, nem de empresas públicas, mas apenas os temas relacionados com o financiamento. No entanto, ouvia, de vez em quando, conversas entre os colegas que se dedicavam a essa matéria sobre uma ou outra transação - muito poucas - que lá apareciam para pedido de parecer".

 

Terá a ministra mentido ou apenas se tratará de uma falha de memória? O DN tentou contatar a assessora de imprensa do Ministério das Finanças, mas a chamada não foi atendida."

Irei esmifrar-te até ao túmulo

Sérgio Lavos, 15.09.13

Hélder Rosalino, o secretário de Estado da Administrição Pública, representa na perfeição a súcia de amanuenses sem escrúpulos que está a executar as políticas de empobrecimento do país. Alguém que faz olhando para os números, contabilizando cortes sem pensar em quem os sofre, sabendo que quando voltar ao seu gabinete de funcionário do Banco de Portugal tem uma situação de excepção à sua espera, desde o vencimento que aufere ao regime de pensões de que é beneficiário - estas não terão cortes com a lei do Governo. É errado julgarmos moralmente os actos políticos dos nossos adversários, como não se cansam de repetir os defensores destas políticas de direita? Muito pior é que esses actos políticos levem à miséria de forma amoral, sob a capa de necessidades tecnocráticas e "porque tem de ser". Quando as decisões políticas ignoram de forma ostensiva quem vai sofrer com as consequências dessas decisões, quando a política se torna desumana a ponto de ser mais importante pagar uma dívida a uma instituição financeira estrangeira do que a pensão a um velho, entramos noutro território. Julgarei moralmente qualquer um que corte a pensão a um reformado de 90 anos. É isso - também - que me torna humano.


(O título é de mais uma brilhante crónica de Ferreira Fernandes.)