Se não aconteceu, irá certamente acontecer, ou eu morra aqui ceguinho
Dizem os manuais de jornalismo que uma notícia deverá versar sobre o aconteceu, quando aconteceu e como aconteceu. No Diário de Notícias de ontem, tivemos outra espécie de jornalismo, uma invenção do outro mundo, a que poderíamos chamar jornalismo Maya - em homenagem à conhecida taróloga.
Começamos pela capa, um fenómeno do Entroncamento. Elenca-se uma série de medidas de austeridade e escreve-se que essas medidas são "propostas que a OCDE deverá verter dentro de alguns meses num estudo sobre a reforma do Estado". É o Inimigo Público? Não, é a sério, acreditem. Recordemos: o estudo referido será aquele que o primeiro-ministro disse que tinha sido encomendado à OCDE há poucos dias, encomenda essa prontamente desmentida por uma fonte do organismo, que informou os jornais de que não tinha sido contactado pelo Governo. No dia seguinte a este desmentido, veio o Governo informar que o Carlos Moedas iria pedir até ao final da semana (passada) esse estudo que Passos Coelho afirmara solenemente em frente às câmaras já ter sido pedido. Não sabemos se Moedas já encomendou o tal estudo, mas que isto não sirva de entrave ao jornalista que redigiu a premonitória notícia do DN. A OCDE poderá ainda nem saber que o Governo precisa de um estudo (que confirme as suas opções ideológicas), mas as suas conclusões - a serem apresentadas "dentro de alguns meses" - já são conhecidas pelo jornal. E, surpresa das surpresas, irão apontar para cortes bastante próximos dos preconizados pelo Governo e pela turba de sicários que o defende nas televisões.
A inovação jornalística é tanta que a notícia esmiuça ponto por ponto as tais propostas que a OCDE irá apresentar dentre "de 3 a 6 meses". Há inclusive uma série de citações de um relatório da organização datado de Julho passado que, maravilha das maravilhas, passa a pertencer ao relatório vindouro, o tal que será apresentado (daqui a 3 ou 6 meses, recorde-se) depois de uma visita dos técnicos a convite (ainda não oficial, recorde-se) do Governo.
Tudo isto seria extraordinário, se não fosse profundamente patético e uma vergonha para o Diário de Notícias. Sabemos que há assessores no Governo que vieram do DN e sabemos que há jornalistas no DN que se limitam a veicular a propaganda que é soprada dos gabinetes ministeriais. Mas precisavam mesmo de colocar a sua credibilidade profissional em causa, expondo-se ao ridículo desta maneira?
(Outra opinião sobre este extraordinário fenómeno aqui.)