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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Tudo está a correr de acordo com o esperado

Sérgio Lavos, 22.08.13

 

Se há indicador económico que continua a crescer a um impressionate ritmo, é o da dívida pública. No final de 2011, alguns meses depois do Governo entrar em funções, estava nos 107,2%. Quem tem memória das coisas, lembra-se do clamor constante da direita contra o Governo de José Sócrates por causa do crescimento da dívida. Ainda hoje, quando se sentem acossada, a matilha saca do endividamento do país e da bancarrota para justificar a destruição que está a levar a cabo. Na verdade, em dois anos a dívida cresceu até aos 131,4% (de acordo com dados tornados públicos hoje pelo Banco de Portugal). Pior: não só cresceu em termos relativos (ao PIB) como em termos absolutos. O seu ritmo de crescimento agravou-se drasticamente, e cada vez se torna mais difícil a Portugal pagar o que deve. Neste momento - e apesar da propaganda neoliberal europeia e nacional nos afiançar o contrário - estamos mais próximos da bancarrota e de um segundo resgate do que estávamos há dois anos. Este segundo resgate, a acontecer durante o próximo ano, junta-se ao terceiro da Grécia, anunciado por Schaüble há uns dias. 

 

E assim será, até não se sabe muito bem onde. As políticas austeritárias diminuem o PIB dos países onde estão a ser aplicadas. Como menos recursos, o Estado, para que consiga atingir as metas a que se propõe (definidas pelo pacto orçamental europeu), precisa de os ir buscar onde é mais fácil: aos mais pobres, aos trabalhadores por conta de outrem, à vasta classe média agora empobrecida. Os cortes no Estado Social são, no limite, a maneira que os Governos austeritários têm de tapar buracos orçamentais provocados por quebras no PIB devido à austeridade. Esta criminosa pescadinha de rabo na boca - corta-se primeiro, provocando a recessão e uma descida no PIB, e que por sua vez apenas poderá ser atenuada para efeitos de défice cortando ainda mais - tem como objectivo, e terá como resultado mais visível, o fim das políticas inclusivas e sociais que trouxeram paz à Europa durante sessenta anos. Outro resultado expectável será uma maior desigualdade social e uma mobilidade social com tendência a desaparecer. Os mecanismos de redistribuição dos rendimentos vão sendo substituídos por mecanismos de transferência de rendimentos do trabalho para o capital - as mexidas na TSU foram uma primeira tentativa falhada, a descida no IRC será o segundo assalto em larga escala tentado de forma directa. Enquanto não chegamos lá, a compressão salarial provocada por um brutal aumento do desemprego está já a permitir essa transferência de rendimento para o capital: pagando salários mais baixos aos trabalhadores, as empresas poderão ter mais lucro e distribuir dividendos por accionistas - no caso do PSI-20, fugindo aos impostos portugueses - em maior escala.

 

Nesta fase do capitalismo de rapina, o capital viaja do Sul para o Norte da Europa, dos países em resgate para a Alemanha e para os seus aliados mais ricos, e do bolso da classe média e dos mais pobres para o poder financeiro e os grandes capitalistas. Os cinquenta anos de prosperidade europeia - e norte-americana - aconteceram não só como consequência do crescimento económico constante, pela criação de riqueza, mas sobretudo por políticas sociais que diminuíram bastante o fosso entre ricos e pobres no mundo ocidental, através da implementação de políticas de redistribuição de riqueza assertivas e solidárias. O que se assiste neste momento vai deixar um rasto de desigualdade e aprofundar medos e rancores nacionalistas. No fundo, o crescimento da dívida não é problema para quem manda na Europa e em Portugal. Um programa ideológico possibilitado por um conjunto de factores excepcional - uma maioria de governos de direita na Europa, a crise de 2008 - está a tomar conta de um espaço que em tempos se dizia fraterno, justo e igualitário. Tudo vai mudar; mas não vai ficar tudo na mesma. 

A doutrina do choque

Sérgio Lavos, 23.05.13

 

Já tinha em tempos publicado no Arrastão o documentário baseado no livro de Naomi Klein, A Doutrina do Choque, mas fica aqui novamente, para relembrarmos que as afirmações do secretário de Estado Carlos Moedas (um dos elementos da Goldman Sachs que estão ou gravitam à volta do Governo), proferidas hoje, não são mais do que a prova de que os programas de ajustamento que estão a ser implementados, sobretudo em Portugal e na Grécia, estão de facto a ser bem sucedidos. "Só acabam os maus hábitos quando enfrentam choques", disse Moedas, e nesta frase está plasmada a verdadeira intenção do Governo de traidores que ocupa o poder: destruir a economia e levar à completa insegurança laboral e social, e assim encontrar-se pretextos para acabar com o actual contrato social e o Estado que ele pressupõe. Um programa desta amplitude apenas se consegue distorcendo e suspendendo a democracia. Pinochet e Carlos Videla fizeram isso em ditadura, o Governo (sustentado pelo presidente da República) está a conseguir fazê-lo devido ao estado de excepção associado ao programa de ajustamento. Pedro Passos Coelho quis a queda do anterior Governo e a vinda da Troika porque pretendia impôr o actual programa de destruição do país. Já poucos poderão ter dúvidas de que é isto que está a acontecer

O pensamento neoliberal em todo o seu esplendor

Sérgio Lavos, 09.05.13

Ou como, no fundo, no fundo, o que um verdadeiro liberal defende é um regresso à jorna ou à exploração dos tempos da Revolução Industrial, antes de surgirem as primeiras conquistas dos trabalhadores. Ou até, quem sabe, a reintrodução da escravatura; certamente que os escravos de outrora agradeciam aos seus donos a comida e um "cantinho para dormir" que obtinham em troca do seu trabalho. É bom que de vez em quando o liberalismo insurgente mostre o seu verdadeiro rosto. Nós, de esquerda, agradecemos. Sabemos com o que podemos contar:

 

"Quem defende a existência de Salário Mínimo Nacional acredita que a imposição de um valor mínimo de remuneração do trabalho é “garantia de vida digna”.


Mas na reportagem da SIC do passado sábado (video) um jovem sem-abrigo, a viver nas galerias da Gare do Oriente, para escapar à situação actual, disponibiliza-se trabalhar apenas como pagamento de um “cantinho para dormir”. E muitos outros jovens – que provavelmente vivem ainda com os pais e não na rua – também estão desempregados (segundo o INE, 42,1%). Para estes, uma vida digna começaria por um qualquer trabalho, mesmo que seja de baixa remuneração. Só assim poderiam provar quão produtivos podem (ou não!) ser, medida bem mais credível que algumas centenas de palavras escritas no currículo.


Vida digna? Acabem com o salário mínimo nacional."

 

Adenda: algures na caixa de comentários deste post abjecto, o postador defende o que propõe falando em "liberdade" do indivíduo. Resumindo: o trabalhador deve ter a liberdade para fazer o contrato esclavagista que mais convém ao patrão. Ou ainda: escravidão é liberdade. Melhor exemplo de novilíngua seria difícil de encontrar.

Porque sim

Sérgio Lavos, 14.11.12

Se o Rodrigo Adão da Fonseca diz que recusa qualquer tipo de totalitarismo, quem sou eu para duvidar? Mas ao defender o fim do direito à greve assegurado constitucionalmente está a subscrever uma medida que todos os líderes fascistas tomaram quando chegaram ao poder. A supressão de direitos laborais, incluindo o direito à greve, faz parte da cartilha fascista. É especialmente comovente a referência aos elementos mais frágeis da população (a negrito e tudo), sobretudo porque as doutrinas políticas defendidas no Insurgente implicam a existência de uma espécie de darwinismo social, no qual os mais fracos não têm direitos e protecção assegurados pelo Estado. E o fumo lançado com a referência ao corporativismo dos regimes fascistas também é um autêntico achado - continuando assim, o Rodrigo ainda é contratado para produzir spin governamental. Imagino que esteja a referir-se às corporações de trabalhadores enquadradas pelo Estado Novo  - semelhantes, na sua natureza, aos sindicatos autorizados nos regimes totalitários de esquerda - e que serviam para enfraquecer os verdadeiros sindicatos, ligados inicialmente à esquerda republicana e depois ao PC. 

 

A greve não limita os direitos e as liberdades - e julgo que ninguém de bom senso defenderá piquetes violentos que impeçam o trabalho de quem não faça greve. A greve é um dos poucos instrumentos de luta que os trabalhadores têm, um dos poucos meios que possuem de reinvindicar direitos e promover a negociação junto dos patrões. Uma greve geral é uma forma de protesto apenas para ser usada quando estão em causa leis que afectam todos os trabalhadores - e se existe momento em que esse protesto é adequado, é este. O Rodrigo pode achar imoral o que bem entender. Mas quando afirma que este direito deveria deixar de ser legalmente protegido, arrisca-se a ser comparado com quem actuou desse modo ao longo da História. A não ser que prefira que as greves sejam selvagens, não enquadradas por regras e delimitadas pela lei - que indica claramente onde acabam os direitos do grevistas e começam os dos patrões. Talvez fosse de bom tom recordar ao Rodrigo que o direito à greve é uma conquista da social-democracia, não do marxismo. E que os EUA, berço do capitalismo, foram dos primeiros países a assegurar esse direito. Mas enfim, talvez estes factos interessem pouco a quem defende uma ideia de Estado radical e ultra-minoritária. Os extremismos são sempre avessos à racionalidade e à comprensão e aceitação dos mecanismos de equilíbrio entre os diversos poderes de que são compostas as sociedades.

É preciso deixar a realidade estragar uma boa história

Sérgio Lavos, 13.11.12

Um texto do Hugo Mendes que é exemplo de desmontagem da intensa mistificação à volta do Estado Social a que os nossos "liberais" se costumam dedicar:

 "Era previsível que o argumento surgisse na discussão atual: o de que a entrega de serviços públicos essenciais ao setor privado é uma forma de baixar a despesa pública, e tornar o custo médio de alunos ou doentes mais baixo, baixando, dess forma, também os encargos das famílias. No seu artigo de hoje no “Público”, José Manuel Fernandes aplica o argumento à educação, e parte do princípio que é óbvio que o resultado de uma «mudança de paradigma [que a abertura da educação aos privados] possibilita» resulta numa «economia» para a despesa pública. Enuncia também os casos de sucesso do costume, dos «vários países nórdicos, da Holanda, do Reino Unido ou da Nova Zelândia» que permitiram«concorrência entre diferentes operadores, tanto públicos como privados ou cooperativos, dando mais liberdade de escolha às famílias».

 

O argumento pode parecer intuitivamente impecável, mas basta dedicar 10 segundos a pensar sobre ele para perceber que não só falível, como o processo pode perfeitamente produzir o efeito inverso: na medida em que o Estado continua a financiar atividades serviços públicos essenciais, agora com provisão privada, pode não ter capacidade (ou vontade) para tão controlar a evolução, bem como a eficácia e eficiência, das transferências feitas, lembrando que estes mercados são tudo menos perfeitamente competitivos. Não é seguramente por acaso que é nos países onde a saúde está mais entregue à lógica do mercado (EUA, Holanda) ou à lógica bismarckeana (Alemanha, França, Suíça) que os gastos em cuidados de saúde são mais elevados (tema para outro post).

 

Mas vamos aos "casos de sucesso" citados por José Manuel Fernandes. O que aconteceu ao custo médio por aluno nestes países na última década e meia? Se a tese de que a "mudança de paradigma" produz "economias", eles terão descido. A tese, porém, parece estar errada. O quadro seguinte, retirado dos dados que constam da página 232 (indicador B1) do relatório anual da OCDE, Education at a Glance, do ano de 2012 (o ano de 2009 é último para o qual há dados), indica a evolução do custo médio por aluno do ensino básico e secundário entre 1995 e 2009 (ano de 2005=100):

 

 

A abertura à concorrência entre diferentes operadores, tanto públicos como privados ou cooperativos, dando mais liberdade de escolha às famílias pode ter tido vários impactos, mas a redução da despesa por aluno não foi um deles.

 

Podemos argumentar que usar o ano de 2009 não é muito correcto, na medida em que, em virtude da crise internacional, o PIB caiu abruptamente nestes países. Usemos, por isso, 2008, tendo como base o ano 2000 (os dados constam da página 222 (indicador B1) do Education at a Glance de 2011. 

 

 

Se a mudança de paradigma produziu alunos mais baratos, isso simplesmente não se vê nas estatísticas (não há dados para a Nova Zelândia). Na verdade, entre 2000 e 2008, Portugal – onde repito, apenas se tem em consideração os alunos das escolas públicas - foi o país onde o custo por aluno menos subiu. Nos outros a subida varia entre 1/5 e mais de metade.

 

E também não se percebe o que é que essa suposta "mudança de paradigma" tenha produzido em termos de resultados. Sabemos que os liberais adoram o PISA – ou adoravam, quando este parecia confortar os seus preconceitos. Ora, o que aconteceu entre 2000 e 2009 nos países aqui em comparação? O quadro seguinte mostra a evolução dos resultados no domínio da "leitura" (não há diferença assinaláveis em ciências e em "matemática").

 

 

 

Nem todos contam com quatro observações, mas em nenhum caso o resultado do PISA2009 é superior ao primeiro em que participaram (exceto Portugal). O quadro seguinte mostra-nos esta diferença:

 

 

 

Conclusão: nos países que os liberais gostam de citar, a tal “mudança de paradigma” não produziu nem alunos mais baratos, nem com melhor desempenho. Era bom que de uma vez por todas um pouco da realidade entrasse neste debate.

 

P.S. - O problema não é apenas de limitado contacto com os factos. É de lógica mesmo. José Manuel Fernandes afirma agora saber «graças a um estudo do Tribunal de Contas, que comparando o custo por aluno nas escolas estatais do ensino público com o custo por aluno nas escolas privadas com contrato de associação (e que funcionam, por isso, como escolas públicas de acesso universal), ele é mais baixo nas escolas privadas: 4522 euros contra 4921 euros por ano nos 2º e 3º ciclos e no ensino secundário. Eu sei que o estudo tem várias limitações, mas delas resulta que a diferença deve ser ainda maior ». Sem ir às várias "limitações" que tornam a comparação abusiva – tema para outro post – é extraordinário que, tendo o orçamento da educação sido reduzido em cerca de €800 milhões no ano imediatamente seguinte ao que o estudo se reporta, e tendo esses cortes continuado até ao presente, José Manuel Fernandes consiga afirmar que a «diferença deva ainda ser maior». Como é lógico, essa diferença, mesmo mal justificada pelas tais "limitações", diminuiu ou foi anulada pela redução sustentada da despesa pública em educação. Basta ler o que próprio Tribunal de Contas escreve sobre isto:


“175. De mencionar que o custo médio apurado, referente ao ano escolar de 2009/2010, não deve ser considerado para anos subsequentes, atendendo ao contexto de contenção da despesa pública que se verifica nos últimos anos e que terá impacto em apuramentos análogos, nomeadamente em resultado de: a) Reduções salarias ocorridas em 2011; b) Aplicação de um imposto extraordinário aos subsídios de Natal de 2011; c) Suspensão dos subsídios de férias e de Natal em 2012; d) Evolução do número de aposentações; e) Reorganização da rede escolar determinada em junho de 2010; f) Novas regras de organização curricular dos ensinos básicos e secundário; g) Diminuição das situações e das horas de redução da componente letiva; h) Aumento do número de alunos por turma; i) Alteração à constituição dos agrupamentos (incluindo as escolas secundárias)”.

 

Na verdade, este relatório, hoje, não serve de nada; é um documento histórico. Sempre se podia ter poupado algum dinheiro."

Alternativas?

Sérgio Lavos, 23.09.12

Não serão certamente as alternativas que agradam ao grande capital nem aos partidos que o defendem, mas arrecadar-se-iam 6 mil milhões de euros, sem penalizar nem as classes mais desfavorecidas nem a classe média. E os conselhos do Tribunal Constitucional seriam seguidos, ao taxar-se o capital em vez do trabalho. Ficam aqui as propostas da CGTP, que sabemos que nunca irão sequer ser consideradas pelo Governo, que detém o poder apenas para defender os interesses estabelecidos e aprofundar as desigualdades sociais e a exploração capitalista:

 

- Um novo imposto sobre as transações financeiras.

- Introdução de mais um escalão de IRC para as empresas com grande volume de negócios.

- Sobretaxa de 10% sobre os divindendos distribuídos aos grandes accionistas de empresas.

- Medidas de combate à fraude e à evasão fiscais.

 

Há sempre alternativa. Simplesmente, as que existem não servem as linhas ideológicas que motivam este Governo.

Candid camera

Sérgio Lavos, 18.09.12

 

Entretanto, na América... Mitt Romney, o candidato preferido da nossa direita liberal randiana, foi apanhado a dizer o que realmente pensa. Coisa rara, num político, e como é evidente o que ele pensa não é nada agradável, sobretudo para os americanos mais pobres, mas também para a sua nomeação, que terá ido pelo cano com esta revelação. Perante apoiantes milionários, Romney afirma que os 47% de americanos que votam em Obama não interessam porque não pagam impostos. Isto dito por um multimilionário que, aproveitando-se das reduções fiscais sobre os super-ricos implementadas por Bush, pagou muito menos impostos do que a classe média norte-americana. Mais pornográfico do que aquela célebre filmagem do arquitecto. Lições da América para o mundo - perto disto, os friedmanianos Coelho & Gaspar não passam de aprendizes de feiticeiro. Mas eles estão a esforçar-se.

Paul Ryan, Ayn Rand e a hipocrisia intrínseca ao neoliberalismo

Sérgio Lavos, 30.08.12

 

Na América, a loucura está a atingir níveis nunca vistos no campo Republicano, após a nomeação de Paul Ryan para candidato a vice-presidente há umas semanas. Ryan é um espécimen especial no espectro político americano: um auto-denominado "libertário" que defende o fim do Obamacare e a descida dos impostos dos mais ricos, assim como a proibição do aborto em qualquer circunstância, incluindo a violação. Claro que o campo da extrema-direita do Tea Party delira, não tanto por causa das posições conservadoras no que diz respeito aos costumes (entrando em absoluta contradição com as ideias libertárias), mas sobretudo porque o corte nos impostos sobre os mais ricos, caso se concretizasse, poderia beneficiar em muito os milionários que financiam essa facção extremista.

 

Por cá, foi também recebido com êxtase comedido pelos nossos conservadores/liberais/direitistas: José Manuel Fernandes entusiasmou-se e os Insurgentes andam animadíssimos - Ryan vem preencher o vazio emocional deixado pela não nomeação de Ron Paul no ticket Republicano. Ryan é também conhecido pela confessa admiração por Ayn Rand, uma escritora de ficção científica que, nas palavras de Christopher Hitchens, "escreveu romances transcendentalmente maus", e uma suposta filósofa desprezada por toda a gente da filosofia, cuja principal contribuição para o pensamento ocidental foi a defesa do "objectivismo", a doutrina que advoga o egoísmo como máxima virtude do ser humano - como diz Hitchens, uma realidade concreta que dispensaria os inúmeros tomos escritos por Rand sobre ela. Uma das suas frases mais conhecidas é "o altruísmo é o Mal" - no kidding. Em termos político-económicos, defendia o Estado mínimo e a total liberdade económica - também conhecida por selvageria capitalista. A sua oposição a qualquer tipo de apoio social aos mais desfavorecidos redundou num irónico (e trágico) revés no fim da sua vida: doente de cancro, e sem possibilidade de pagar os caríssimos tratamentos, acabou por recorrer a apoios sociais - Medicare e Segurança Social - durante os últimos cinco anos da sua existência, o que só vem provar que a defesa do individualismo e do fim do Estado Social apenas resulta para quem é suficientemente rico para não precisar do Estado Social.

 

Stephen Colbert nunca teve tanto material para o seu programa, como se pode ver no vídeo. Deus abençoe os hipócritas em geral e os libertários em particular. Sem eles, isto não teria tanta piada.

O pior ainda está para vir

Sérgio Lavos, 08.07.12

 

Fui perdendo o hábito de ver telejornais ao longo do tempo. E nos últimos anos, a sua obsolescência foi-se tornando cada vez mais evidente. Os jornais on-line actualizam a informação ao longo do dia e os canais noticiosos de hora a hora. Se pretendo informação, é melhor nem esperar pelos principais blocos noticiosos, repletos de informação que não é nova, reportagens sensacionalistas e "casos da vida" para o grande público. Mas o pior é que os telejornais servem de caixa de ressonância das opiniões mainstream sobre a realidade e de veículo de propaganda dos partidos do arco governativo, o PSD, PS e CDS. Se isso é claro na RTP (sempre com uma tendência para os partidos que ocupam o poder), acaba por ser mais ou menos evidente nos canais privados. 

 

Um dos exemplos deste via única do pensamento são os directos dos discursos políticos. Os assessores trabalham no terreno os jornalistas e editores dos telejornais, dão a cacha e, à hora prevista, lá está a propaganda servida em prime time. José Sócrates terá aprimorado o modelo, mas Pedro Passos Coelho (com a ajuda do inefável Relvas) é um bom seguidor do antigo primeiro-ministro.

 

Quando passo pelos telejornais, confirma-se a ideia. Ontem, a partir das 20h30, lá teve Passos Coelho o seu tempo de antena em pleno Telejornal da RTP. O motivo? A festa da JSD - que, muito significativamente, foi organizada no Algarve. As banalidades barítonas do costume, e um ou outro chavão para animar a juventude partidária, entre eles uma esotérica referência à "proletarização dos recibos verdes" - parte-se do princípio que ele estaria a referir-se à precarização, mas não convinha utilizar o termo, com uma carga pejorativa para a sociedade.

 

A cereja em cima do bolo foi o primeiro sinal do que aí vem, um apalpar do terreno que já começa a tornar-se comum neste Governo. Vai-se testando uma ideia na opinião pública até que o que à partida é inadmissível ou impraticável se torna inevitável. E onde pensa Passos Coelho ir buscar o dinheiro que o fim da suspensão do pagamento dos subsídios à Função Pública obriga? Ao Estado Social, como não poderia deixar de ser. Cada corte feito é uma oportunidade para este Governo. Uma oportunidade de aplicar no terreno a sua agenda ideológica. Não interessa que até aqui esta destruição não só tenha piorado a vida dos portugueses como não tenha trazido quaisquer resultados práticos em termos de redução do défice e da dívida pública. Isso é secundário. O mais importante é acabar com o Estado Social, cumprindo o sonho molhado neoliberal de Passos Coelho. De preferência, mantendo intocada a rede de interesses que suga o Estado dos recursos básicos para a população. Não esqueçamos: Passos Coelho poderia apontar às PPP's, à banca que paga muito menos impostos do que o resto da economia ou aos rendimentos e património dos mais ricos (como fez Hollande em França). Mas não o fez. O Governo não é forçado a cortar na Saúde e na Educação; escolhe-o fazer para não atacar o sistema que alimenta os interesses das corporações que parasitam o Estado. Uma escolha política, nunca uma inevitabilidade. E cada revés (como o da decisão do Tribunal Constitucional) é visto como uma oportunidade para avançar mais neste desígnio neoliberal: mudar para ficar tudo na mesma. Ou melhor, para reforçar o poder das corporações, das empresas de amigos, do capitalismo predatório que suga os recursos do país aproveitando-se da mão de obra cada vez mais barata dos trabalhadores portugueses. A China da Europa, como é o desejo, recentemente verbalizado, de Angela Merkel. 

 

Falar de Miguel Relvas - um morto-vivo político com a resistência de uma carraça e a flexibilidade de uma lesma - até acaba por funcionar como cortina de fumo para as medidas governamentais que estão a destruir o país. É preciso ver para além deste nevoeiro e perceber qual o objectivo do Governo. E o pior ainda está para vir.

Governar contra os interesses do país

Sérgio Lavos, 24.05.12

 

 

Sem querer procurar uma relação causa-efeito, não deixa de ser curioso que, no dia a seguir ao primeiro-ministro português ter-se oposto às Eurobrigações na reunião informal entre os líderes da UE, assumindo uma posição que objectivamente vai contra os interesses de Portugal, os juros da dívida portuguesa tenham disparado nos mercados secundários

 

Depois da reunião, marcada pela divisão entre lideres favoráveis às obrigações - Hollande à cabeça, seguido pelos primeio-ministros italiano e irlandês, assim como Mario Draghi e Herman van Rompuy - e aqueles que estão contra - Merkel, o líder finlandês, o Governo interino holandês e os amestrados Rajoy e Passos Coelho - quem fica a ganhar são a Alemanha, cuja solidez da economia permanece intocada, qualquer que seja a posição de Merkel, e a França, que parece estar a ganhar bastante com a personalidade do seu presidente - um contraste absoluto com a tibieza de Sarkozy.

 

Mas até Merkel concede que as Eurobrigações serão um possível ponto de chegada, o que mostra como a opinião da Alemanha se flexibilizou com o aparecimento do contrapoder francês. Notável é a posição de Passos Coelho, denotando que a política prosseguida em Portugal tem mais a ver com o posicionamento ideológico extremista do Governo - a "austeridade para além da austeridade" - do que com as imposições da troika. Não é de estranhar que, já por várias vezes a troika e o FMI tenham alertado o Governo para o excesso de medidas de austeridade e para as consequências que esse excesso poderá ter na economia portuguesa. O primeiro-ministro arrisca-se um dia a ser único na UE a defender posições que, em primeiro lugar, prejudicam Portugal, o que seria extraordinário. Já não se trata de uma questão de incompetência, mas sim de fanatismo ideológico - e o pior que nos poderia acontecer, durante eeste período de empobrecimento acelerado, seria sermos governados por um grupo de fanáticos neoliberais que pusesse acima do interesse nacional uma qualquer agenda ideológica impraticável. Mas talvez, mais cedo do que tarde, a perda de soberania venha a funcionar em nosso favor. Aguardemos.